Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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O problema da consciência na fenomenologia, por Michel Aires de S. Dias

Os antigos conceberam a realidade como algo que existe em si mesma, com uma estrutura acabada, que poderia ser apreendida pela razão.

O problema da consciência na fenomenologia

Por Michel Aires de Souza Dias[1]

A ideia de uma fenomenologia, entendida como um método para a compreensão dos fenômenos, remete a um velho problema da filosofia: a relação entre sujeito e objeto. Na história da filosofia duas correntes se destacaram em relação ao conhecimento da realidade: o realismo e o idealismo. O realismo deu primazia ao objeto para o conhecimento da realidade. Os antigos conceberam a realidade como algo que existe em si mesma, com uma estrutura acabada, que poderia ser apreendida pela razão. O realismo concebeu o mundo tal como ele é, tal como o vemos e o percebemos. Nesse sentido, o conhecimento da realidade se estabelece como adequação, uma vez que os conceitos e as ideias se adequam às coisas. Os modernos, ao contrário, chegaram à conclusão de que esse modo de conhecer era ingênuo. Contra o realismo ingênuo, os idealistas perceberam que o sujeito tem certa primazia diante do objeto. Eles conceberam o conhecimento como uma atividade que vai do sujeito as coisas. Nesse sentido, o sujeito conteria certas estruturas lógicas subjetivas, que organizaria e daria sentido ao real. A razão apreenderia a realidade de forma coerente a partir de certas estruturas a priori. A percepção e o conhecimento do real, portanto, somente seria possível como representação.

Husserl não satisfeito com nenhuma dessas duas vertentes de investigação, elaborou uma fenomenologia (psicologia descritiva), que busca alcançar um conhecimento objetivo, fundamentado na certeza e na evidência dos estados de coisas, procurando constituí-la como uma ciência rigorosa. Desse modo, ele retoma a velha questão cartesiana que estava na origem da filosofia moderna: Como o conhecimento é possível?  Em oposição a toda tradição filosófica, Husserl procurou reformular a noção de sujeito do conhecimento, tal como Descartes o entendia. Para Descartes, o sujeito do conhecimento não tem acesso direto aos objetos do mundo, mas apenas as representações de sua própria interioridade. O conhecimento é apenas o efeito da ação causal dos objetos do mundo no cérebro. Conhecer é o ato pelo qual o pensamento apreende o objeto ou o torna presente, esforçando-se para formar uma representação que exprime perfeitamente esse objeto. É contra essa razão cartesiano, fechada em si mesmo, que Husserl se opõe, procurando desenvolver uma consciência que se abre ao exterior, que é imediatamente lançada no mundo.

Para um conhecimento objetivo da realidade, Husserl, a partir das ideias do filósofo Brentano, compreendeu a estrutura da consciência como intencionalidade. Esse conceito foi herdado da filosofia medieval e deve ser entendido como um “referir-se a”, um “dirigir-se a”, visando sempre algo. Desse modo, a consciência é intencionalidade, porque se dirige a alguma coisa. Assim, perceber é perceber alguma coisa, imaginar é imaginar é alguma coisa, recordar é recordar algo, amar é amar alguém ou alguma coisa. A consciência como fenômeno é um fluxo temporal de vivências. O que há de peculiar na consciência é que ela dá sentido e significado as coisas. Com isso, ela nunca está fechada sobre si mesma, pois lança nos diretamente no mundo. Como afirma Sartre (2005), a consciência e o mundo são dados ao mesmo tempo. Não se pode dissolver as coisas na consciência. A consciência é pura, é clara como o vento, não há nada nela, salvo um movimento para fugir de si mesmo. Desse modo, a consciência não tem interior, não há nada nela. Se algo tentasse entrar na consciência logo seria repelido para fora. Como explica Moutinho (1995), a consciência é translucida para si mesma, porque não tem conteúdo, não possui sensações, nem imagens, não há nela coisa a inventariar. Isso significa que toda consciência é consciência de si mesma, absolutamente clara para si mesma.

Heidegger (2006), em seu livro Prolegômenos para uma história do conceito de tempo,  avaliou que a consciência intencional não é senão algo formalmente vazio, mas que há uma coisa clara, a de que, acima de tudo, podemos representar o próprio nexo estrutural sem ter que recorrer a nenhuma teoria nem idealista, nem realista acerca da consciência, devemos aprender a ver o que é dado enquanto tal, e a ver que as relações entre as próprias atividades, entre as vivências, não são complexos de coisas, mas que são atividade que tem um caráter intencional.  Desse modo, quando vemos uma bela macieira no jardim e a visualizamos em nossa mente, não significa que há duas macieiras, uma que pensamos e outra que existe no jardim. Para a consciência intencional partimos das “coisas mesmas”, ou seja, temos acesso a macieira mesma enquanto é percebida, ao qual podemos conceber uma macieira representada.   

Para a fenomenologia, a consciência como intencionalidade, como estrutura das vivências, não se reduz apenas ao dirigir-se para alguma coisa, ela é algo mais além disso. Quando olhamos uma cadeira, quando a percebemos, não vemos representações, não aprendemos imagem alguma dela, não notamos sensações. O que vemos é simples e diretamente a cadeira. Esse é o sentido imediato dado do perceber. A cadeira possui uma história que pode ser contada desde sua origem. Ela possui certas características: ela possui materialidade: ela é pesada, tem uma cor, é alta, é larga, desliza de um lugar para outro. Nós a percebemos diretamente a partir de suas características fundamentais. Essas determinações não pertencem somente a cadeira, mas podem ser encontradas em qualquer outro fenômeno da natureza. A cadeira é descrita pela sua situação dada, tal como a vemos. Com isso, não a percebemos a partir de sua representação ou da sensação que nos causa, mas do que é percebido mesmo. Aqui nós temos a intuição sensível da cadeira.

Na teoria fenomenológica não existe somente a intuição sensível da coisa, mas há, junto a ela, a intuição categorial, sem a qual não seria possível perceber, pensar ou imaginar o objeto. A percepção sensível está atravessada pela intuição categorial. As categorias são as características mais gerais das coisas, sem as quais os fenômenos não poderiam ser percebidos concretamente. Existência, tempo, unidade, pluralidade, igualdade, forma, relação são as condições de possibilidade de toda percepção. Não conseguiríamos perceber a cadeira sem essas características universais e necessárias. Quando dizemos a cadeira é amarela e estofada, usamos este “é” no sentido de ser, de existir, de subsistir: ser-amarelo, ser estofada. Segundo Heidegger (2006), o ser não é um elemento real da cadeira. Não é um atributo que pode ser visto. Ser, diz Kant, referindo-se ao ser-real, não é um predicado real do objeto. Do mesmo modo não existe adequação entre o enunciado e o percebido. O enunciado expressa algo que através da percepção é impossível de encontrar.  É nesse sentido que a fenomenologia é uma ciência dos objetos ideais a priori, portanto, é uma ciência universal.

Desde o empirismo inglês, com Locke, vem se argumentando que a origem desses elementos não sensíveis se encontra na percepção imanente, na reflexão ligada à consciência. Essa argumentação tem suas raízes em Descartes e seus princípios se encontram em Kant e no idealismo alemão. Mas, hoje em dia, o idealismo pode agradecer a fenomenologia por ter demostrado que o não sensível, o ideal, não pode se identificar com o imanente, com a consciência, com o subjetivo (HEIDEGGER, 2006).  Por outro lado, esses constituintes universais como o “é”, o “ser”, o “isto” e os demais constituintes são algo não sensível. O que não é sensível não é real, não é objetivo. Desse modo, tendemos a achar que são subjetivos. Mas, se analisamos a consciência, só encontramos juízos, desejos, representações, recordações, ou seja, acontecimentos psíquicos: “Quando se questiona a imanência da consciência, o que se encontra sempre é algo sensível e objetivo, que haveria que considerar componente efetivamente real do discorrer psíquico, mas nada do tipo do ‘ser’, do ‘é”, do ‘isto’” (HEIDEGGER, 2006, p. 84).  Se estamos em um bosque, podemos nos emocionar com a beleza de muitos pinheiros verdejantes, todos iguais, de trocos retos e quase circulares, com copas robustas e formato abobado. Então nos vem à mente a igualdade, a reta, a circularidade e a forma. Então perguntamos, o que são essas coisas: O que é a igualdade? O que é a reta? O que é o círculo? O que é a forma? Constatamos que não são coisas. Não há nenhuma coisa que seja a igualdade, a reta, a forma ou o círculo. Elas de fato não existem.

Para Husserl, as características universais das coisas são objetos ideais. Eles não existem nas coisas e nem na subjetividade humana. Se os objetos reais são temporais, os objetos ideais são intemporais. A cadeira é temporal, mas o ser, a unidade, a forma, a extensão, a relação das partes da cadeira são intemporais. Como afirma Morente (1980, p. 283), “todos esses objetos ideais são eternamente e fora do tempo e do espaço aquilo que são, de uma vez para sempre.” Contudo, o problema que surge é, onde estão localizados os objetos ideais? Há três respostas na tradição filosófica para essa pergunta, mas todas rejeitadas por Husserl. A primeira hipótese é platônica, os objetos ideais existiriam em um mundo à parte: o mundo das ideias. A segunda hipótese é teológica, quando Santo Agostino afirmou que eles se localizam na mente de Deus. A terceira hipótese é idealista, quando Kant afirmou que eles são categorias a priori da subjetividade humana. Segundo o historiador da filosofia Julián Marías (2006, p. 452), há uma grande polêmica entre Husserl e Heidegger sobre esse assunto. Husserl rejeitou à metafísica que herdou de sua época. Ele evitou tudo o que fosse metafísico e afirmou que os objetos ideais têm meramente validade. Este foi um ponto de polêmica entre os dois grandes filósofos, a propósito da verdade. Para Husserl, a fórmula de Newton, por exemplo, seria verdadeira mesmo se ninguém a pensasse. Heidegger diz que isso não tem sentido, que sua verdade não existiria se não houvesse uma existência que a pensasse, se não houvesse nenhuma mente – nem humana nem não humana – que a pensasse, haveria astros, haveria movimento, se quiserem, mas não haveria verdade da fórmula de Newton, nem nenhuma outra. A verdade precisa de alguém que a pense, que a descubra (alétheia), seja homem, anjo ou Deus.  

Referências

HEIDEGGER, Martin. Prolegómenos para uma historia del concepto de tempo. Madrid: Alianza Editorial, 2006.

MARÍAS, Julián. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 

MORENTE, Garcia. Fundamentos da filosofia: lições preliminares. São Paulo: Editora mestre Jou, 1980.

MOUTINHO, Luiz Damon S. Sartre: existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995.

SARTRE, Jean Paul. Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade. Campina Grande – PB: VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 2, n. 01, pp. 102–107, jan./jun. 2005.   


[1] Mestre em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

1 Comentário

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  1. A verdade precisa do Homem para existir, é isto que conclui o filósofo. Antropocentrismo puro e simples. As fórmulas de Newton apenas representam a verdade. E ainda assim, parcialmente. O Universo existe, independente de se algum ser o entende, compreende, sente. A verdade, nesse sentido, não é uma prova ou demonstração dada pelo pensamento humano. A verdade, isto é, o Universo, existe independente de qualquer consciência. Um átomo não existe porque eu não sei dele? Então antes de mim nada existia? Antes da Mecânica Quântica as leis que regem o minúsculo não existiam? Se elas existiam, não eram elas a expressão da verdade, expressão independente de nossa existência?
    Esse modo de pensar, centrado no Homem, na consciência do Homem, esquece, ou pior ainda, nega, que não somos nada além de objetos do Mundo. Meu corpo, minha consciência, minha existência, minha totalidade é apenas mais um objeto do Mundo. E o Mundo existe, independente de mim. Teria outra configuração se eu não existisse, seria ligeiramente diferente, uma “flutuação quântica” em sua totalidade, mas continuaria a existir e a conter sua verdade, que não depende, em nenhum tempo, de nenhuma consciência para existir.

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