BRICS tenta redesenhar a ordem internacional, por Cláudia Hoirisch

O BRICS é um grupo  transregional de potências em ascensão, que surgiu em resposta à demanda por uma melhor governança global

do CEE Fiocruz

BRICS tenta redesenhar a ordem internacional

por Cláudia Hoirisch

 O BRIC surgiu de uma iniciativa russa quando os Ministros de Relações Exteriores do Brasil, Rússia, Índia e China se reuniram pela primeira vez em 2006, às margens dos debates da Assembleia Geral das Nações Unidas.

A convergência com o G20 veio rapidamente quando os países do grupo foram golpeados pela crise financeira global. Os Ministros da Fazenda do BRIC se reuniram na véspera da reunião dos Ministros da Fazenda do G20, em 2008, e Comunicado do BRIC apontava o desejo de reformar as instituições financeiras e a governança global.

Os líderes do BRIC se encontraram informalmente pela primeira vez em Tóquio em 2008, durante a Cúpula do G8, e decidiram fazer uma reunião formal no ano seguinte, em Ekaterinburgo. Na Rússia, os líderes definiram uma das missões do grupo que é o de promover a reforma das instituições financeiras internacionais e de cooperar em questões prementes do desenvolvimento global[1]

A África do Sul foi convidada a se juntar ao BRIC em dezembro de 2010 e, em 2011, passou a integrar o BRICS, participando, naquele ano, da 3ª Cúpula.

O BRICS é um grupo  transregional de potências em ascensão, que surgiu em resposta à demanda por uma melhor governança global e à incapacidade das organizações multilaterais de responderem aos desafios atuais. 

Mas, se, de início, o quinteto ainda tinha esperanças de reformar o sistema multilateral, de um tempo para cá começou a fazer novas alianças e criar instituições que pudessem resultar em um mundo multipolar. Exemplos dessas alianças foram: a realização, em 2014, de um Fórum de Diálogo com líderes sul-americanos, para apoio aos processos de integração da região, em particular a Unasul[2]; os Fóruns de Diálogos estabelecidos com países não-BRICS em 2015 (líderes da União Econômica Eurasiática e OCX)[3]; e a criação de instituições, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD)[2] e o Arranjo Contingente de Reservas (ACR), em 2014[2]

Na visão do prof. José Luís Fiori, a invasão e a resistência russa dentro do território da Ucrânia,  diante da intervenção dos EUA e os países da OTAN, já  romperam com a ordem mundial estabelecida pelos EUA e seus aliados depois do fim da Guerra Fria. Além disso, a guerra na Ucrânia acelerou a formação de uma aliança entre a Moscou e Pequim, estreitando as relações econômicas e estratégicas dos dois países. Agora, temos essa recente expansão do BRICS. É perceptível que os EUA estão atuando de forma bastante reativa perante a iniciativa militar russa e a iniciativa econômica chinesa, podendo-se afirmar que a guerra na Ucrânia vem encolhendo o poder do império militar global dos EUA[4].

O fato é que o BRICS tem se mostrado cada vez mais intolerante a um sistema mundial que se pretenda unipolar. Para se desvencilhar da unipolaridade, optou por se expandir no espaço deixado pela perda de liderança dos europeus e norte-americanos, em especial, depois do fracasso das tentativas de convencer os países de aplicar sanções econômicas contra a Rússia. O malogro se deu porque um grupo de no máximo 40 países se alinhou aos EUA e à OTAN, o que representa uma minoria dentro do sistema ONU. O objetivo dessas sanções era isolar e enfraquecer economicamente a Rússia, mas acabou isolando o G7 e enfraquecendo a economia europeia[4].

Depois das sanções aplicadas sobre a Rússia, a China ficou bastante apreensiva em ser o próximo país a sofrer sanções por parte dos EUA e Europa, que temem que o fornecimento de tecnologia à China possa ser usado contra eles.

Além do desenvolvimento econômico e social, o BRICS tem por objetivo ampliar a influência de seus países nas discussões políticas mundiais, posicionando-se a respeito de diferentes temas, como a reforma das instituições multilaterais; a resposta à crise financeira global; a recuperação econômica; a melhoria da saúde e o combate a pandemias; a redução da pobreza; agricultura e segurança alimentar; o meio ambiente; o comércio; a segurança, entre outras áreas estratégicas.

A grande novidade da 15ª Cúpula, realizada de 22 a 24 de agosto em Joanesburgo, África do Sul, foi no desenvolvimento institucional do grupo expresso em uma ampliação inédita. O BRICS decidiu anunciar a adesão de seis países:  Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos como membros de pleno direito. Isso depois da primeira expansão em 2011, quando ocorreu a entrada da África do Sul.  A nova incorporação passará a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2024[5].

O grupo original do BRICS já abrigava três das cinco economias mais ricas do mundo, em paridade de poder de compra (PPP). Depois da admissão dos seis novos membros, o BRICS+6 (ou BRICS 11) vai ter cerca de 36% do PIB mundial em PPP (o G7 tem 30,7% e o BRICS antes da ampliação tinha 32%) e mais de 46% da população mundial, o que per se já mostra a importância do grupo em sua forma ampliada. Além disso, abrigará 42% do petróleo mundial (Arabia Saudita, EAU, Irã, além de Rússia, China e Brasil), grandes produtores de grãos e alimentos (Argentina, Etiópia, China e Brasil; a India produz para consumo próprio), novas tecnologias (computação quântica, IA e robótica) aliada a velhas tecnologias militares, 72% dos minerais de terras raras, como o lítio que é usado em baterias de carros elétricos (Argentina, China, Brasil), 75% do manganês global e 50% do grafite mundial[6].

O desejo de expandir o grupo se mostrou essencial para limitar os riscos decorrentes da fragmentação geopolítica e econômica, e não há dúvidas que o movimento de expansão foi estimulado pelo conflito e pelas sanções em curso.

Existe uma dinâmica global para o uso de moedas locais e sistemas de pagamentos alternativos e, já que os países do grupo querem aumentar as opções de pagamento para se descolar do dólar, concordaram em estudar a adoção de uma moeda de referência do BRICS para o comércio internacional. A nova configuração do BRICS pode ajudar a acelerar a desdolarização do Sul Global,[5,7].

Para fomentar o crescimento, reconheceram o papel do NBD na promoção da infraestrutura e do desenvolvimento sustentável de seus países. Esperam que o Banco forneça soluções de financiamento mais eficazes e continue com um processo constante de expansão de seus membros[5,7].

A guerra na Ucrânia apontou as limitações do Conselho de Segurança da ONU. Na Declaração dos Líderes, defenderam o compromisso com a resolução pacífica do conflito ucraniano por meio de diálogo e diplomacia.

Em relação à saúde, os países integrantes do BRICS enfrentam desafios de saúde semelhantes, incluindo a dupla carga de doenças, o acesso desigual aos serviços de saúde e custos dos cuidados de saúde cada vez maiores. Em 2011, a Diretora Geral da OMS, Margaret Chan disse que “os BRICS são reconhecidos por seu potencial de influenciar a saúde global, com (…) um grande potencial para mover a saúde global na direção certa (…) para reduzir as lacunas nos resultados na saúde e conferir maior equidade na forma como os benefícios do progresso médico e científico são distribuídos…”[8]. E um relatório recente constatou que o apoio aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) terá um déficit de US$ 17.6 trilhões a cada ano pelo restante da década[9].

Essa enorme lacuna exige que os doadores cumpram seus compromissos em relação aos objetivos globais, mas a triste realidade é que os países não encontrarão essa quantia adicional a cada ano para os objetivos, então nada mais lógico do que os países BRICS se voltarem para o caminho da cooperação[10].

Para prevenir riscos de doenças infecciosas em massa, fornecer medidas de alerta precoce e frear uma disseminação nas fronteiras, os países decidiram criar um Sistema Integrado BRICS de Alerta Precoce capaz de prever pandemias e concordaram em identificar as populações vulneráveis[11].

Os países BRICS estão enfrentando diversas emergências nos últimos anos: inundações, secas, escassez de água, crises energéticas, surtos de doenças transmissíveis, incluindo Covid-19, cólera e outras com graves consequências para a saúde.  Em vista disso, recomendaram o estabelecimento de Centros de Operações de Emergência (EOCs) de Saúde nos países BRICS, que é uma rede que vai permitir a integração dos serviços de saúde para resposta rápida às ameaças à saúde pública[5]

Para fortalecer os Sistemas de Saúde, os países pretendem criar uma plataforma comum  do BRICS para monitorar o indicador 3.8 dos ODS – Cobertura Universal de Saúde e acesso a medicamentos e vacinas.

A pandemia de Covid-19 forneceu o impulso para uma aceitação do uso de tecnologias de Saúde Digital (SD) na prática. Em vista disso, os países do grupo concordaram em promover o uso de tecnologias digitais em todos os sistemas de saúde e propuseram o estabelecimento de uma estrutura para a colaboração transfronteiriça.

Nas áreas de saúde e de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), para melhorar a capacidade coletiva de prevenção, preparação e resposta a pandemias globais e combater coletivamente essas pandemias no futuro, consideram importante continuar o apoio ao Centro BRICS de Pesquisa e Desenvolvimento de Vacinas.

O grupo decidiu fazer uma revisão estratégica das áreas temáticas de CT&I para garantir um melhor alinhamento com suas atuais prioridades e lançará uma Chamada de Propostas para Projetos de CTI do BRICS em 2024.

Os países do grupo comprometeram-se a continuar a cooperação em Medicina Tradicional.  O Primeiro Ministro indiano Narendra Modi defende inclusive que o grupo crie um repositório sobre o tema.

Por fim, decidiram estabelecer um Grupo de Trabalho do BRICS em Medicina Nuclear para expandir a cooperação nessa área[7].

Considerações finais

O BRICS passou de um grupo essencialmente econômico para um grupo geopolítico e essa transição foi acelerada pelas relações tensas entre a China e os EUA e pela guerra da EUA-OTAN vs. Rússia na Ucrânia.  

O BRICS precisa melhorar a cooperação em saúde, meio ambiente e transferência de tecnologia para projetos comuns. Além disso, deve atentar para a necessidade de criação de instituições e espaços comuns para a pesquisa e desenvolvimento de vacinas, transferência de tecnologias em C&T, desenvolvimento de tecnologias para crescimento sustentável e transição energética, desenvolvimento de programas e políticas que possam ajudar a melhorar e aumentar a produtividade agrícola para mitigar as crises alimentares e a crise climática[12]

*Claúdia Hoirisch​ é Mestre pela Fundação Getúlio Vargas, pesquisadora visitante e assessora do Centro de Relações Internacionais em Saúde, Fiocruz. 


[1] Hoirisch, C. 2023. Balanço dos compromissos políticos e de saúde dos países BRICS nos anos pandêmicosPositioning paper.

[2]Ver: http://www.brics.utoronto.ca/docs/140715-leaders.html

[3] Ver: http://www.brics.utoronto.ca/docs/150709-ufa-declaration_en.html

[4] Ver: https://tutameia.jor.br/novo-brics-explode-a-ordem-internacional/

[5] Hoirisch, C. BRICS11, uma nova ordem mundial? A expansão como novo ponto de partida para a cooperação. Cadernos CRIS de Saúde Global e Diplomacia da Saúde 15-23, pp. 14-23, 2023. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos_2/cadernos_cris-fiocruz_-_informe_15-23_saude_global_e_diplomacia_da_saude_pdf.pdf   

[6] Ver: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/qual-e-o-tamanho-do-novo-brics-veja-em-numeros-a-dimensao-do-grupo-de-11-paises/

[7] Ver: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-de-joanesburgo-ii-sandton-gauteng-africa-do-sul-23-de-agosto-de-2023

[8] WHO Director-General addresses first meeting of BRICS health ministers. Beijing, China, July 11, 2011. http://www.who.int/dg/speeches/2011/ BRICS_20110711/ en/index.html  

[9] https://www.reuters.com/business/sustainable-business/cost-hit-un-sustainability-goals-rises-176-trillion-report-2022-09-08/#:~:text=sustainability%20goals%20rises%20to%20%24176%20trillion%20%2D%20report,-By%20Simon%20Jessop&text=LONDON%2C%20Sept%208%20(Reuters),a%20report%20on%20Thursday%20said

[10] https://portal.fiocruz.br/documento/cadernos-cris-fiocruz-informe-14-2023

[11] Hoirisch, C. 2023. XIII Reunião de Ministros da Saúde dos BRICS: Declaração da África do Sul. Cadernos CRIS de Saúde Global e Diplomacia da Saúde 14-23. Acesso: https://portal.fiocruz.br/documento/cadernos-cris-fiocruz-informe-14-2023

[12] Xinhua, 2023. Entrevista com a Prof. Ana Garcia. português. BRICS tem papel de equilibrar relações internacionais atuais, afirma especialista brasileira. Acesso: https://portuguese.news.cn/20230818/706c4df2e4f34802bdebb48f07145db7/c.html

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador