Observatorio da DesInformacao
O Observatório da Desinformação é uma iniciativa para combater a desinformação no Brasil de forma articulada, dando visibilidade às frentes de reflexão, formação e extensão ligadas ao Letramento Midiático e Informacional e ao Diálogo Intercultural no âmbito dos Direitos Humanos.
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Arapongagem na ABIN, não! Integridade da Informação, sim!, por Claudia Wanderley

Houve uma transição quase que simbólica do nome de Serviço Nacional de Informações (SNI) para Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)

do Observatório da Desinformação

Arapongagem na ABIN, não! Integridade da Informação, sim!

por Claudia Wanderley

Em 22 de janeiro de 2024, o Ministro Alexandre de Moraes, do Superior Tribunal Federal (STF), assinou um despacho que aponta para investigação de “identificação de organização criminosa, nos moldes do art. 2º da Lei nº 12.850/2013, com intuito de monitorar ilegalmente pessoas e autoridades públicas, em violação ao art. 10 da Lei 9.296/96 (com redação dada pela Lei nº 13.869/2019)”, indicando possível desvirtuamento institucional da Agência Brasileira de Informação (ABIN).

A investigação aponta, entre outras coisas, para um número de 60 mil logs, ou 60 mil pessoas sendo monitoradas à revelia da lei, através de uma agência do Estado brasileiro. Essa revelação me fez pensar sobre o preço que pagamos com o processo de anistia “total geral irrestrita” (expressão de 1985).

As famílias e seus negócios na franja do regime autoritário

Para quem tem menos de 50 anos, lembro que nós tivemos no Brasil um regime autoritário conduzido por militares que se instalou em 1964, sob o pretexto de combater uma ameaça do comunismo no país. A promessa do golpe de Estado dado pelos militares era de que o país seria “devolvido” ao processo democrático uma vez resolvida a questão da ameaça iminente. Isso não aconteceu em seu devido tempo, e o regime se estendeu dolorosamente por vinte e um anos, até 1985.

Com o despacho de investigação de janeiro de 2024, volta à pauta nosso hábito de cidadãos em cargos públicos transformarem ilegalmente as atividades de seu mandato em negócios de família.

Sabemos que a máquina do Estado Brasileiro contou com muitas “famílias de bem” afins ao regime da ditadura militar que, engajadas com o autoritarismo, ofereciam (e aparentemente continuam oferecendo) parte de seus recursos familiares disponíveis para fazer serviços sujos e promover a repressão de maneira mais ampla, sem constrangimentos legais ou institucionais. Esses núcleos familiares articulam com o regime ditatorial atuando em crimes diversos e se beneficiam do aparato do Estado, praticamente como terceirizados das atividades de repressão. Agentes dessas famílias recebem cargos fantasmas, ocupam cabides de emprego, recebem falsas promoções, prêmios, reconhecimentos, que os sustentam socialmente e financeiramente, como retorno pelos seus serviços sujos.

Esses núcleos de famílias, como já apontado, se envolvem nas franjas das políticas de Estado e das instituições públicas, com suas grandes ideias e pequenos negócios (no caso, ilegais), dando condições para que certas práticas ilegais se consolidem sem que seja preciso usar diretamente o aparato de Estado, mas em contato com o que há de sombrio nele.

É como o caso da criação de um aparelho de tortura pelo empresário Boilesen e sua divulgação entre os agentes de tortura no Brasil. O filme de Chaim Litewski chamado *“Cidadão Boilesen” nos apresenta esse tipo de articulação  e dá uma clara ideia do que fez um empresário engajado com a repressão. Ele é um caso visível, mas temos milhares de Boilesens que precisamos denunciar.

Ao estender, de maneira singular, algumas atividades de controle, repressão e violência, esses núcleos familiares agregam para si um certo status, tornam-se uma certa aristocracia a serviço do regime autoritário. Adquirem vantagens no âmbito social. Esse sistema de compensação paralelo – com os recursos desviados do Estado – relativiza a importância das referências democráticas. Naturaliza-se, com isso, um processo de perda de referência da vida democrática e da vida social, do exercício da cidadania, que gera uma anomia. Essa anomia custou e custa caríssimo. É preciso refletirmos e nos posicionarmos sobre esse capítulo da história brasileira, juntos. Porque essas famílias, em alguns casos, são as nossas próprias famílias, e esses prejuízos gerados para a vida pública, para a República, são contas que pagamos. Quem pode falar sobre isso somos nós.

Integridade da Informação

É preciso fortalecer a intenção de ouvir e o diálogo com quem pode falar sobre o que aconteceu (e talvez ainda aconteça). Estamos em 2024, ou seja, 60 anos do golpe militar. A fonte para conhecermos o que de fato houve nessas famílias “agregadas” às práticas ilegais do regime autoritário são justamente os membros dessas famílias que entendem a dimensão de desrespeito à vida em sociedade, desrespeito às leis, desrespeito aos direitos humanos que essas práticas representam.

Deixo aqui meu pedido: se você é uma dessas pessoas, escreva, publique, dance, cante, componha, modele, pinte sua história, traga para o espaço público a experiência que você viveu ou vive ligada à repressão. Nós precisamos de sua contribuição, nós precisamos muito ouvir o que você tem a dizer. E, assim, fortalecermos juntos o pacto social democrático, para que possamos ganhar consciência do que se passou, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.

“A UNESCO defende o acesso à informação como uma liberdade fundamental, que é um pilar fundamental na construção de sociedades do conhecimento inclusivas.”* Neste caso, precisamos dar um passo atrás, porque, para termos acesso a essa informação, precisamos contar com sua disposição para falar o que precisa ser dito. Precisamos ter acesso à história completa que ocorreu e ocorre aqui no país. Como cidadãos, precisamos retomar conscientemente as pautas que julgamos importantes, para que o espaço público funcione de maneira plural e democrática, zelando pela integridade da informação, para que a vida pública não seja sequestrada pela desinformação.

Alguns herdeiros das práticas paralelas às quais me referi acima, de usar a estrutura do Estado para práticas ilegais, estavam em posição de capturar o funcionamento de nossa Agência Brasileira de Informação. E ficamos a par disso em janeiro, e precisamos olhar para o nosso papel de denunciar, falar publicamente e debater o que ocorre na vida brasileira.

A transição do antigo SNI, a usurpação da atual ABIN

No final do regime autoritário, houve uma transição quase que simbólica do nome de Serviço Nacional de Informações (SNI) para Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), sem que se pudesse pautar e punir os crimes ligados ao que foi feito por meio das investigações e informações sigilosas. As redes de atividades de arapongas ligadas ao regime autoritário ficaram livres para oferecer seus serviços. Muitos permaneceram dentro do quadro de funcionários públicos do Estado. Considerar uma mudança efetiva de quadros e de métodos de trabalho só é possível quando podemos apontar os erros, punir pelos erros e, fundamentalmente, corrigir a natureza das atividades desenvolvidas para que sigam sua finalidade adequada. Esse é um dever de casa que pouquíssimas instituições no Brasil tiveram condições de fazer, por causa do modo que o Brasil escolheu para fazer a transição do regime autoritário para o regime democrático: através de combinados.

O Gen. do Ex. Richard Fernandez Nunes, no blog do exército*, por exemplo, em artigo de fevereiro de 2023  reproduzido no blog em janeiro 2024, alerta:

“Pois é exatamente na dimensão informacional que temos assistido a condutas em desacordo com a ética militar por parte daqueles que, por indignação, ingenuidade, desconhecimento e, até mesmo, má-fé, têm contribuído para disseminar a desinformação, a relativização de valores e, consequentemente, a desunião que enfraquece o espírito de corpo. Fica a pergunta: a que interesses servem tais pessoas?”

Evidentemente em questões de segurança nacional, em ligação com a atual ABIN, sempre encontraremos oficiais da carreira militar. É improvável que um país tenha um sistema de inteligência sem que as forças armadas estejam fortemente imbricadas, considerando seu trabalho de zelar pela segurança do país.

Mas questões que a condição de discrição dos militares talvez não permita que eles coloquem publicamente, ou seja, entre civis, nós – que estamos na universidade e que estamos interessados em uma discussão ampla sobre desinformação no Brasil – podemos fazer: em que medida ainda são toleradas atividades paralelas e ilegais nas Forças Armadas, heranças malditas do regime autoritário, como essas que estão vindo à tona neste momento? Quais os mecanismos que as Forças Armadas desenvolveram, de 1985 para cá, para renovar o arcabouço de conhecimentos e de horizontes nas escolas superiores para formação de oficiais, de maneira que o saudosismo por uma liberdade para praticar ações à revelia da lei não seja uma referência ou um desejo de um oficial da ativa? Como a família verde-oliva vai conduzir este escândalo da ABIN?

As atividades de Bolsonaro, recentemente divulgadas, apontando para o abuso da ABIN para proveito próprio, manutenção e expansão de seu poder pessoal – e de seus familiares – dão novamente condições para que o capitão seja expulso das Forças Armadas. Em 1987, sabemos que ele foi identificado como autor de um plano para explodir bombas em quartéis e instalações militares, e foi absolvido; em 2024, é uma bomba informacional. É o uso de uma agência de inteligência caríssima ao trabalho das Forças Armadas. E minha pergunta ecoa com a do Gen. Nunes, “a que interesses servem tais pessoas?”

de te fabula narratur*

As falhas institucionais propositais, os crimes, os desvios que o Estado brasileiro permitiu que acontecessem em suas instituições (ou articulado com suas instituições), inclusive a falta de informação sobre núcleos familiares que fizeram um negócio familiar lucrativo com o trabalho de repressão do Estado brasileiro, precisam ser trazidos a público. É preciso que a gente olhe com atenção para a nossa dinâmica social. Precisamos esclarecer os fatos, juntos. Quando dizemos que algum servidor público agiu “ao arrepio da lei”, seria bom olhar para o contexto de suas ações, que em grande medida pode significar uma rede antiga trabalhando na sombra da anistia de 1985 até hoje.

Estamos, infelizmente mais uma vez, lidando com este tipo de prática, neste caso, levada ao extremo de conduzir as tecnologias e os recursos humanos de alto nível destinados à proteção do Estado Brasileiro, e pagos com dinheiro público, para o uso de uma família e de seus interesses e poder. Ainda é o caso de fazer vista grossa para famílias que usurpam das instituições públicas e através delas (ou em nome delas) e assim desenvolvem atividades ilícitas para benefício próprio?

A sociedade civil pode e deve colaborar e trazer a público o que sabe que está acontecendo. Escreva, grave, publique o que você sabe! Não devemos ser coniventes.


*”de te fabula narratur”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024,

“Horácio, depois de haver descrito a insensatez do avarento, dirige-se com esta expressão a um interlocutor imaginário. Origem etimológica:locução latina que significa “é de ti que trata esta história”.  Fonte: Horácio, Sátiras, I, 1, 69-70.” <https://dicionario.priberam.org/de%20te%20fabula%20narratur>.

* Para não deixar o leitor em suspense, sugiro ao fim do texto um link do filme acompanhado de uma discussão de nossa conjuntura feita pelos colegas do Laboratório de Agenciamentos Cotidianos e Experiências (LACE) em 2022.  <https://youtu.be/U20KrHpcEAA>.

* Agência Brasileira de Inteligência: <https://www.gov.br/abin/>.

* Página da UNESCO falando do direito à informação: <https://www.unesco.org/en/right-information>.

* Artigo do Gen. Nunes no Blog do Exército: https://eblog.eb.mil.br/index.php/menu-easyblog/o-mundo-psic-e-a-etica-militar.html.

Claudia Wanderley – Pesquisadora Permanente Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), UNICAMP

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