Ciência, por Gustavo Gollo

​Ciência, por Gustavo Gollo

Como é natural, cientistas supõem a si mesmos as grandes autoridades sobre sua própria atividade, a ciência. Existe, no entanto, um ramo da filosofia, a epistemologia, que trata exatamente desse tema. Surpreendentemente, aos olhos desses estudiosos, os cientistas, em geral, costumam ter uma compreensão muito vaga sobre o assunto!

A constatação é quase cômica, sugerindo que a presunção de tais filósofos transcenda a barreira da petulância. O fato, no entanto, é que embora os cientistas acreditem ter completa autoridade sobre o tema “ciência”, possuem apenas uma noção muito ingênua sobre o assunto, conclusão a que eles próprios chegam, e bem rapidamente, caso frequentem debates, ou aulas, com epistemólogos, os especialistas na área. Apesar da aparente presunção dos filósofos, todos os que se envolvem nos debates concluem o mesmo, constatando muito rapidamente a ingenuidade dos cientistas acerca do que seja a ciência.

Por haver uma quantidade muitíssimo superior de cientistas que de epistemólogos, por tais criaturas serem virtualmente desconhecidas, e por parecer tão natural que sejam eles as maiores autoridades sobre o assunto, a visão ingênua dos cientistas sobre ciência prevalece amplamente nos meios de comunicação, sendo muito mais divulgada que a dos filósofos, eternizando, em consequência, um modo insustentável de encarar a ciência. Entre os cientistas, além de gigantesca, a desinformação sobre a natureza da ciência é altamente danosa.

De acordo com a visão ingênua de ciência, Galileu teria instituído o método experimental, o fundamento de toda a ciência, soltando objetos do alto da torre de Pisa para provar, desse modo, que caíam todos com a mesma velocidade. Quem se atrever a consultar os escritos de Galileu se surpreenderá com a forte argumentação teórica em favor de tal conclusão que, segundo historiadores, nunca teria sido testada empiricamente. (Acompanhem o raciocínio: se dividirmos um objeto em 2, os pedaços, por serem mais leves, devem cair mais lentamente? E se em seguida colarmos os pedaços, a velocidade deve mudar? Teria a cola algum poder acelerador? Deveria a quebra, ou a cola, alterar a velocidade de queda? Serão as considerações acima suficientes para garantir a invariância da velocidade em função do peso? Será necessário, ainda, realizar os testes?).

Mesmo na eventualidade de Galileu ter realizado o teste, teria feito isso para confirmar ou negar uma hipótese prévia: a relevância da experiência se impõe após a formulação de hipóteses, não antes. Além disso, a experiência não é suficiente para provar verdades científicas. Tais conclusões, estabelecidas por Karl Popper, quase um século atrás, e admitidas atualmente por todos os estudiosos da ciência, desmistificaram o ideal ingênuo de ciência e de prova científica baseadas em observações. O papel da experiência consiste em refutar teorias, não em prová-las.

A justificativa de tal conclusão é bem simples: por mais estabelecida que esteja uma dada hipótese, por maior que seja o número de observações que a tenham confirmado, nada impede que a observação seguinte a refute, bastando uma única observação, bem respaldada, para tal.

Não contente em desmistificar as crenças fundamentais dos cientistas sobre sua própria atividade, Popper propôs uma linha de demarcação que exclui da prática científica uma parte considerável de seus supostos membros; quero dizer, aceitando-se o critério de demarcação entre teorias científicas e não-científicas proposto por Popper, conclui-se que a maioria dos químicos, biólogos e “cientistas”, em geral, não faz ciência! (Imaginem o ódio devotado aos popperianos por alguns desses excluídos).

Apesar da aparente presunção, Popper é, sem dúvida, o mais influente teórico sobre o tema. [Thomas Kuhn, seu “opositor oficial”, aparece em várias listas como o autor mais citado do mundo!, mas, ao contrário de Popper, Kuhn não se propõe a normatizar a conduta dos cientistas, não lhes diz como devem fazer seu trabalho, Popper faz isso. Enquanto Kuhn tenta descrever a prática de um conjunto de profissionais chamados “cientistas”, Popper propõe uma atividade capaz de promover o crescimento do conhecimento, a que ele denomina “ciência” (os que a executam devem ser apropriadamente chamados cientistas, e apenas esses)].

Mas, em que consiste. Segundo Popper, a prática da ciência, essa atividade capaz de promover o crescimento do conhecimento? Sua receita para fazer ciência é, de fato, extremamente simples: invente uma hipótese, e depois tente refutá-la executando experimentos cujos resultados podem, em princípio, explicitar a falsidade da teoria. Boa ciência resistirá às sucessivas e sempre renovadas tentativas de refutação. Esse jogo, no entanto, nunca termina. Cientistas devem buscar, incessantemente, novas maneiras de refutar as teorias já propostas. Confirmações da teoria podem reforçá-las cada vez mais, mas nunca as poderão garantir. Nenhuma teoria, nenhuma hipótese, por mais confirmada que já tenha sido, torna-se imune a novas tentativas de refutação.

O papel dos cientistas é inventar e reinventar hipóteses discrepantes e capazes, em princípio, de revelar os equívocos das teorias anteriores; e, em seguida, testá-las.

A frase acima consiste em um bom resumo das ideias de Popper.

Exigências adicionais somam-se a essas, por exemplo: boas teorias são construídas de maneiras que as tornam, em princípio, refutáveis. É muito fácil construir teorias irrefutáveis, bastando para isso dominar os fundamentos de lógica. Tais teorias – chamadas por ele “teorias metafísicas” –, no entanto, são vazias, não têm conteúdo informativo.

Ciência e conhecimento são temas importantes que permeiam nossa compreensão acerca de tudo. Aos que queiram se inteirar do assunto, recomendo a leitura de “A lógica da investigação científica”. Partes desse livro, no entanto, são muito específicas, excessivamente técnicas e detalhistas, e quase não interessam à maioria; podem ser ignoradas (faça isso sem pudor); a edição da coleção “Os pensadores” faz isso, é a que recomendo. A primeira parte do livro é bem curtinha (20 e poucas páginas), as ideias fundamentais de Popper estão lá. Os que a lerem ganharão muito com pouco esforço, aconselho a todos. Os cientistas, especialmente, são fortemente recomendados a isso. Recomendo também a leitura do capítulo seguinte, o de número 3. Preguiçosos podem parar por aí. Interessados em ciência, em geral, muito ganharão com essa leitura.

Popper publicou muitos livros, não sei bem o que pensar deles. Muitos especialistas sobre sua obra dão atenção exagerada, creio, a seus outros textos, e acabam por confundir e enfraquecer a proposta inicial do autor, sua ideia fundamental. Em minha opinião, o restante de sua obra tem pouco interesse.

Tento fazer ciência popperiana, ou seja, minhas teorias são inspiradas nessa metodologia.

Esta teoria foi criada com o propósito explícito de ilustrar a metodologia popperiana:

https://jornalggn.com.br/fora-pauta/por-que-os-insetos-sao-atraidos-pela-luz-por-gustavo-gollo

Esta também ilustra a metodologia popperiana:

https://jornalggn.com.br/fora-pauta/como-surgiu-a-reproducao-sexual-por-gustavo-gollo

Dei em ambas, pouca ênfase à parte experimental, aos testes da teoria; deixei, como usual, a execução dos testes empíricos a outros. Imaginar e executar intentos de refutar a teoria faz parte do jogo. Tentativas assim são muito bem-vindas.

Aqui, trato de outros modos de conhecimento também chamados usualmente de ciência:

https://jornalggn.com.br/fora-pauta/cinco-concepcoes-de-%E2%80%9Cciencia%E2%80%9D-por-gustavo-gollo

Redação

7 Comentários

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  1. Texto sob censura, ocultado dos motores de busca

    Reeditei esse texto porque o original se encontra censurado, ou abafado, oculto dos motores de busca, como o google. Lamentavelmente, a nova publicação ficou do mesmo jeito. Digitando-se “ciência, Gustavo Gollo” no google, nenhuma das duas é mostrada.

     

  2. Gustavo

    Me parece que Popper em sua obra não pretendeu refutar os cientistas, mas sim os positivistas lógicos, e o empirismo, mesmo o não ingênuo. A cŕitica de Popper ao indutivismo é bastante contundente, mas isto não refutou os cientistas.   Me parece também que outros epistemólogos como Lakatos  questionaram Popper. Mas não me parece que nenhum deles afirmou que o que os cientistas fazem não é ciência. Devo concordar que muitos cientistas são ingênuos no que tange às perguntas da epistemologia. Mas em sua práticas o papel da  verificação, refutação e ou falseamento estão presentes de forma muito mais sofisticada e dinâmica de tal forma que não cabem na forma tão esquemática como pretendem  alguns  Popperianos nem tão social como alguns  Kuhnianos e de uma boa  parte da epistemologia. E com certeza não cabem no discurso de muitos cientistas, que  de forma ingênua repetem apenas o mantra da teoria- verificação empírica

    Deve-se atentar que  termo ciência e cientista são muito genéricos.

    1. Mas não me parece que nenhum deles (epistemólogos) afirmou que o

      “Mas não me parece que nenhum deles afirmou que o que os cientistas fazem não é ciência”. Não, nenhum epistemólogo afirmou isso. Ocorre que uma parte considerável daquilo que é usualmente considerado ciência, não se qualifica como ciência nos critérios popperianos, muito mais restritivo que os usuais. O que Kuhn considera “ciência normal” por exemplo, não é considerado ciência por Popper, para quem “ciência revolucionária” é uma expressão pleonástica.

      “Deve-se atentar que  termo ciência e cientista são muito genéricos”  sim, são, mas não para Popper.

      1. Ok Gustavo

        Acho que o  meu ponto é este mesmo  os criterios de demarcação de Popper são restritos, embora sua crítica ao indutivismo seja extremamente contundente. Eu creio que Popper tocou aspectos importantes  da ciência, sua visão foi seminal, e muitos trabalhos de outros epistemólogos avançaram criticando Popper.

        Um abraço

  3. Parte do problema

    Correção, a solução do problema foi parcial, esse texto, assim como meus últimos, não aparece nos motores de busca como “notícia” ou “news”, o que os deixa bastante relegados, quase inacessíveis.

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