O dilema do prisioneiro argentino, por Eduardo Rivas e Rodrigo Medeiros

Poderá a realidade vivida pelos cidadãos como resultado das ações da oposição se virar contra a mesma em outubro? E se o discurso de medo do governo encontra eco popular?

Um aspecto crítico do processo político em andamento na Argentina refere-se à grande falta de confiança entre os atores políticos. No livro “História da Argentina” (Editorial Crítica, 2002), de John Lynch e outros, há uma discussão muito interessante sobre esse processo histórico de desconfiança. Pode-se dizer que o passado está sempre muito vivo na Argentina. Viver no sul do Cone Sul é como atravessar uma montanha-russa permanente, na qual os altos e baixos se seguem incessantemente e onde ciclicamente se passa por realidades muito semelhantes. E quando você pensa que não pode ser pior, o limite sempre corre um pouco mais.

Segundo o livro citado acima, “para um país com uma longa história de intervenções militares, o golpe de 1976 não teve surpresas”. Nesse contexto, a desconfiança se torna a regra da sobrevivência no complexo jogo social da política. No golpe estavam as ideias do liberalismo conservador que conquistaram a ditadura para promover o Processo Nacional de Reorganização (1976-1983). José Martínez de Hoz, descendente de uma família tradicional de proprietários de terras, era o ministro da Economia. Segundo Lynch e outros, a situação crítica no setor externo no início de 1976 tinha prioridade para o novo ministro. Em agosto daquele ano a Argentina assinou um acordo com o FMI. As autoridades tentaram resolver os problemas inflacionários. Martínez de Hoz procurou congelar os salários e eliminar os controles de preços existentes. O ministro acreditava que havia chegado a hora de lançar um projeto mais ambicioso: uma estratégia de crescimento liderada pelas exportações.

O crescimento econômico com distribuição regressiva de renda fazia parte dessa estratégia. A indexação da economia tornou a inflação persistente e Martínez de Hoz pediu ao setor comercial uma trégua de 120 dias em abril de 1977. A reforma financeira, que previa uma política monetária restritiva, logo seria apresentada como uma solução. Em pouco tempo, as taxas de juros se mostraram insuportáveis para os setores produtivos e as dívidas corporativas empurraram o sistema financeiro para uma crise. A desregulamentação do mercado financeiro ocorreu no final de 1977. Segundo Lynch e outros, “a obtenção de empréstimos estrangeiros e a política de dinheiro caro doméstico levaram a um processo crescente de endividamento externo”. O setor externo começou a se deteriorar e o Banco Central perdeu as reservas acumuladas, enquanto ocorreu a desvalorização da moeda argentina. O experimento de Martínez de Hoz fracassou, mas ele não seria o único experimento liberal e conservador que fracassaria.

A democratização argentina veria os fracassos dos governos de Carlos Menem, Fernando de la Rúa e Mauricio Macri. De certa forma, esses governos viam o modelo peronista de desenvolvimento autárquico como permissivo para a intervenção discricionária do Estado, algo que restringiria a competição e a eficiência dos empresários nacionais. Para os peronistas, por sua vez, o modelo liberal comprometia a renda dos trabalhadores, endividava e desindustrializava o país. Nesse complexo jogo político, dificilmente poderia ser evocada a confiança na construção de um novo projeto de país. A nostalgia liberal e a peronista são projetos antagônicos que inviabilizam o diálogo político construtivo na Argentina. Atualmente, esse equilíbrio de Nash está presente no processo político em andamento na Argentina, onde cada jogador individualmente não ganha nada modificando sua estratégia enquanto os outros mantêm a sua.

O dilema do prisioneiro é outro grande problema na teoria dos jogos que mostra que duas pessoas podem não cooperar e preferem acusar a outra parte de cometer um crime. Não é preciso muito esforço para perceber que acusações mútuas fazem parte do jogo político argentino, ainda hoje. Sem um piso básico de confiança e cortesia no jogo político, pouco progresso pode ser feito no campo institucional para o desenvolvimento argentino. O governo de Mauricio Macri faliu e a crise política e econômica continua a piorar. Governo e oposição quebraram uma frágil trégua e acusam-se mutuamente de fomentar o pânico. Não há debate político. Tudo se resume a desqualificações.

Mais uma vez, como uma nova virada nessa montanha-russa permanente, o peronismo, a cada dia mais perto de retornar ao governo, acusa o governo em exercício de não ter respostas para a situação, enquanto, paralelamente, pede às agências internacionais que retirarem seu apoio porque o que está por vir será muito diferente do atual e as novas autoridades não enfrentarão as responsabilidades atuais. Parece que Alberto Fernández não quer cooperar e isso tem apenas uma explicação: tentar agravar a situação para que a sociedade argentina aceite qualquer medida que a tire da realidade atual, uma história já vivida no país.

Porém, há uma diferença substancial em relação ao que aconteceu há 30 anos. O peronismo ainda não venceu efetivamente as eleições e, embora tudo pareça indicar que logrará êxito, como no futebol, o jogo não é ganho até que o árbitro apite final. A falta de cooperação será vista pela sociedade como algo inconsequente? Poderá a realidade vivida pelos cidadãos como resultado das ações da oposição se virar contra a mesma em outubro? E se o discurso de medo do governo encontra eco popular?

Em 11 de novembro de 1953, Juan Perón falou na Escola de Guerra e afirmou que “o ano 2000 nos encontrará unidos ou dominados”. Quase 66 anos depois nos perguntamos: como se encontrarão os argentinos em 2020?

Redação

2 Comentários

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  1. Esqueçam o Ciro. Não dá pra contar com ele pra nada. Ciro é oportunista demais, olha para onde o vento sopra para escolher a direção a seguir. Então ele só se alinha de fato a uma frente de esquerda se essa frente estiver bem na opinião pública. Então essa frente é que tem de construir seu caminho sem Ciro. Ele virá à reboque na fartura, ou continuará dissidente na dificuldade da esquerda.
    Mesmo a operação 2018 que não vingou (Cro vice assumindo a cabeça de chapa sem Lula), acho hoje que não teria sido boa. Melhor seria se articulasse com Requião para entrar ou no PCdoB ou PSB e fazer esse papel de vice, assumindo a cabeça quando Lula não pode. Requião é mais esquerda que Ciro, mais confiável, mais combativo, não é viúva de rancores como Ciro, e comunica-se melhor com o povão. Até eleitoralmente, mesmo tendo personalidade pŕopria também forte, tinha mais cara de Lula do que Ciro.
    Para 2022, se não puder ser Lula, e se outro de esquerda não estiver mais viável, prefiro 1000x aliança em torno de Flavio Dino do que de Ciro.

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