Heterofagia como dispositivo fundador do Brasil, por Jesse Rodriguez Cardoso

por Jesse Rodriguez Cardoso

do Psicalistas pela Democracia 

Resumo: Existe uma fundação simbólica do Brasil? É a partir dessa pergunta que este texto busca construir uma resposta. Para tanto se busca indagar a respeito de qual é o Nome do Pai do Brasil a partir de um diálogo entre as interpretações de Contardo Calligaris em Hello, Brasil! e Por um Manifesto Heterofágico de M. D. Magno.

Palavras-chaves: interpretações do Brasi; Psicanálise; heterofagia                               

Tenho uma implicação provavelmente diferente da dos meus colegas nisso de interpretar o Brasil. Dizem que as visões de um estrangeiro nos trazem análises que os que estão dentro do grupo/país não as fariam. Eu como alguém que veio do Uruguai aos 12 anos, e estou desde lá vivendo essa incógnita que é o Brasil, me deparei com questões que talvez quem nunca tenha saído do Brasil ou de sua cidade não tenha percebido. Quando vim para cá, me deparei com uma forma de funcionamento diferente da que eu estava acostumado no nosso país vizinho, mesmo esse estranho tendo algo de familiar, já que muitas coisas se assemelhavam ao meu antigo lar. Alguns aspectos dessa cidade porto alegrense e desse país Brasiliense me chocaram. Uma das coisas que me deparei e que foi causa de muitas das minhas reflexões a respeito da sociedade foi a violência urbana. Nunca fui tão assaltado quanto em Porto Alegre. Na verdade, só fui assaltado em Porto Alegre em toda a minha vida. Nos meus 12 anos no Uruguai isso não me ocorreu (não que lá não exista violência urbana, mas é em um grau menor que aqui). Isso pode ser explicado pela questão de que a violência estruturou este país, já que na sua fundação está a exploração dos recursos naturais e a escravidão dos negros e indígenas. Por outro lado, essa exploração também teve no Uruguai, qual seria o diferencial entre as formas de constituição societária uruguaia e brasileira? A pluralidade de afazeres que são possíveis aqui no Brasil é interessante. Ao mesmo tempo, a questão financeira é central para se ter acesso a essa pluralidade; quanto menos dinheiro a pessoa tem, menos do Brasil ela tem acesso, menos ela conhece a cidade. Pessoas que moram na periferia e fazem todas as suas atividades lá, sem ir muito ao centro; é sintomático o quanto a exclusão social priva as pessoas de conhecer a cidade e o país. Uma grande questão que fica com toda essa pluralidade que constitui o Brasil é: o que caracterizaria algo da singularidade da nossa cultura? Para tentar responder essa pergunta vou utilizar alguns escritos de Contardo Calligaris, em Hello, Brasil! e Por um Manifesto Heterofágico, de M. D. Magno.

Hello, Brasil!
 
Lendo os textos de Contardo Calligaris do livro Hello, Brasil!, mesmo tendo uma grande crítica ao fato de ser um europeu interpretando o Brasil, ainda vi várias análises interessantes nesse documento, talvez decorrentes de um olhar estrangeiro. Uma delas é sobre o nome que foi dado ao nosso país, Brasil. Nome de um dos primeiros produtos de exploração do nosso território: Pau Brasil. Quando os colonizadores chegaram aos nossos litorais, o produto de mais valor que poderíamos oferecer – que eles encontraram – foi esse. Ao mesmo tempo, não foi esse o primeiro nome que eles deram para nos caracterizar, antes houve outras significações para a nossa terra: “Pindorama (nome dado pelos indígenas); Ilha de Vera Cruz, em 1500; Terra Nova, em 1501;Terra dos Papagaios, em 1501; Terra de Vera Cruz, em 1503; Terra de Santa Cruz, em 1503;Terra Santa Cruz do Brasil, em 1505; Terra do Brasil, em 1505; Brasil, desde 1527.” (Só história, 2009). E depois de um tempo é assim que nos denominamos, como um significante de um produto que os europeus podem utilizar para melhorar o seu estilo de vida. É interessante analisarmos que a árvore que nos nomeou está quase extinta em nosso território:
 
Nos 30 primeiros anos da colonização portuguesa no Brasil a principal atividade realizada no país foi a exploração de Pau-Brasil, mas a atividade continuou sendo realizada por mais 370 anos. Isso resultou em vários quilômetros de floresta totalmente devastados e a quase extinção da árvore. (Wanessa Galvão).
 
Mesmo esse produto de exploração estando quase extinto, o nosso país não perdeu valor para Portugal e demais países europeus, que tentaram também nos colonizar ao longo da história, visto que quanto mais Portugal entrava em nosso território mais riquezas ia descobrindo, também outros países, como a França e Holanda, tentaram conseguir um pedaço da nossa terra, mas Portugal ganhou a disputa pela hegemonia da colonização. E um significante não parava de se repetir no decorrer do tempo, que é sermos um país de exportação de matéria prima, é isso o que simboliza o nosso nome e é isso o que fizemos no decorrer da nossa história.
 
Calligaris analisa o Brasil a partir do olhar do colono (ao qual ele se identificava, visto que era um italiano que veio morar no Brasil). O autor critica um processo que os colonos vivenciaram aqui, o de ocuparem o lugar do escravo, visto que o Brasil adotou uma política de embranquecimento depois que a escravatura foi revogada, a elite precisava de mão-de-obra barata e, ao mesmo tempo, branca. Em decorrência disso, políticas de incentivo à imigração de europeus foram criadas. Só que essas pessoas quando chegaram aqui se depararam com uma realidade diferente da prometida, a posição que foram “convidados (as)” a ocupar foi a de escravos, mas a lógica era outra, já que o racismo não fundamentava esse tipo de exploração. Então ela se deu a partir da dívida:
 
O projeto frustrado do colonizador e a decepção do colono contam aqui para que a criança receba como herança uma injunção para gozar antes de receber uma dívida simbólica, que dificilmente pode ser reconhecida em relação a uma nação que enganou o seu imigrante. Que dívida anterior à viagem poderia ser transmitida se, por um lado, o colonizador teve que usurpar a potência do pai originário para exportá-la e, por outro lado, o colono veio para cá por se achar justamente esquecido do seu pai? (Calligaris, 2017, p. 105).
 
Na Europa os desamparados proporcionaram uma terra fértil às políticas de embranquecimento brasileiras, a partir da promessa de um amparo por parte do estado brasileiro a essa população, mas o que esses colonos encontraram quando chegaram aqui foi um truque visando escravizar os seus corpos. Talvez eles pensassem, ao virem para cá, que aqui eles seriam valorizados pela sua raça, que receberiam privilégios pela sua constituição corpórea e cultural. Algo que depois de um tempo isso realmente ocorreu, já que essas políticas de branqueamento futuramente deram terras e demais benefícios aos imigrantes europeus que quisessem construir uma comunidade aqui. Por outro lado, esse processo de embranquecimento tem algo de nostálgico, já que os primeiros exploradores brasileiros vieram para cá visando conseguir a terra prometida, a maioria deles era desamparado financeiramente em Portugal, mas quando vieram para cá procuravam produzir uma marca nesta “terra sem lei” e “sem pai” e ao mesmo tempo enriquecerem com isso. Talvez os imigrantes europeus do século XX tenham vindo para cá achando que iriam reproduzir esse processo de enriquecimento a partir da exploração das riquezas do Brasil, mas se depararam com outra coisa. Calligaris enumera os sentimentos que o colono tem em relação ao colonizador, algo que com a vinda dos imigrantes europeus no começo da política de branqueamento, sofreu uma inversão; os imigrantes europeus (que antes vinham ao nosso território para serem colonizadores) ficaram na posição de serventia e não de exploração, e os colonos brasileiros (que antigamente ocupavam a posição de serventia, visto que tinham que exportar matéria prima à Europa, ficaram na posição dos colonizadores (exploradores dos imigrantes), claro que estes já tinham essa posição a partir da herança de sua linhagem, visto que eram descendentes de colonizadores:
 
O colono, desenraizado, responde à decepção que lhe proporciona o encontro com o colonizador dividindo-se entre: 1) uma nostalgia imprecisa da cadeia simbólica originária que o expulsou; 2) o apelo infinito a algum pai que surja nesta nova terra e cuja palavra tenha validade para reconhecê-lo; e, enfim, 3) a tentativa incessante de produzir uma marca no corpo da terra, marca com a qual ele mesmo se outorgaria sozinho uma origem simbólica – uma fundação. (Idem, p. 109).
 
Nisso, Calligaris continua falando do quanto aqui falta uma herança cultural que dê um significado aos habitantes do país, principalmente ao que os colonos imigrantes vão se filiar quando vem morar no Brasil, no qual recebem terras, mas uma filiação simbólica não é transmitida.
 
O engano se confirma na separação entre propriedade e posse durante a colonização brasileira. Separação específica, ignorada pelo bandeirante americano. No pedido de terra, parece assim não ser escutada a demanda de um nome e de uma cidadania que seria reconhecida pela atribuição de uma propriedade. Propor o usufruto temporário a quem pede a propriedade da terra já é interpretar o pedido como um apelo de acesso a um gozo, não à filiação. (Idem, p. 113).
 
Ou, quando é transmitida, é através da exploração, do saque: “Continua me parecendo decisivo, com uma mancha inapagável, o engano perpetrado ao colono, que para aqui veio pedir um nome, mas encontrou o projeto de escravizar os corpos e recebeu como significante ao qual se afiliar a designação de um saque”. (Idem, p. 113)
 
Algo de interessante que percebi em suas observações é que elas são pautadas a partir dos brancos da sociedade, sejam os que tiveram a herança dos colonizadores, ou os que foram acolhidos no país a partir da política de embraquecimento. Tanto que ele se pergunta a origem de uma expressão de ódio que escutou, a qual vem de práticas escravocratas, algo que é marcante em Portugal e ainda mais no Brasil, só que ele pensa como se fosse algo singular dessas culturas:
 
Uma expressão de ódio (que, apesar de consultar colegas portugueses, não consegui saber se é lusitana ou propriamente brasileira) me impressiona no mesmo sentido. “Vou acabar com a tua raça” me surpreende em um primeiro momento pela extrema violência que promete: não se trata de matar alguém, mas de matar o seu sobrenome, a sua estirpe. É isso: cortar não um ramo, nem a planta, mas abolir a espécie. Mesmo se estivesse tomado pela maior raiva, o projeto me pareceria difícil de endossar […] (Idem, p. 107).
 
Matar o sobrenome foi exatamente o que os (as) brancos (as) fizeram com os negros (as) do nosso país. E esses brancos são tanto colonizadores portugueses quanto a elite brasileira. Os negros, quando foram escravizados, perdiam os seus sobrenomes e, às vezes, até nomes de origem e recebiam os nomes que os brancos davam e sobrenomes que os escravocratas decidiam dar-lhes:
 
Negros africanos, que vieram para o Brasil como escravos, e dos quais tantos de nós descendemos, foram obrigados a deixar para trás seu passado, seu nome e a identificação de sua origem tribal. Aqui foram batizados com um nome cristão e os sobrenomes que recebiam muitas vezes eram os mesmos de seus senhores. Quando isso não ocorria, os senhores lhes davam sobrenomes de origem religiosa, como Batista, de Jesus, do Espírito Santo. Também o leigo “da Silva” (silva em latim, é selva, o que significa que a pessoa assim denominada tinha origem imprecisa, não se sabia ao certo de que cidade ou região ela procedia) foi fartamente atribuído àqueles que não traziam consigo um nome de família. Não é, portanto, por acaso que Silva é hoje no Brasil o sobrenome mais comum, aquele usado pelo maior número de cidadãos. (Raquel Teixeira Valença).
 
Então, na análise que o Calligaris fez do Brasil não levou em conta a influência indígena e negra na nossa cultura.
 
Por um manifesto heterofágico
 
Em por um manifesto heterofágico, M. D. Magno (1985) procura destacar os significantes fundadores e constituintes da sintomática particular do Brasil. Para tanto, ele ressalta que o Brasil, antes de tudo, é uma ficção, porém nada impede que se escute, através da insistência significante, a verdade que está em jogo nessa ficção. A fim disso, ele lembra que Lacan possibilita esse tipo de escuta: “Neste ponto, é preciso lembrar que Lacan definiu o coletivo como o sujeito no discurso, não existindo outra coleção que forme coletivo para o falante senão a função sujeito, coletora dos significantes” (p. 64). Nessa análise, a cultura não é vista na ordem do sintoma:
 
Toda cultura, enquanto tal, é reativa, é reacionária, o que quer dizer que uma cultura não se estabelece como mero sintoma, mas sim como algo da ordem da neurose. Esta se opõe ao movimento da pulsão, ao desejo: ou odeia o desejo como ato, o que chamamos de obsessão; ou o protela indefinidamente, o que chamamos de histeria. (Idem, p. 64).
 
Segundo eles, a cultura cultiva o caráter, a personalidade, que é a essência da paranoia. Já o sintoma, enquanto tal, enquanto coalescência de letra, de marca, é estruturado como metáfora e tem valor de verdade para o sujeito que o porta. E, por ser metafórico, ganha uma maleabilidade no momento em que pode mudar a metáfora: “Ele possibilita o desvelamento da realidade do sujeito e, porque é metafórico, pode ser simbolizado através de quantas metáforas o substituam, capazes de bem dizê-lo.” (P. 65 ibidem).
 
Algo interessante e diferencial de Calligaris, que tem nesse manifesto, é que este leva em consideração a influência negra e indígena na nossa cultura. Dentro dessa perspectiva, trazem Macunaíma como uma tentativa vigorosa de indicar a sintomática brasileira. E não só isso, o autor afirma que Mário de Andrade nos dá elementos para afirmarmos que o Brasil é mais uma América Africana (expressão introduzida por Betty Milan) do que América Latina. Macunaíma, dentro dessa perspectiva, é um Nome do Pai (o Nome do Pai seria essa última palavra que, pondo fim à grande frase da realidade, permitiria entendê-la):
 
Diz Mário de Andrade logo no início de seu texto: “No fundo do mato virgem, nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. No momento de seu nascimento era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoara, que a índia Tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma”. Filho de uma mãe índia, Macunaíma nasce preto e, ao longo da obra, vai mudando de cor.
 
Macunaíma, diz Mário, “é mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra, sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu”. Este é certamente o campo de todas as inscrições, onde o real comparece, mas que é lido como campo de inscrição significante, campo do Outro. Definido enquanto o “herói de nossa gente”, Macunaíma é, pois, indicado como aquele que poderia arcar com a função paterna, já que nada melhor para significar o pai, para encarnar o substituto do Nome do Pai, que o assim chamado herói. (Idem, p. 65).

Dentro dessa perspectiva, os colonizadores europeus não vieram aqui e apenas estabeleceram a sua cultura, mas sim houve uma disputa entre eles, os indígenas e os negros a respeito do Nome do Pai. Para explicar a resistência africana e indígena é trazida à tona a teoria da dialética do senhor e do escravo, que é a dialética da nossa fundação, em que o senhor sempre se apropria do saber do escravo. Assim, a inseminação, por via desse saber apropriado, enquanto marca que vai estabelecer uma relação com S2, foi produzida pelo escravo que retoma, na dialética, sub-repticiamente, o lugar do mestre. São usados exemplos pelo autor para explicar isso:

Por exemplo, na época da escravidão, os negros, sendo proibidos de brigar, inventaram uma luta que alegoriza a briga e se transforma em quase uma dança – a capoeira. Se o lugar do senhor era de outrem, mas a produção e a apropriação do lugar-tenente do pai vieram marcadas por este elemento africano, é preciso perguntar se o Brasil participa da mesma constituição simbólica da América Latina ou se, antes disso, ele é o advento de uma América Africana ou, para utilizar uma expressão cujo sentido será precisado mais à frente, de uma Améfrica Ladina. (Idem, p. 66)

Dentro disso, interpretam a obra literária Macunaíma como o nome do Nome do Pai proposto por Mário de Andrade.

Além de Macunaíma como um Nome do Pai, outra análise interessante a respeito de uma herança não branca à cultura brasileira é a antropofagia de Oswald de Andrade. Nela, é proposta uma forma de funcionar típica dos brasileiros:

Em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924, já se pode depreender o germe do que Oswald colocará posteriormente como a antropofagia, ao falar da “contribuição milionária de todos os erros”. Ao buscar a originalidade do sintoma da cultura brasileira, Oswald indicava desde já em sua obra a vocação de devoração, de deglutição das alteridades que está em jogo em nossa cultura, o que ele desenvolverá com mais precisão e mais radicalidade no Manifesto Antropófago, de 1928: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo, expressão mascarada de todos os individualismos, de todas as religiões, de todos os tratados de paz”.  Nesse ponto que ele lança a famosa frase “Tupi or not tupi, that is the question”. E acrescenta, em seguida, aquilo que constitui o cerne mesmo da postura antropofágica: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”, através do que ele indica um ponto fundamental da psicanálise: o desejo mantém uma relação estrita com a falta de objeto – só me interessa o que é do Outro.   (Idem, p. 66-67).

Pensando nessa característica heterofágica do Brasil, lembrei de um comentário do Calligaris no livro Hello, Brasil!, em que ele comenta a sua decepção pela não fundação de uma identidade brasileira na constituição de 88:

[…] eu vinha com frequência ao Brasil durante a época dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, os quais eu também acompanhava regularmente na imprensa. A leitura das notícias causava uma decepção um pouco amarga. A duração dos trabalhos já era sintoma de algo que não conseguia ser um ato, e tudo caminhava segundo uma lógica de negociações entre privilégios e vontades particulares. E o resultado final, pelo seu próprio tamanho, parecia revelador do fracasso. Pois o documento produzido foi uma estranha mistura de código civil e código administrativo, no qual um europeu ou mesmo um americano dificilmente reconheceria uma constituição. O documento em que eu esperava ver surgirem as fórmulas básicas que simbolicamente regeriam a vida do país, uma espécie de breve repertório de ideais inspiradores, parecia um compêndio de disposições e regulamentações que, como tais, pela própria prevalência delas na Constituição, independentemente do conteúdo jurídico, testemunhavam que, no ato constituinte, se perdera a ocasião de enunciar princípios fundadores que dessem ao significante nacional valor de referência. A Constituição se apresentar como uma regulamentação das vontades particulares implicava de qualquer forma que estas tenham sido primeiro reconhecidas e depois (laboriosamente) conciliadas, o que invertia a ordem de uma fundação possivelmente exitosa. (Calligaris, 2017, p. 111)

Concordo com ele que esse momento pós ditadura seria um momento muito bom para a refundação simbólica que regeria o nosso país, visto que passamos por um evento que fez com que repensássemos a constituição da nossa sociedade. Porém, algo que ele não viu é que já tinha essa fundação na constituição de 88, e, na minha perspectiva, ela se deu através do processo heterofágico que Magno cita a cima. A decepção de Calligaris está relacionada com a visão de um europeu ou de um norte-americano a respeito da sociedade, ou seja, de duas referências imperialistas. O que temos no Brasil é algo diferente, a constituição de 88 pegou referências europeias e estado-unidenses, devorou-as, aproveitou o que prestava e defecou o que não interessava. A fundação simbólica já estava dada e se deu a partir da heterofagia.

Talvez seja difícil para um europeu entender esse processo porque ele é justamente uma insurgência à sua dominação. Segundo Magno, M. D. (1985, p. 67):

É em contrapartida à noção mesma de antropofagia que Oswald se insurge contra o Colonialismo, afirmando que “nunca fomos catequisados, vivemos através de um direito noâmbulo”, pois a antropofagia não supõe uma catequese ou uma conversão (vide a devoração do Bispo Sardinha), comer o Outro não significando transubstanciar-se na comida, mas sim incorporar um pouco dela e dejetar um resto fecálico. Oswald supõe assim poder encontrar, na sintomática brasileira, nessa não suscetibilidade à catequese, não um subjugamento a um tabu, mas sim a reversão do tabu em totem, através da qual a cultura brasileira incorpora algumas das matérias que come sem se transformar em cega obediente a um tabu.

Nesse sentido, mesmo que Portugal tenha nos colonizado, ainda houve movimentos de resistência que fizeram com que o Brasil não se tornasse uma cópia de Portugal, e sim algo diferente e singular. Um aspecto que torna essa perspectiva interessante é que ela permite explicar a pluralidade e diversidade tão características do nosso país de uma forma não reducionista. Talvez seja por isso que o nosso país tenha essa abertura a várias tradições e religiões diferentes. Algo que em outras regiões do planeta gera guerra (diferenças de crenças religiosas), aqui convivem pacificamente e ao mesmo tempo existem religiões tipicamente brasileiras decorrentes de um sincretismo religioso (este motivado também pela perseguição cristã a religiões diferentes, o que obrigou religiões não-cristãs a maquiarem suas práticas incrementando elementos cristãos): Santo Daime, Candomblé, Umbanda, Babacuê, Batuque, Quimbanda, Tambor, Macumba. Todas essas religiões citadas demonstram uma resistência indígena e negra à catequização cristã a partir da heterofagia, visto que elas incrementaram elementos cristãos, mas não foram reduzidas à lógica cristã.

Outro elemento típico da nossa cultura, que demonstra esse processo heterofágico, é o carnaval. O carnaval brasileiro é importado de Portugal, mas quando chegou aqui se misturou com a cultura local e aos poucos foi se transformando no que conhecemos hoje. Para Oswald, o carnaval é sintomático da nossa resistência cultural:

Repete Oswlad, ainda, desta vez introduzindo um novo elemento, muito caro à cultura brasileira, o carnaval: “Nunca fomos catequisados, fizemos foi carnaval”. O carnaval – feito da cultura negra africana entre nós -, a carnavalização que vigora na cultura brasileira, parece ser efeito de seus elementos sintomáticos de base. Nele, como diz Betty Milan, são assimilados os elementos mais heterogêneos, coexistem e são festejadas as mais extremas diferenças, conciliam-se os inconciliáveis. Se por um lado a cultura brasileira parece recusar a catequese, por outro, ela não deixa de introduzir em seu seio os elementos de outras culturas, o que é feito, de modo tendencialmente barroco, através da constante carnavalização. Como diz Lacan, na construção barroca comparece o remetimento ao furo. (Idem, p. 67)

Algo que caracteriza o Barroco é a busca por ser outro:

Como diz Wolfflin, o Barroco “apela à potência da emoção, para empolgar e subjugar diretamente, ele não traz animação regular, mas a comoção, o êxtase, o embriagamento. O Barroco tenta representar o não-representável, o abismo, o infinito”. Na medida em que possa ser situado enquanto feminino, o Barroco é excêntrico, descentrado, querendo ser Outro – ou, como se diz na gíria, sartar fora. Do Barroco não se pode nem mesmo dizer que ele quer atingir o Outro, mas sim que ele quer ser Outro. Tal vocação, sendo impossível, só consegue produzir um desregramento, uma ausência de centralismo dentro do próprio corpo, um processo dispersivo no qual as formas se jogam para fora, quando não produzem no sujeito, nessa tentativa de ser Outro, um fracionamento em ser Outros. Se a língua é clássica, masculina, o palavrório feminino é barroco. (Idem, p. 70)

Querer ser Outro, ou querer ser o outro é o sentimento que baseia o desejo de devorar o outro, só que há uma diferença entre o Barroco e a Heterofagia, no Barroco esse desejo de ser Outro nega o que se é, se busca ser aquilo que não se é, já na heterofagia se busca absorver o que interessa no outro sem negar a si mesmo, é uma potencialização de si a partir da diferença, a partir do que falta. É esse aspecto que a torna revolucionária, porque quebra com a lógica de que só um lado detém a verdade e possibilita que negros (as), indígenas e o feminino tenham influência na nossa cultura, visto que quebra a lógica maniqueísta de que só o homem, branco, europeu, cristão, detém a verdade sobre o funcionamento do mundo e quem não se encaixa nessas características não tem nada de valor para falar a respeito do mundo. Seguindo nessa perspectiva de que a heterofagia busca suprir as faltas a partir da devoração do outro, aconteceu o mesmo com os movimentos culturais vindos da Europa, no caso, o Classicismo e o Barroco, em que devoramos esses dois movimentos e criamos um novo, o Maneirismo:

Na distinção opositiva entre Clássico e Barroco, o consenso sempre foi o de que faltava algo. Historiadores como Wolffin ficaram perplexos ao ver obras classificadas no Classicismo (portanto do lado do masculino) se movimentarem no sentido da infinitude (onde emerge o furo, indicação do feminino); por outro lado, obras classificadas nitidamente no Barroco e, no entanto, apresentando um regramento quase matêmico. O preconceito do historiador está na base da exigência de que a obra se defina enquanto clássica ou barroca. Assim, aquelas que se revelaram vigorando entre os dois estilos foram chamadas de maneirosas, amaneiradas, até que surgiu, com a obra de Hauser, melhor conceituação do estilo denominado de Maneirismo. (idem, p. 70)

Considerações finais

Lendo os textos desses autores, encontrei uma diferença constitucional entre Brasil e Uruguai que foi como se deu a escravização:

O português foi aquele colonizador que dizia: “o mestre sou eu, logo me desbundo com as investidas do escravo”, ao contrário dos colonizadores espanhóis, ingleses, franceses, que pareciam dizer muito simplesmente: “mestre sou eu”. O escravo sendo o Outro, estabeleceu-se uma relação entre a referência ao furo e a dominação do significante na imposição do processo de colonização portuguesa: maneirismo. (Magno, M. D., 1985, p. 71).

Então, o tipo de escravização que seu deu aqui já se mostra diferente em sua origem, e essa diferença foi o que possibilitou esse dispositivo heterofágico ser tão transversalizado em nossa cultura.

Algo interessante que ocorreu aqui foi que um italiano com grande conhecimento e interesse veio ao Brasil interpretá-lo e tentar descobrir o mito fundador que constitui a nossa sociedade; acabou encontrando o dispositivo fundador, a heterofagia. E nestas páginas acabou sendo devorado, absorvido e defecado. Um processo que ele, depois de um certo tempo aqui no Brasil,  começou a sentir: “Mas talvez a explicação da minha desconfiança diante da antropofagia fosse e seja simplesmente meu medo de ser comido e digerido pelo Brasil. Será que fui? Pois bem, em alguma medida acho que sim. Mas não foi ruim”. (Calligaris, 2017, p. 27).

Referências:

Texto na internet: https://www.estudopratico.com.br/a-exploracao-e-a-quase-extincao-do-pau-brasil/

Texto na internet: http://chc.org.br/silva-leao-oliveira/

“Os nomes do Brasil” em Só História. Virtuous Tecnologia da Informação, 2009-2018. Texto na internet: http://www.sohistoria.com.br/curiosidades/nomes/

 PAINE, Clare; JORGE, Marco (org.)Por um manifesto heterofágico.

CALLIGARIS, Contardo (2017)Hello, Brasil! e outros ensaios: psicanálise da estranha civilização brasileira. São Paulo: Três Estrelas.

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Esta escrita é consequência da disciplina Interpretações do Brasil, oferecida pelo professor Amadeu Weinmann do curso de Psicologia da UFRGS.

 

Redação

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