Onde se explica como Vasco da Gama começou a Guerra da Pimenta em Lisboa, por João Roque Dias

Foram tempos gloriosos, os descobertos pelo Gama, e de que sou um orgulhoso herdeiro: adoro pimenta, moída no momento, se possível

Vasco da Gama

Enviado por Gilberto Cruvinel

Onde se explica como Vasco da Gama começou a Guerra da Pimenta em Lisboa

por João Roque Dias

Hoje, 8 de Julho, mas de 1497, a armada de Vasco da Gama partia de Lisboa a caminho da Índia. Era uma armada bastante respeitável em tonelagem: a nau capitânia, São Gabriel, de 120 tonéis (cerca de 750 t de deslocamento), ia comandada por Vasco da Gama, e como piloto, Pêro de Alenquer; a São Rafael, de 100 tonéis, era comandada por Paulo da Gama (irmão do Vasco) e ia pilotada por João de Coimbra; a Bérrio, de 80 tonéis, levava como comandante, Nicolau Coelho e, como piloto, Pêro Escobar, e uma barcaça de mantimentos, a São Miguel, de 200 tonéis, comandada por Gonçalo Nunes, e pilotada por Afonso Gonçalves. Como se vê, a fina-flor da marinhagem portuguesa.

Os mantimentos tinham sido planeados para três anos: biscoitos (ou seja, pão cozido duas vezes, para eliminar toda a humidade e o bolor que a acompanha), feijão, carnes secas, vinho, farinha, azeite, salmouras e umas coisas de botica (farmácia). Estavam também previstos reabastecimentos e aguadas ao longo da costa de África.

Pelo caminho, foram implantados 5 padrões: faziam uma cova, espetavam lá uma coluna de pedra com o brasão de Portugal e estava declarada a propriedade daquelas terras. O sistema era simples e eficiente e permitia poupar em escrituras nos notários.

Conta também a História, que Gama foi portador de uma carta de Dom Manuel I para o Samorim de Calecut, o Sr. Samutiri Manavikraman Rajá. Mas, como disse numa conferência da Abrates em Porto Alegre, em que fui honrado pelo convite para fazer a palestra de abertura, ninguém sabe, nem se interessa em saber, quem traduziu o raio da carta ou como falaram uns com os outros.

E foi assim, com a chegada do Gama à Índia, que ficaram lixados os árabes que andavam a vender, com lucros astronómicos, as especiarias aos mercadores italianos e também estes mesmos mercadores. Os lucros astronómicos tinham agora mudado de mãos. A tal ponto que, anos mais tarde, o dinheiro, impossível de contar à peça, era contado às mesas, na Casa da Índia em Lisboa, criada logo em 1503, na “mesa do conto”: iam-se despejando as moedas na mesa e, quando começassem a cair, estava feita a contagem.

— Uma mesa. Venham mais moedas.

Mas não se julgue que era tudo lucro. Boa parte do dinheiro arrecadado no negócio tinha de ser pago aos financiadores privados das expedições portuguesas. E quem eram eles, perguntais vós? Os mesmos ricos mercadores italianos, que, perdido o negócio com os árabes, arranjaram maneira de continuar a ganhar dinheiro com os novos donos da rota das especiarias. Que diabo, já nessa altura, o dinheiro não tinha cor.

Pimenta do Reino

E, para haver a certeza que o dinheirinho da pimenta ficava cá todo, a pimenta destinada ao Brasil vinha primeiro a Portugal, pagava o devido imposto, e só depois era embarcada para a nova colónia, onde lhe começaram a chamar (e ainda chamam) “pimenta do reino”. O que, séculos mais tarde, com empregados de mesa brasileiros, deu origem a mais uma confusão. Chamo-lhe a “Guerra da Pimenta” e as escaramuças desta guerra desenrolam-se assim: eu peço “pimenta” e ele traz-me “piri-piri”, eu insisto que quero “pimenta”, ele aponta para o “piri-piri” que me pôs à frente e eu continuo a insistir que quero “pimenta”. Este diálogo de surdos tem tido diversas variações, conforme o meu estado de espírito do momento. Um dia, a coisa só acabou quando disse: «caríssimo, como estamos no “Reino”, não faz sentido chamarmos “pimenta do Reino” à pimenta, não lhe parece?». Um colega português, atento, arbitrou a “refrega” e deu-me a “minha” pimenta.

Foram tempos gloriosos, os descobertos pelo Gama, e de que sou um orgulhoso herdeiro: adoro pimenta, moída no momento, se possível, e ponho-a em quase tudo, desde sopas a saladas. Nos bifes, então, se vierem sem pimenta, armo uma tão homérica bernarda, que nenhum cozinheiro poderá esquecer-se durante muito tempo. E se o bife vem com sauce aux trois poivres, conto as pimentas, uma a uma, que a mim ninguém passa a perna na pimenta.

João Roque Dias, Tradutor, Lisboa, Portugal.

Redação

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