BrCidades
Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas
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BrCidades: O processo de revisão do plano diretor em Boa Vista (RR)

O Núcleo do BRCidades em Roraima considera que participação efetiva é aquela em que governos, partilham poder.

MANIFESTO – Núcleo BRCidades em Roraima[1]

O CONTEXTO DE BOA VISTA – RR, O PROCESSO DE REVISÃO DO PLANO DIRETOR E OS LIMITES À PARTICIPAÇÃO POPULAR

A Prefeitura Municipal de Boa Vista – PMBV[2], anunciou em janeiro de 2023 a abertura do processo de revisão do Plano Diretor da cidade. Desde então, vem realizando reuniões nos bairros, com segmentos dos setores econômicos e universidades.

Para executar a revisão do Plano Diretor de Boa Vista e da legislação urbana correlata, Lei de uso e ocupação do solo e de parcelamento do solo urbano, foi contratado o Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM, mesma entidade responsável pela consultoria e assessoramento do Município de Boa Vista na elaboração do Plano em 2006.

O Núcleo do BRCidades em Roraima, entende que esse processo participativo de planejamento urbano, materializado na elaboração ou na revisão dos Planos Diretores das cidades, é antes de tudo um constructo e produto de disputas e debates políticos centradas nos conflitos de interesses que invariavelmente permeiam os espaços das cidades, cuja legitimação das decisões governamentais, reclama a efetiva participação social, como elemento fundamental para se assegurar a gestão democrática dos municípios e o efetivo direito à cidade.

Conforme a Lei Municipal nº 924/2006, o denominado Plano Diretor Estratégico e Participativo de Boa Vista, deveria ter sido submetido à revisão em 2016. Este atraso significativo de 07 (sete) anos, em descumprimento do poder público municipal ao que determina o Estatuto das Cidades, coincidiu com um período crítico (2016-2022) vivenciado pelo município de Boa Vista, exigindo das sucessivas gestões municipais e em especial, do planejamento urbano local, inciativas para mitigar as desigualdades socioespaciais que caracterizam o espaço urbano boa-vistense.

Nos últimos oito anos Boa Vista passou por profundas transformações sociais, relacionadas, sobretudo, ao exponencial aumento populacional provocada pela crise migratória/humanitária venezuelana à partir de 2015. Segundo o IBGE em 2010 a cidade de Boa Vista possuía uma população de 284.313 hab., chegando em 2021 a uma estimativa de 436.591hab. Este aumento populacional exerceu grande pressão sobre os serviços e equipamentos públicos, acentuando a precariedade e as insuficiências da atuação do Estado em todos os níveis de governo.

Outros fatores também ajudam a compreender a singularidade deste momento de revisão do Plano Diretor de Boa Vista, e o quanto o seu atraso, foi comprometedor. Nesses últimos anos houve um aumento de pessoas vivendo em situação de rua, de ocupações urbanas irregulares, e uma enorme população vivendo em abrigos. Ocorreu expressivo aumento da violência vinculada a atuação de grandes grupos do crime organizado na Amazônia, principalmente a partir dos anos de 2016 e 2017, que em meio a greves de policiais promoveram sangrentas rebeliões. Deste então o Estado de Roraima passou por intervenção federal, comanda pelo Ministério da Defesa e da Justiça, através da atuação da Força Nacional de Segurança Públicae com a adoção de Operações de Garantia da Lei e da Ordem – GLO.

Associado a todo esse contexto, também se verificou uma maior pressão sobre as Terras Indígenas e as riquezas da natureza, salientadas pelo incremento populacional e pelo crime organizado, que passaram a constituir verdadeiras hordas de garimpeiros, madeireiros e de todos os tipos de invasores e depredadores, com repercussão direta sob o território urbano de Boa Vista, que por sua vez, se tornou o destino da comercialização dos recursos naturais ilegalmente explorados e de insumos para essas práticas predatórias, que de algum modo, se beneficiam da benevolência e das múltiplas facilidades governamentais.

Esta dinâmica extrativista e sua cadeia econômica clandestina e ilegal influi diretamente no espaço urbano de Boa Vista, que nos últimos anos sofreu significativas alterações nos preços dos imóveis, casas, lotes, terrenos, aluguéis, financiamentos imobiliários, promovendo à especulação imobiliária, gentrificando e segregando cada vez mais a cidade.

O Núcleo do BRCidades em Roraima identifica que o contexto urbano de Boa Vista conserva atualmente, de forma muito nítida, duas zonas territoriais que evidenciam muito claramente essa segregação. De um lado uma cidade rica e dotada de bons equipamentos públicos na zona leste, e do outro, a cidade pobre, abandonada e desassistida na zona oeste, concentrando a grande maioria da população do município. É nessa área da cidade, sobretudo nas arestas do perímetro urbano, que ocorre um aumento expressivo das demandas por serviços públicos e por infraestrutura urbana, sendo nítido o abismo entre ricos e pobres no que se refere ao acesso aos aparelhos urbanos. Tudo isso associado à uma contraditória realidade marcada pela hipermilitarização da cidade de um lado, e de outro, por uma crescente e obscena violência.

Porém, tais problemas e desafios acima enumerados, não são os únicos vivenciados pela capital de Roraima no atual contexto histórico, mas inegavelmente, conferem ao processo de revisão do Plano Diretor de Boa Vista atualmente em curso, na perspectiva do Núcleo do BRCidades em Roraima, a necessidade de se intervir em uma realidade absolutamente singular e complexa, onde se intercruzam questões e atribuições locais, regionais, nacionais e globais.

Nesta conjuntura, assegurar que a população de Boa Vista, caracterizada por uma diversidade de pessoas de múltiplas origens, raças e etnias, sejam efetivamente protagonista das discussões e dos debates que irão se suceder na revisão do Plano Diretor da cidade, é absolutamente essencial e ao mesmo tempo desafiador.

Essencial, pela necessidade de se planejar uma cidade para os próximos 10 anos, e que consiga este planejamento considerar as profundas transformações e a diversidade, a pluralidade e as necessidades da população que atualmente habita a cidade. Desafiador, na medida em que a participação popular, não é exatamente algo que as sucessivas gestões municipais de Boa Vista, historicamente, vem se esmerando em garantir.

O Núcleo do BRCidades em Roraima considera que participação efetiva é aquela em que governos, partilham poder. Aquela que é capaz de incidir e de dar vazão às legítimas disputas pelo território na cidade, disputas para que a cidade cumpra efetivamente a sua função social, que discipline o uso e a ocupação do solo urbano; pela regularização fundiária para fins de interesse social; pelo direito à moradia digna; pelo direito a um programa efetivo de aluguel social. Estas disputas também visam assegurar o direito a alimentação, à cozinhas comunitárias, hortas públicas, mobilidade urbana e pela ampliação da cobertura dos transportes públicos na cidade, em defesa do meio ambiente, pelo saneamento básico e por medidas de mitigação das mudanças climáticas. As disputas são, sobretudo, para se promover uma cidade inclusiva, que seja capaz, nas suas mais elementares rotinas de gestão, de assegurar o bem viver e ao mesmo tempo promover os direitos humanos.

Portanto, a deflagração, ainda que tardia, do processo de revisão do Plano Diretor em Boa Vista neste momento, indica que é hora de pensar no direito à cidade para todos.

Acompanhando e atento a esse processo, o Núcleo do BRcidades em Roraima considera, a partir das primeiras informações disponibilizadas pela Prefeitura de Boa Vista, que os momentos reservados a inserção da população no processo de revisão do plano não asseguram uma participação efetiva. O custo social do atraso na deflagração do processo de revisão, associado aos acontecimentos supracitados, que reconfiguraram o espaço urbano e o tecido social da cidade Boa Vista, não foram, em princípio, levados em conta em relação à definição e escolha metodológica para se assegurar, de forma efetiva, a participação social neste processo.

Claramente, se faz necessário a adoção de posturas e técnicas mais horizontalizadas e participativas, que garantam e ampliem o espectro de escuta da população, repondo a participação popular o seu status de garantia democrática.

Ainda enquanto fragilidade metodológica, é de se destacar a necessidade de uma ampla e clara publicidade em relação ao Plano de Trabalho a ser desenvolvido pela consultoria contratada, havendo até o presente instante comunicações insuficientes, algumas vezes informações apenas parciais, tanto na página institucional criada pela Prefeitura de Boa Vista, ou mesmo em panfletos e nas redes sociais, o que decerto, sem essas garantias, resta comprometido o acompanhamento, o controle social e a participação da população nas atividades programadas.

As reuniões comunitárias realizadas na semana de 27 a 31 de março de 2023, como etapa da fase denominada como Diagnóstica de leitura comunitária, foram realizadas em blocos regionais agrupando uma grande quantidade de bairros bastante populosos em um único local. Considerando que Boa Vista é uma cidade espraiada e com grande deficiência de transporte público, há insuficiência em relação ao alcance quantitativo e qualitativo dos representantes de todos os bairros das regiões onde ocorreram as reuniões.

Ademais, tais reuniões comunitárias, foram marcadas por pouca audiência, por pequenos grupos que participaram das reuniões dessa fase, e que, embora atuantes, centraram os debates em perspectivas individuais, correspondendo mais a anseios privados e particulares do que coletivos em relação ao espaço urbano.

A sub representação quantitativa e qualitativa verificada nas reuniões comunitárias realizadas até aqui, escamoteia as crescentes necessidades de grupos e seguimentos sociais excluídos e invisibilizados na cidade de Boa Vista, suprimindo da pauta de revisão do Plano Diretor as suas demandas coletivas.

Em síntese, é possível perceber que a metodologia adotada para a revisão do Plano Diretor de Boa Vista, que atualmente vem sendo executada, não prestigia toda a malha territorial da cidade, limita a extensão da participação nas etapas de revisão programadas para o plano, não se notabiliza por garantir transparência nas informações disponibilizadas no site da prefeitura, como também não assegura à plena inclusividade dos grupos vulneráveis e diversos que atuam na cidade, como indígenas, migrantes, população em situação de rua, integrantes de ocupações urbanas, dentre outros.

Tendo em conta as experiências do passado, dos dois primeiros Planos Diretores da cidade de Boa Vista, nos anos de 1991 e 2006, que não foram garantidores de uma efetiva participação popular, o Núcleo do BRCidades em Roraima compreende a necessidade urgente de articulação da sociedade civil para intervir neste processo. Compreende ainda que a defesa do direito à cidade numa perspectiva amazônica, por certo, deve considerar as particularidades que caracterizam o contexto urbano nas cidades da região, seus modos de organização comunitária, as especificidades de seu povo, seus processos históricos de urbanização, além de compreender a função das instituições, das forças econômicas e suas incidências na conformação do território.

Em linhas gerais, são estes alguns dos desafios que estão colocados no processo de revisão do Plano Diretor de Boa Vista.

Boa Vista – RR, 19 de maio de 2023.

NÚCLEO BRCIDADES – ESTADO DE RORAIMA


[1]Compõem o Núcleo BRCidades em Roraima o Prof. Ms. Alexandre Soares de Melo (Gestão Pública – IFRR), Prof. Dr. Artur Rosa Filho (Geografia – UFRR), Prof. Dr. Tacio Jose Natal Raposo (Pesquisador do Grupo Interdiciplinaridade, Comunicação & Políticas Públicas – DGP/CNPQ), Prof. Dr. André Augusto da Fonseca (História – UERR e membro da Associação Nacional de História – ANPUH), Prof. Ms. Tony Guarnielle Barbosa Ribeiro – Arquiteto e Urbanista – UNAMA e SEINFRR), Prof. Ms. Roniel Vitor de Oliveira (Geografia – SEED/RR).

[2] https://boavista.rr.gov.br/plano-diretor

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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