Na cozinha de Rubem Alves- o prazer de compartilhar muitos prazeres

 

A SENSUALIDADE DA COMIDA

 

 

 

VEM PRA JUNTO DO FOGÃO

 

 

Poema Culinário

No croquete de galinha,
A cebola batidinha
Com duas folhas de louro
Vale mais do que um tesouro
Também dois dentes de alho
Nunca serão espantalho.
(Ao contrário)
E três tomates,
Em vez de causar dislates,
Sem peles e sem sementes,
São ajudas pertinentes
Ao lado do sal, da salsa,
(A receita nunca é falsa)
Todos bóiam na manteiga
De natural doce e meiga.
E para maior deleite,
copo e meio de leite.
Ah, me esqueci: três ovos
Bem graúdos e bem novos
Junto à farinha de rosca
(Espante-se logo a mosca)
a pitada de óleo,
Sem se manchar o linóleo,
E mais farinha de trigo…
Ai, meu Deus, deixa comigo!

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

 

Saborear um bom prato é para poucos.

Come-se atropeladamente, sem se degustar dos temperos especiais que estão ali nos pratos, como também sem se desfrutar do prazer da conversa lenta e minuciosa ao redor da mesa. 

Cada lembrança gustativa pode valer por muitas horas de divã, acredite. Mas tem que ser assim, numa refeição completa, na qual abastecem-se de gostos os gostos de viver.

 

 

Comida mineira repleta de verduras, legumes, queijos, doces de frutas, ambrosia, de se comer rezando depois das missas, que aqui ouço a população correr a atender os sinos.

 

A carne de galinha e seus desdobramentos em iguarias estupendas. 

 

 

 

 

 

O lombo de porco e tudo que vem dele, subvertendo pesquisas que ensinam isso e aquilo como proibições à saúde. E por Minas não ter tido histórico de criação de gado bovino, foram os frangos, ou as galinhas como diz o carioca, que sustentaram por muitos e muitos anos sua culinária, ou como se diz agora também, sua gastronomia. A interessante “comida de boteco”, com pastéis de angu e iguarias para se adorar… 

E até a releitura dos pratos, agora com menos calorias, nessa “nova cozinha”, tendência de toda a gastronomia atualmente.  

 

 

Comer faz bem. Comer junto, mais bem ainda. Comer e saborear as conversas com os temperos que cada um traz na sacola- da viagem – vida é insuperável.

 

O nosso slow food  à brasileira é muito anterior, muito superior, não é mesmo?

Não sei se vem daí , por analogia talvez, o epíteto ” mineiro come quieto “. Vai se saber …

Êta, prazerzão esse de comer !

 

A COZINHA DA CASA DE RUBEM ALVES

 

Rubem Alves

 

Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma.

Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.

 

“Seria tão bom, como já foi…”, diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas…

 

Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: “A vela queima só. Não precisa de auxílio. A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma chama suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito…” Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha.

 

Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.

As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.

O fogão de lenha nos faz voltar “às residências de outrora, as residências abandonadas mas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas” (Bachelard). Exupéry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.

 

Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.

 

Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante, mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher chuchus, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.

 

Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.

 

As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.

 

Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro – talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.

 

Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: “a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia.” Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.

 

Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de berinjela, sopa da mandioquinha com manga, sopa de coentro… Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma…A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)…

 

(Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000.)

 

Saiba mais:

http://rubemalves.com.br/site/

http://www.slowfoodbrasil.com/

http://historiasylvio.blogspot.com.br/2013/01/cozinha-mineira.html

http://www.malaguetanews.com.br/destaques/intencoes-culinarias-de-drummond

Redação

15 Comentários

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  1. Quem não conhece um docinho bem caseiro

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=4ioNa2JepE%5D

    Quem não conhece um docinho bem caseiro
    Hoje enfeita os tabuleiros nas festas do interior
    É tão verdinho que o olhar da gente vidra
    Chama-se doce de cidra com um pouquinho de amargor.

    O amarguinho que ele tem é inofensivo
    Não é doce enjoativo, é gostoso de comer
    Mas, para mim,doce de cidra é um veneno
    Apesar dele pequeno fez tão grande o meu sofrer.

    A historia que eu vou contar tudo acontece
    Me lembro,eu assistia a um leilão
    Na vila era dia de quermesse
    Festa tradicional do meu sertão.

    Juntinho do palanque, uma doceira
    Cabocla mais bonita que eu já vi
    Seus olhos eram verdes tal o doce
    Confesso que até me confundi.

    A festa se acabou e ela foi embora
    Os olhos cor de cidra alguém levou
    E quando vejo doce de cidra em tabuleiro
    Sinto tanto desespero do amargo que ficou.

  2. Gosto

    Gosto de cozinhar.  O ganho é perceber o prazer dos comensais, reunidos, conversando, sem necessariamente dar uma atenção especial ao quitute, mas visivelmente satisfeitos com a degustação.

     

    1. Chega aqui pra prosa, comadre !

      Só de marra vou fazer pro café da tarde.

      Que Whats App que nada, vem prosear sem onomatopeias, sem pontuação de facebook, vem rir gargalhando, cê boba.

      Eita trem bão , rir dos outros, rir da gente mesma.

      Bão dimais! 

      1. Pôxa …

        Convida o Mineirim… Eu fiquei devendo a ele um café com bolo de fubá.  Mas agora ele só quer saber de cobertores no friozinho da manhã, banho de lagoa com patinhos e Monstro do Lago Ness …  Fazer o quê!  A fila anda …

        Mas você convidando tenho certeza de que ele vai.  E vocês estão aí próximos.   Eu tô longe!

        Qualquer hora dou um pulinho em Barbacena, se convite houver.  Rs.

        Bão dimais!

         

          1. Tá certo …

            Preciso parar de me preocupar com o Guru.  Ele não precisa de atenção, né mermo???

            Vamos nós então !   A que horas eu passo ?

            Café coado por favor !!  Detesto expresso.

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