Notícia e o dinheiro: a luta dos jornalistas pela sobrevivência… do jornalismo, por Cesar Valente

Conheci excelentes jornalistas, que, para dar melhores condições à família, aceitaram funções e cargos em condições que nunca imaginaríamos

Arte: Cesar Valente. Imagens: Pixabay.

do objETHOS

Notícia e o dinheiro: a luta dos jornalistas pela sobrevivência… do jornalismo

por Cesar Valente

Claro que todo mundo tem direito a uma remuneração que lhe permita viver, se possível, bem. Essa preocupação com a sobrevivência é o motor de muitas decisões que a gente toma ao longo da carreira profissional. Não posso dar conselhos nem recomendar nada nessa área porque eu mesmo, ao longo da vida, tomei decisões que, se contar, certamente divertirão os netos: “Ô vô, tu é muito otário!”

Não sei se outras profissões têm a quantidade de tentações demoníacas que têm os jornalistas. Mas, até onde consegui observar nesses 52 anos de carteira assinada (e outros arranjos remuneratórios), a gente não tem um minuto de sossego. Quando os jornais tinham um financiamento mais ou menos seguro e conseguiam publicar reportagens com um certo nível de independência, era comum o assédio dos poderosos da política ou da economia aos jornalistas que eles mais temiam.

Temiam não porque o jornalista fosse violento ou grosseiro, mas porque era bom jornalista. Os maus jornalistas não causavam qualquer temor, porque era muito fácil colocá-los no bolso. Eles certamente queriam viver bem, poder pagar as contas e aceitavam os agrados, as tarefas e as merendas que  os espertos ofereciam. E quanto mais enrolado o riquinho, mais generoso. Ou generosa.

Sim, o que eu chamo (talvez levianamente) aqui de “bom jornalista” são os otários que não eram convidados para os passeios de lancha, não amanheciam no bordel com as contas pagas, não viajavam a convite, não aceitavam o emprego para a mulher, não serviam de fiador para o aluguel da garçonière. E não faziam vistas grossas nem viravam a cara para não ver o que estava diante dos seus olhos. Alguns gostavam de achar que trabalhavam a serviço do que entendiam ser “o interesse público” ou “o direito do público à informação confiável”.

E nem precisamos pensar em muito dinheiro ou coisas escalafobéticas. Tem o caso da jornalista que, ao fazer matéria de polícia numa delegacia, viu alguém espancar um preso (pra bater em sujeito algemado sempre tem um monte de valente). Contar ou não contar esse episódio, no que vier a escrever, fará toda a diferença. Não contar poderá render furos, informações exclusivas e elogios. Contar pode ser o fim da carreira. Naturalmente, nenhum de nós tem o direito de julgar o colega ou a colega pela escolha que fez, se não sabe se, naquele momento, o sapato lhe aperta. Ou que dores sofre na alma. Mas, se, apesar dos pesares e das angústias, fizer o que nós, os exegetas de sofá, achamos correto, será considerada uma boa jornalista. No caso desse exemplo hipotético, a colega publicou o caso. Portanto…

O fim do jornalismo como carreira

Conheci colegas, excelentes jornalistas, que, para dar melhores condições à sua família, aceitaram funções e cargos em condições que nunca imaginaríamos que aceitariam. “Corrompeu-se”, eu poderia dizer, do alto da minha impoluta torre de marfim. Mas não digo, porque sei o tipo de política salarial que os administradores jornalísticos praticam desde sempre. Não dá pra viver bem e ajudar a manter sua família com o quinhão que nos é reservado nesse latifúndio. 

Há pouco tempo conversei com alguns jornalistas jovens, que estão iniciando nessa vida. E, à pergunta sobre como vêem a carreira, deram respostas que penetraram como um punhal envenenado no coração deste velho jornalista que nunca fez outra coisa na vida: “não me vejo fazendo carreira no jornalismo”. E estão certos: nas condições atuais (e mesmo pretéritas), não tem como achar que se terá uma boa vida, com algum conforto e tranquilidade financeira, sendo jornalista, no sentido clássico (ultrapassado?).

O jornalista Fernando Morais, que entrevistou muitas vezes o Toninho Malvadeza (apelido “carinhoso” que jornalistas deram ao Antônio Carlos Magalhães, notório político baiano) na preparação de uma biografia que ainda não foi publicada, afirma ter ouvido dele uma das definições lapidares da ética jornalística: “Existem dois tipos de jornalista, o que quer notícia e o que quer dinheiro. Por isso um político deve andar sempre com dinheiro num bolso e notícias no outro. Mas é preciso tomar cuidado. Não se pode oferecer dinheiro para o jornalista que quer notícia e nem notícia para o jornalista que quer dinheiro”.

Essa afirmação (corretíssima e que orientou o relacionamento de políticos com jornalistas por muito tempo no país todo) fazia mais sentido no tempo em que o jornalista conseguia sobreviver, manter-se, alimentar-se e vestir-se (e à sua família!) com a remuneração que tinha num veículo de comunicação. E saía à rua apenas à procura da notícia, da informação. Era possível estabelecer esses campos e mantê-los isolados, separados por um muro. Muro construído, talvez, com o mesmo material que, em certa época, tentava separar o departamento de notícias do departamento comercial, nas empresas.

Esses muros apodreceram, sucumbiram ao ataque dos cupins, ficaram permeáveis e finalmente foram derrubados completamente. O dinheiro define o que é notícia e o que pode e o que não pode ser publicado. O “departamento comercial” (entre aspas porque não é mais apenas aquele pessoal que vende anúncios) é o principal setor de qualquer empresa de comunicação. Às vezes, o único. Mesmo em arranjos jornalísticos “alternativos”, a preocupação em agradar o “eleitorado” da direita, da esquerda e do centrão, para ter uma audiência maior que (em tese) ajude a buscar mais anunciantes acaba demonstrando, na prática, que a pauta está subordinada ao “departamento comercial”. A “linha editorial” é apenas uma figura de linguagem, um frágil traço na areia que muda ao sabor dos ventos e das marés.

E aí me encaminho para a conclusão que pensava poder evitar, ao iniciar essa chorumela: tudo indica que o jornalismo, tal como o conhecíamos (ou como o idealizávamos) acabou. Mas vou em busca da Polyanna (sim, aquela menina criada por Eleanor H. Porter no livro de 1913 e interpretada por Hayley Mills no filme de 1960) que existe em algum recanto da minha amargurada memória, para tentar extrair alguma coisa de bom e positivo desse caos aético. Espero, algum dia, conseguir. Porque até agora não pensei em nada. 

Cesar Valente – Jornalista, mestrando em Jornalismo pelo PPGJor /UFSC e pesquisador do objETHOS

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