Observatorio da DesInformacao
O Observatório da Desinformação é uma iniciativa para combater a desinformação no Brasil de forma articulada, dando visibilidade às frentes de reflexão, formação e extensão ligadas ao Letramento Midiático e Informacional e ao Diálogo Intercultural no âmbito dos Direitos Humanos.
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A importância do acesso à informação: explosões caseiras, cartas apócrifas e pedido de anistia, por Claudia Wanderley

Desde 1985 entramos em um espaço ficcional social em que pactuamos que todas as disputas, mágoas, delírios tinham sido deixados para trás

Banksy

A importância do acesso à informação: explosões caseiras, cartas apócrifas e pedido de anistia

por Claudia Wanderley

Em 24 de fevereiro de 2024 ficamos sabendo que o Sr. Virgilio Parra Dias, general reformado do Exército guardava 60 armas e 3 mil munições, segundo a PM, em casa, em um apartamento de um condomínio, no centro de Campinas. O apartamento explodiu, 44 pessoas que estavam em andares superiores foram retiradas do prédio em uma operação de resgate, em torno de 37 vítimas sofreram ferimentos leves. Foi avaliado o risco de dano estrutural e o cotidiano no Fênix não pode ser retomado, devido ao risco de novas explosões. Somente dois dias depois do grave ocorrido a família e os advogados retornaram ao apartamento apenas para retirar documentos pessoais e medicamentos. E, portanto, o imóvel está interditado. A explosão ocorre na véspera do ato de 25 de fevereiro, convocado por Bolsonaro em São Paulo capital, bem perto de Campinas. Hoje, dia 29, o dono no apartamento está na UTI do Mário Gatti, segundo G1.

Campinas, que é um local estratégico em vários aspectos para os militares, tem uma importância no mapa das forças armadas. A Escola Preparatória de Cadetes do Exército está em Campinas, e a cidade conta também com o 28.º Batalhão de Infantaria Mecanizado, que é uma “Unidade de Emprego Peculiar em Operações de Garantia da Lei e da Ordem e em Operações Militares em Ambientes Urbanos”*.

O Regime Autoritário no Brasil

Para você, que tem menos de 50 anos, explico que o Brasil passou por um regime autoritário, conduzido pelos militares, que durou de 1964 a 1985. Um período doloroso, com grande constrangimento e censura para a sociedade brasileira, com um lema radical “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Durante este período, o militares tiveram muita liberdade de ação, porque justamente eles estavam em todas as posições do governo, não havendo portanto freio possível, ou investigação possível para suas atividades, a não ser quando essas atividades feriam a própria linha de comando, o que implicava em uma investigação interna. Ou seja, o Estado brasileiro foi capturado pela dinâmica autoritária conduzida por militares por duas décadas, e se envolveu em crimes contra seus próprios cidadãos.

Você pode saber mais sobre o que ocorreu neste período no Relatório Projeto Brasil Nunca Mais, uma peça impressionante de coragem de investigação, realizada de maneira colaborativa, em um período sombrio de nossa história. Diz a agência Brasil*, baseada no relatório:


“[…]o último ano do governo de Ernesto Geisel, penúltimo presidente do ciclo militar, “já se computavam 10 mil exilados políticos, 4.682 cassados por diversos meios, milhares de cidadãos que passaram pelos cárceres políticos, centenas de mortos e desaparecidos, 245 estudantes expulsos da universidade por força do Decreto 477”. Considerado o AI-5 das universidades, o decreto viabilizou a punição de alunos, professores e servidores que incomodavam o regime.”

Pacto ficcional” da anistia de 1979

Ao final do período autoritário, com a chamada “abertura política” para eleições, houve uma negociação entre militares e civis para que todos os crimes fossem anistiados, ou seja, um combinado para que não sofressem processos ou punição, ou seja escondemos questões graves e não toleramos o debate público até aqui. Não é surpreendente, que em função desse apagamento,  existam ainda crimes deste período que ainda estão aparecendo, crimes que não investigamos, não denunciamos, não vieram a público, por simples falta de condição institucional para serem encaminhados e resolvidos, devido principalmente ao acordo da anistia.

Entretanto, há casos coletivos que ferem os Direitos Humanos a tal ponto que é possível recorrer a tribunais internacionais para pautar a questão no país, é um recurso possível. Nem todo mundo tem condições de fazer isso, um processo desse implica em muitos recursos para sustentar uma interlocução internacional e um desgaste pessoal altíssimo para todos os envolvidos. A primeira vez que o Estado brasileiro senta no banco dos réus portanto, é através da Corte Interamericana de Direitos Humanos para responder por atos da ditadura no caso da Guerrilha do Araguaia* em 2010.  Ou seja, do fim do regime a 2010, são 25 anos para essa comunidade de parentes e afins conseguirem se reestruturar e encaminhar para um organismo internacional um pedido de resolução para os malfeitos do Estado brasileiro*.

Os fantasmas do passado versus a necessidade de investigar os fatos

Desde 1985 aparentemente entramos em um espaço ficcional social em que pactuamos entre nós que todas as disputas, mágoas, delírios tinham sido deixados para trás no país. Estávamos em um ambiente democrático instituído por acordos políticos, e não por processos de averiguação, investimento em investigações sobre o tema, ou mesmo constituindo de uma memória cidadã, através de marcos históricos, museus, livros, peças de teatro, etc. O pacto funcionou, até certo ponto.

Hoje, olhando para os sessenta anos do golpe militar, percebemos que os nossos fantasmas coletivos estão aí, revistos e ampliados pelas novas tecnologias: a religião salvadora, o comunismo ameaçador, a pátria excludente de todos que nos incomodam de alguma forma, a intolerância com as religiões e espiritualidades que não sejam das tradições abraâmicas, a intolerância e empáfia com a racionalidade científica, a ideia de liberdade sendo utilizada de maneira alienada e conveniente. É uma longa lista. Uma longa lista que entra cotidianamente pelos nossos aparelhos e sugere que devemos manter esse pacto “ficcional” entre nós, de que a realidade é secundária, e que os nossos recalques coletivos não trabalhados nesses anos devem continuar a ser protagonistas principais no âmbito social por mais algumas décadas. Quem ganha com isso?


Recall” do ethos militar

Ao considerar o ethos militar, que se constitui em uma relação direta com a defesa da pátria, não vemos com bons olhos a ideia de que alguém ligado ao exército guarde tanta munição em casa, uma vez que não faltam almoxarifados de unidades militares na cidade, para que um militar da reserva possa guardar armas, que eventualmente possam ser de seu interesse. A quantidade extrapola muito o que poderia se pensar como resquício de um hábito de trabalho. Ou mesmo algo ligada à segurança pessoal do militar reformado.

Em um artigo sobre o educação militar, escrito pelo TC Anderson Felix Geraldo* no blog do exército em 20 de dezembro de 2023, ele explica sobre a educação militar:

“Além disso, nos treinamentos, o cadete aprende a ser humano no meio de um mundo cada vez mais caótico e degradado como o nosso, ajudando-o a encontrar a sua humanidade em tempos de paz e de guerra. O processo de “conhecer a ti mesmo” é importante, pois permite ao militar respeitar o seu inimigo sem desumanizá-lo. O faz entender que do outro lado da trincheira está um profissional como ele cumprindo o seu dever de guerreiro para com o seu povo. Esse inimigo poderá se tornar um amigo no futuro.

Esse é um divisor de águas entre um guerreiro que segue um código para os demais que desumanizam o adversário e não respeitam as normas dos conflitos armados. Naquele educandário, o cadete descobre que o profissional militar não deve se voltar para a versão sombria do código, representado por organizações criminosas e terroristas. Estes possuem até estratégias eficazes, mas com fins terríveis, pequenos, vulgares, baixos e indignos. Promovem a guerra movidos por ódio e/ou interesses, não pela sensação do dever e da missão cumprida. ”

Colocar civis em risco, guardar armas em grandes quantidades e granada em casa, provocar e endossar delírios antidemocráticos, apoiando o autoritarismo – ou fascismo – são atividades inimigas da formação tradicional de um guerreiro, de um oficial seja da ativa ou da reserva. É preciso que as Forças Armadas façam um tipo de recall do ethos militar com seus oficiais, para que os fantasmas da ditadura militar sejam devidamente encaminhados dentro da caserna, e se dissipem em nossa atual conjuntura.

É possível debatermos política com os militares? Não é possível. Não cabe a oficiais se meter na política, essa profissão não permite essa atividade, por motivos óbvios. E se isso está ocorrendo, é preciso tomar providências imediatas. Quem tomaria estas providências, 1) o governo nas investigações, 2) os militares internamente retomando as rédeas de sua instituição, e 3) nós civis pautando na esfera pública o que precisamos desenvolver juntos para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.

A carta – atualmente não mais – apócrifa incitando os oficiais de forças armadas ao golpe de estado é  uma evidência do tamanho do problema em que estamos. A Polícia Federal identificou os autores através de metadados, como sendo pelo “coronel Giovani Pasini e, posteriormente editada pelo coronel Alexandre Castilho Bitencourt da Silva. O texto foi encontrado nos arquivos de Mauro Cid e data de 28 de novembro de 2022”*. Isso sabemos pela investigação da operação Tempus Veritatis, sobre a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.

No início de 2024, vemos generais, graças a essa investigação, indicados pela Polícia Federal como envolvidos no golpe de estado. Estamos de frente para “a versão sombria do código” como diz TC Geraldo. São eles: o ex-ministro do gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; o ex-ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto; o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira; o general Estevam Teophilo; e o ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier.

A solicitação do ex-presidente Jair Bolsonaro (um capitão reformado) por anistia na avenida Paulista, neste 25 de fevereiro de 2024, reforça nosso entendimento dos problemas que o pacto “ficcional” coletivo da anistia produziu em 1979. Ele deixou correr solto os ideários autoritários, que foram reaproveitados, reatualizados e expandidos nas redes sociais, em algumas comunidades religiosas e famílias que estavam ligadas ao regime.

de te fabula narratur* 2

O governo brasileiro precisa investigar e publicizar o que houve, criar condições através de políticas públicas para que a memória  de nossa geração não se apague, e permitir que surjam e se realizem debates, denúncias e trabalhos de escuta do que se passou e se passa regularmente. É fundamental, mas não é suficiente apenas a ação das autoridades.

De nossa parte, no espaço público, é tarefa dos civis abrir as conversas, pautar nossas histórias, trazer as gerações mais jovens para lidar também com as dificuldades sociais e informacionais que temos no Brasil.

As redes de trabalho informais e ilegais ligadas às forças armadas precisam ser denunciadas, precisam vir a público. A politização das instituições militares e a militarização das instituições públicas são dinâmicas que precisam ser amplamente debatidas no âmbito civil, por iniciativa nossa.

Essas questões precisam fazer parte do entendimento sobre o nosso direito à integridade da informação no Brasil, direito ao debate, direito aos fatos. Qualquer outra atitude de relegar a criação do hábito da reflexão objetiva ou do debate sadio sobre (e na) esfera pública às próximas gerações pode nos custar muito caro, em termos de democracia.

 
O Letramento Midiático Informacional e Diálogo Intercultural é sobre ligar informações que aparecem de maneira desconexa, sobre ser crítico em relação ao que acontece em nossa região e se posicionar ativamente no coletivo em que participa. Para isso precisamos contar com a integridade da informação que chega até nós, ou seja nós mesmos precisamos zelar ativamente pela nossa possibilidade de falar, de ouvir diferentes vozes e de ver essa discussão repercutir nas políticas públicas. O Observatório da Desinformação tem essa disposição para desenvolver e para se somar a atividades semelhantes.

Sem saber o que se passa nos campos ligados ao regime autoritário, e inclusive nos grupos  envolvidos com a tentativa de golpe recente, nossas condições reflexão conjunta se reduzem drasticamente.  Precisamos retomar o fio da história completa.

Se você faz parte de um grupo desses, e percebe que estão agindo fora da lei, denuncie! Escreva, publique! Nunca é tarde para considerar os fatos, e corrigir uma situação.


*”de te fabula narratur”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024,

“Horácio, depois de haver descrito a insensatez do avarento, dirige-se com esta expressão a um interlocutor imaginário. Origem etimológica:locução latina que significa “é de ti que trata esta história”.  Fonte: Horácio, Sátiras, I, 1, 69-70.” <https://dicionario.priberam.org/de%20te%20fabula%20narratur>.
*  Leia mais na Carta Capital: https://www.cartacapital.com.br/politica/militares-da-ativa-redigiram-carta-para-pressionar-exercito-a-aderir-ao-golpe-diz-jornal/.

* Na wikipédia:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/28.%C2%BA_Batalh%C3%A3o_de_Infantaria_Mecanizado> .

* Reportagem Agência Brasil: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2014-03/brasil-ame-o-ou-deixe-o-regime-divide-sociedade-com-exilios-e-cassacoes>
* Brasil responde pela Guerrilha do Araguaia: http://www.oab.org.br/noticia/19781/organizacao-dos-estados-americanos-julga-caso-da-guerrilha-do-araguaia
* Saiba mais sobre a Guerrilha do Araguaia : http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-iii-cap1.html

* Artigo do TC Anderson Felix Geraldo no blog do Exército: <http://eblog.eb.mil.br/index.php/menu-easyblog/o-codigo-de-honra-do-guerreiro.html>

Claudia Wanderley – Observatório da Desinformação. Pesquisadora Permanente Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), UNICAMP

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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1 Comentário

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  1. A única diferença entre o militar e o bandido está na farda. Bandido não costuma andar fardado. É pouco provável que uma pessoa que tenha discernimento e amor ao próximo opte pela carreira militar. O vocacionado para a carreira traz em si o desejo de matar, punir, torturar, prevaleacer sobre o outro, exercer autoridade.É o prazer no exercício “justificado” da violência.

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