Onde o Rio é mais Brasil

Que o Rio de Janeiro é lugar sui generis, ninguém duvida. Festejado em prosa e verso, o cartão-postal do país mescla vegetação, montanha e mar, luminosidade e calor, verde e azul, gente relaxada, condomínios de luxo e vida cultural ativa. Mas a cidade que é puro charme oferece ainda outra faceta menos edificante e mais dramática. Estima-se que existam 700 favelas encravadas em solo urbano, traficantes de drogas aos borbotões, milícias para todos os gostos, meninos de rua, policiais violentos e corruptos, governos ineptos e muito, muito fisiologismo político. Acertadas as contas, fica valendo a glosa: “Capital (…) do melhor e do pior do Brasil”.  

   Sim, os cariocas sintetizam o “modus vivendi” do brasileiro típico (se é que há). E deste ângulo não cabem reparos. Acostumamos a ver o Rio como uma fantástica panela de pressão sempre prestes a explodir. Talvez devêssemos pensá-lo agora não como um experimento exótico separado de nós, mas como peça de um grande quebra-cabeças que fracassou na tarefa essencial: refrear a cupidez de suas elites econômicas e políticas. A miopia aqui reside em tomar a capital do antigo Estado da Guanabara por exceção, quando na verdade ela é a regra. O Brasil contém doses elevadíssimas de Rio de Janeiro, de Norte a Sul.   

O caráter insólito relativamente ao Rio está na maneira como certos fatores se combinaram no terreno “fértil” da cidade fluminense. Desde a topografia montanhosa até a imigração desordenada, passando pelas ocupações ilegais e licenciosidades dos agentes do Estado, tudo favorece a ação de grupos que buscam remover à força os obstáculos entre seus interesses e a satisfação dos mesmos. No caso da urbe carioca, o interesse das organizações criminosas é abocanhar cifras cada vez mais polpudas, e o meio para este fim tem nome próprio: narcotráfico.  

A julgar pela gravidade das conexões ligando funcionários do Estado aos cartéis de droga no mundo, o Rio – e o Brasil como um todo – está diante do pior dos pesadelos. Trata-se de um processo que corrói o tecido social retirando das instituições estatais a legitimidade na intermediação dos negócios envolvendo a res (coisa) publica. Exemplos abundam. A Colômbia dos anos 1980 foi apelidada de “narcodemocracia”, época em que o traficante Pablo Escobar desafiou (com êxito) as autoridades daquele país. Dentre as façanhas do criminoso, destacam-se a morte de um ministro da justiça, além de outra ligada a Luis Carlos Galán, então candidato à presidência da Colômbia. Atualmente pode-se identificar uma linha do comércio ilegal de drogas cruzando as Américas. Em Ciudad Juárez (México), os assassinatos no ano de 2009 totalizaram quase 3.000. Chega a parecer invenção do jornalismo-catástrofe, mas em Culiacán, também no México, há centenas de “narcotumbas” ou capelas mortuárias de traficantes que chegam a custar R$ 150.000,00. Na americana El Paso (Texas), a secretária de Estado Hillary Clinton reconheceu a baixa efetividade das forças policiais no combate ao narcotráfico. Os guatemaltecos, por seu turno, convivem com uma média de 25 homicídios por semana (números da Cidade da Guatemala/2009). Já El Salvador registra índices alarmantes de delinqüência. Berço do MS-13 (Mara Salvatrucha) – gangue violentíssima de salvadorenhos com ramificações nos EUA – seus membros ingressam cedo na facção e acabam imigrando para os Estados Unidos. Em território ianque, nos subúrbios de Los Angeles, aprendem o fino do repertório criminal até serem deportados, quando então regressam a San Salvador sem os elos afetivos que lhes inibiam a brutalidade cega. Saldo? Violência em dobro e novas modalidades delitivas. No momento em que este artigo é escrito, as autoridades de segurança da Jamaica confrontam uma centena de criminosos nas ruas de Kingston. Aliados à população mais pobre do país, esses homens juraram defender Christopher ‘Dudus’ Coke, narcotraficante local a quem as forças jamaicanas de segurança caçam com o objetivo de extraditá-lo para os Estados Unidos.

Mudam-se os países, não o contexto. De modo que em termos políticos e sociais essas áreas apresentam flagelos comuns:  

i) desigualdade extrema/concentração de riqueza;

ii) instituições políticas débeis e sem controle;

iii) investimento pífio do governo em infraestrutura;

iv) alta demanda por drogas (mercado ávido e fiel);

v) corrupção endêmica (estatal e privada);

vi) elites (políticas ou não) alinhadas com o crime; e

vii) forças policiais (em sua maioria mal preparadas, corruptas e violentas). 

 

A despeito das suscetibilidades que se possa ferir, uma constatação é inevitável: sociedade civil e lideranças políticas nacionais subestimam a gravidade do que ocorre no Rio de Janeiro.  A cidade se “salvadorizou” há muito. Para se ter uma idéia, de 1980 a 2000, segundo o IBGE, a taxa de homicídios cresceu 130 % na Região Metropolitana. A pobreza vem de longa data no Rio, mas a miséria extrema e seu lado odioso – a multiplicação dos homicídios violentos entre jovens – figura nas estatísticas oficiais apenas nos últimos 30, 40 anos. É mais ou menos o mesmo tempo que levou a MS-13 para se instalar em El Salvador e produzir naquele país um banho de sangue.

 

    

 

 

Redação

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