Observatorio da DesInformacao
O Observatório da Desinformação é uma iniciativa para combater a desinformação no Brasil de forma articulada, dando visibilidade às frentes de reflexão, formação e extensão ligadas ao Letramento Midiático e Informacional e ao Diálogo Intercultural no âmbito dos Direitos Humanos.
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Quem ganha o Fla-Flu da (des)informação?, por Josianne Francia Cerasoli

A questão aqui é o "lugar de voz", que parece inverter a expressão e resumir a mensagem à suposta expectativa de quem ouve: a voz do lugar.

Observatório da DesInformação

Quem ganha o Fla-Flu da (des)informação?

Como a parcialidade e a ardilosa história única alimentam ilusões e desestabilizam a política

por Josianne Francia Cerasoli

Imagine uma caixinha de fósforo

Esta reflexão começa no futebol. Talvez essa simples frase afaste alguns olhares interessados em informação, e isso comprovaria a hipótese que quero desarrumar. Eu pediria um voto de confiança. Podem apostar que o texto não será sobre tática, escores, “zaga ajustada”, cartolagem, fraudes esportivas nem mesmo zona de rebaixamento – essa ameaça de fim de campeonato que desestabiliza dezembros. Não tratará sequer de apostas. A reflexão é sobre parcialidade, sobre “lugar de voz” e seus efeitos: da incredulidade, muitas vezes duradoura, da prática dos “cancelamentos”, sempre apressados.  

É provável que a parcialidade na comunicação tenha algo a ver com o alcance limitado de cada mídia, já que muitas vezes, por razões técnicas, falavam a públicos circunscritos. O caso da transmissão radiofônica é exemplar, pelo alcance das ondas sonoras em cada frequência ser muitas vezes, digamos, paroquial, mesmo que as pautas e o interesse por elas sejam bem mais amplos.

Isso é especialmente interessante em relação ao rádio e ao esporte. O esporte sempre envolve a disputa e seus desdobramentos: derrotas, vitórias, torcidas, revanches, tabus, rivalidades, versões, questionamento à arbitragem, revoltas, hostilidades e violências até. E talvez poucas estratégias de comunicação possam ser mais eficientes nesses casos que comunicar a públicos restritos, circunscritos aos apoiadores de um dos lados da disputa. Quem chegou até aqui já entendeu que a reflexão é sobre as chamadas “bolhas” de sociabilidade e comunicação. Quero argumentar que nos acostumamos com elas de um modo tão dócil e duradouro que não conseguimos escapar a seus efeitos perversos sem muito esforço. Quero argumentar também que, adestrados por esse costume, mal percebemos que a lógica da comunicação paroquial pode ter tomado escala global com as ferramentas da web na palma da mão, colocando todos nós em risco.

Não seria justo assumir que isso começou com o rádio, nem no contexto do esporte, nem no convívio social e político cada dia mais tensionado. Mas proponho um exercício aqui para pensar sobre os riscos da permanência das bolhas a partir da longa relação entre rádio e futebol, para mostrar um pouco dos modos insidiosos de sustentação de falas sectárias e narrativas parciais, todas perigosamente naturalizadas.

Vamos ao rádio e ao futebol. A partir da década de 1930, o rádio elevou o prestígio e o interesse pelo futebol em várias partes do mundo. No Brasil, desde os anos 1920 era comum nos programas radiofônicos a transmissão de reportagens sobre os jogos. Eram narrativas posteriores, com uma interpretação, portanto. Mas uma transmissão integral e ao vivo ocorre pela primeira vez em 1931, quando o jornalista Nicolau Tuma narrou uma partida inteira, em cada detalhe. O jogo entre as seleções de São Paulo e do Paraná foi transmitido pela Rádio Educativa paulista, narrado lance a lance, gol a gol. Hoje, a narração em tempo real das partidas de futebol parece tão usual e popularizada que não se julgaria necessária a instrução didática de Tuma ao iniciar a partida: “Imagine uma caixinha de fósforo ou um retângulo. Divida ao meio e teremos os dois lados do campo”. Esse capítulo interessante da história da radiodifusão está documentado em muitas pesquisas, lembradas na matéria sobre o Centenário do rádio no Brasil, pela EBC, em 2022.

Entre as muitas tensões imagináveis nessa primeira experiência, certamente uma delas se dissipou quando o placar foi consolidado: 6 a 4 para os paulistas. Narrando para paulistas em uma radiotransmissão de alcance regional, não deve ter sido sem alívio que Tuma fechou a transmissão pioneira. Melhor poder anunciar a vitória. A questão é que o “lugar de voz” parece ter também se consolidado de modo tão frequente que simplesmente nem é relativizado quando as transmissões têm alcance bem mais amplo que o regional. A rádio continua a narrar para um público imaginado, regional, quase tão restrito quanto uma caixinha de fósforo, mesmo quando é revolucionada pelas imagens da transmissão televisiva e via streaming. A narrativa é sempre parcial.

A Macaquinha não pode evitar a derrota

Aqui será preciso um curto parêntese lembrando aspectos da cultura futebolística. Se você acompanha, como parte de uma fiel torcida, equipes de futebol muito populares e com alcance massivo, como Flamengo e Corinthians, é bem provável que muito raramente terá se incomodado com a parcialidade das transmissões. Você está na caixinha de fósforo, na bolha imaginada pela narração espelhada pela transmissão radiofônica regional. Ela quase sempre favorece a torcida de maior alcance. Os comentários, que aos poucos passaram a povoar com relativo didatismo as transmissões, acompanham essa parcialidade, e dificilmente analisam aspectos táticos dos dois lados da disputa ou ousam fazer previsões imparciais sobre as mudanças que as equipes deveriam operar para garantir sucesso. A narração e a análise insistirão em falar para a massa mobilizada naquele espetáculo. Se em São Paulo, farão como Tuma: vão se irmanar com os paulistas.

Mas quem acompanha apaixonadamente equipes pequenas, regionais, pouco competitivas ou até em extinção, mesmo se apreciar muito a dinâmica do rádio e se interessar muito por futebol, vai se descobrir em algum momento da partida com mais irritação diante da narrativa do que diante da frágil qualidade da equipe. Uma torcedora da Ponte Preta, como eu, que acompanhou tantos vice-campeonatos com derrotas diante dos chamados “times grandes” certamente já desligou os aparelhos para não ouvir a narração analisando apenas um lado do campo.

Como é difícil estar ao lado de quem não tem “lugar de voz”! E aqui é importante deixar claro que não me refiro a “lugar de fala”, expressão que não escapa nem a polêmicas nem a disputas e radicalismos, tão graves que mereceria outro texto. A questão aqui é o “lugar de voz”, que parece inverter a expressão e resumir a mensagem à suposta expectativa de quem ouve: a voz do lugar. E quando a voz do lugar ressoa na maioria, misturada à paixão de torcida e à sanha capitalista do sem número de patrocínios esportivos explorando essa paixão e essa voz, a Ponte Preta não pode evitar a derrota de ter sua pauta e desejos silenciados. Lugar sem voz. Bolha diminuta e diminuída em cada desconsideração. É exatamente assim que operam os temidos e poderosos algoritmos ativos nas redes sociais, patrocinados por interesses menos ou mais obscuros: inundam nossas telas da voz do lugar, até parecer que não há adversário nem derrota possível, contrariando toda lógica do jogo democrático.

Perigo da história única

A parcialidade não é, em si, o problema. A questão é a sensibilidade que se cultiva quando não se assume que a parcialidade existe e age cotidianamente. E claro que rádio e futebol entraram aqui como uma analogia. O que preocupa mais no Fla-Flu da (des)informação é a forma oculta como a parcialidade incide sobre nossas rotinas e o modo perverso como manipula paixões.

E, para isso, quanto mais um suposto jogo de opostos for incentivado, quanto mais o artifício da rivalidade for alimentado, mais a parcialidade encontrará combustível nas paixões, mal disfarçadas de convicções e intolerâncias. É uma lente de Fla-Flu em tudo. Pró-Israel X Pró-Palestina, Kitkat X Bis, ou a última polaridade feita thrend esta semana são apenas capítulos recentes desse percurso que, por analogia, saiu da caixinha no campo do extinto Floresta em 1931: a narrativa da história única.

Não há outro modo de desarmar essa bomba-relógio a não ser examinando de perto seu mecanismo e seus efeitos. Não há vitória quando se anula outra(s) voz(es) ou se “cancela” o outro lado. Em janeiro deste ano, vivemos no Brasil um momento de extrema tensão na qual a narrativa do Fla-Flu foi incendiária – e, a meu ver, continua em brasa. Na época, em uma entrevista sobre os destinos desejáveis e possíveis para nossa vitalidade democrática, pensava, preocupada, nos perigos dos extremismos e das polarizações quando fazem desaparecer o outro da narrativa.

Muito a se pensar e a se construir. Mas um ponto que me intriga há muito tempo está na paradoxal repercussão de uma reflexão fundamental sobre o perigo desse desaparecimento. ​​O Perigo de uma História Única é a primeira palestra feita pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie durante o evento TED Talks, em 2009. Com mais de 35 milhões de visualizações, é um dos 25 mais vistos na plataforma oficial desde o lançamento do projeto de difusão Technology, Entertainment and Design (TED) em 1984. E me intriga pensar o que estariam pensando, de dentro de suas caixinhas, essas milhões de mentes quando a veem dizer: “A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história.”

Josianne Francia CerasoliDepartamento de História – UNICAMP. Observatório da Desinformação

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