A tecnologia não nos salvará, por André M. Neves Soares

A revolução industrial trouxe toda a sorte de progressos que hoje estamos acostumados, mas tem gerado graves danos ao nosso planeta

A tecnologia não nos salvará

por André Márcio Neves Soares

Começo este pequeno texto afirmando exatamente isso: a tecnologia não é, nem jamais será, o Santo Graal da salvação humana. Se fosse, já estaríamos salvos há bastante tempo, pois o próprio dinheiro é uma tecnologia. Mais ainda: nem mesmo o impressionante avanço do dinheiro digital contemporâneo será a panaceia final da evolução humana.

Na verdade, cada momento histórico inventado pelo ser humano tem um lado bom e um ruim, seja ele político, econômico, social, religioso, ou todos eles juntos. Por exemplo, a democracia ateniense propiciou que todo cidadão de Atenas (sexo masculino, adulto e livre) pudesse participar dos assuntos políticos da cidade. Por outro lado, duzentos anos de democracia radical ateniense foram o bastante para demonizar essa forma de governo até a contemporaneidade.

Podemos também dar como exemplo do paradoxo tecnológico a revolução industrial. Se por um lado ela trouxe toda a sorte de progressos aos quais hoje a humanidade está acostumada – desde supérfluos, tais como aparelhos sem fio, até produtos farmacêuticos importantes -, por outro lado tem gerado graves danos ao nosso planeta, como resultado do avanço desmedido rumo ao perfeccionismo de uma sociedade totalmente digital. O que atemoriza é não sabermos os limites e as consequências exatas dessa jornada, da qual não há mais retorno.

Veja bem, caro leitor, e se puder guarde minhas palavras: a corrida pelo avanço tecnológico se manterá. Salvo se algo extraordinário acontecer e acelerar a redução ou o esgotamento da capacidade de regeneração do planeta. Enquanto esse momento não chegar, se é que ele chegará, continuaremos avançando sobre todos os recursos existentes na terra, sejam eles animados ou inanimados, em busca de mais, sempre mais. Teoricamente, ainda estamos um pouco longe da extinção da capacidade de resiliência do planeta. Entretanto, as mudanças climáticas prenunciam que a marcha incessante do progresso humano está a abrir sérias feridas por todo o globo.

É preciso ressaltar que não faltam alertas, por parte de cientistas capacitados,  acerca do ponto de esgotamento das reservas naturais que compõem nossa nave mãe, as quais vêm sendo exaustivamente exploradas pelo ser humano. No momento em que escrevo, todos esses alertas estão sendo ignorados, uns mais outros menos, pelos principais países do planeta, a exemplo dos integrantes do G8, além dos BRICS. Isso não quer dizer que outros países, menos desenvolvidos, estejam promovendo ações práticas em prol do planeta. Citei os principais, pois entendo que deveria partir deles a iniciativa de mudança do paradigma tecnológico.

Em 1962, a bióloga estadunidense Rachel Carson publicou um livro que se tornou um clássico sobre a corrida tecnológica para exterminar as pragas que sempre assolaram as plantações agrícolas, por meio do uso dos famigerados pesticidas. (1) Não obstante o sucesso no rápido controle de algumas pragas, Carson mostrou que a utilização das substâncias químicas através de borrifamentos e pulverizações em larga escala já cobrava, em pouco mais de uma geração, um custo altíssimo para a saúde de muitos seres humanos, especialmente os trabalhadores diretamente envolvidos no manuseio desses produtos. De fato, o estudo de Carson foi o estopim para uma série de debates nos Estados Unidos sobre a responsabilidade da ciência e os limites do progresso tecnológico. O saldo de todos esses debates foi a proibição da produção doméstica do agente químico DDT e a intensificação de movimentos populares exigindo a proteção do meio ambiente. Infelizmente, Carson não viveu para presenciar tudo isso, pois faleceu em 1964, aos 56 anos de idade, menos de dois anos depois da publicação de sua obra.

No seu livro, ela tratou de informar a todos os interessados, em linguagem bastante acessível, os efeitos danosos para a saúde de todo o biota, a longo prazo, do uso exagerado de produtos químicos (e depois orgânicos também) na agricultura, com o potencial catastrófico de destruir o próprio ser humano e o seu mundo. Mas ela foi além, ao denunciar que a ciência e a tecnologia haviam-se tornado escravas da corrida da indústria química em busca de lucros e controle incessante dos mercados. Ela acreditava piamente que os seres humanos nunca teriam controle total sobre a natureza, sendo somente partes dela.

Ao apresentar evidências de que alguns tipos de câncer estavam relacionados à exposição a esses pesticidas, Carson refletiu profundamente sobre a interação entre nós e o meio ambiente, pois acreditava que todas as formas de vida possuem mais semelhanças do que diferenças. Logo, segundo ela, todos os males que causássemos à natureza repercutiriam, de alguma maneira, na qualidade da nossa vida enquanto espécie.

Mais de seis décadas depois da publicação do livro de Carson, estamos diante do fato de que, anualmente, são utilizados no mundo aproximadamente 2,5 milhões de toneladas de agrotóxicos, dos quais 300 mil toneladas são aplicadas nos campos do Brasil.

Em outra frente, o filósofo britânico John Gray escreveu um livro no final do século passado (2), onde lembra o reconhecimento de David Ricardo, economista liberal clássico e político britânico de origem judaico-portuguesa, no início do século XIX, de que a inovação tecnológica poderia transformar-se numa destruidora de empregos. Com efeito, para Ricardo, a ideia moderna sobre incremento das vagas de emprego por força do aumento das novas tecnologias não passava de um mito. Nas palavras dele,

“A descoberta e o uso das máquinas podem vir acompanhados de uma diminuição da produção bruta e, dependendo das circunstâncias, serão prejudiciais à classe operária, já que parte dela será afastada do emprego e a população irá se tonando supérflua”. (Apud Gray, ob. cit., pág. 116)  

Nessa toada, para Gray, fazendo coro com Ricardo, o desemprego de longo prazo nas sociedades ocidentais adiantadas deve-se à introdução de novas tecnologias e à qualificação profissional insuficiente da maior parcela da população, como consequência de uma educação formal inadequada para os novos tempos. Apesar da desigualdade de renda ter crescido na contemporaneidade, ela certamente é parte da história do progresso humano, estimulada pela política neoliberal de desregulamentação do mercado de trabalho, a causa fundamental da queda dos salários e do aumento do desemprego é a ampliação da nova tecnologia.

E não chega a surpreender que a redução da garantia de emprego seja mundial. Afinal, para Gray, a pós-modernidade para os países mais desenvolvidos nada mais é do que a tempestade perfeita da rápida transformação tecnológica com liberdade global no comércio e movimentação do capital, a desregulamentação do mercado de trabalho nas sociedades adiantadas e o rápido crescimento demográfico nos países periféricos, que abafou o poder dos trabalhadores organizados.

A propósito, a notícia das demissões em massa nas gigantes de tecnologia, apesar do lucro recorde no ano passado, passou quase despercebida. (3) Realmente, as chamadas “Sete Magníficas” – Alphabet (controladora do Google), Apple, Amazon, Meta, Microsoft, Tesla e Nvidia – ganharam quase US$ 400 bilhões em 2023, 25% mais do que no ano anterior. A contrapartida disso foi a demissão de 168.032 empregados nessas empresas de tecnologia no ano de 2023, além de já ter ocorrido, no início desse ano, mais 32.000 demissões de trabalhadores, se somarmos às empresas já citadas acima as outras 122 principais empresas de tecnologia do mundo. E o ano mal começou.

A preocupação do FMI com o impacto da IA na sociedade global parece genuíno. De fato, em tempos recentes, esse tem sido um tema recorrente nas discussões anuais em Davos. O FMI trabalha com um cenário de redução dos empregos da ordem de 40% para um futuro próximo, sendo que para os empregos mais qualificados essa porcentagem pode alcançar 60%. Logo, quanto mais tecnologia for empregada nos países mais desenvolvidos, maiores serão as perdas da mão-de-obra qualificada, com agravamento da desigualdade salarial já existente e prejuízo sobretudo para a chamada classe média. Mas o FMI ainda se apega à crença de que se os ganhos de produtividade forem suficientemente elevados, então os níveis de rendimento poderiam subir para o conjunto dos trabalhadores.

Todavia, essa segunda onda gigante de cortes tem a ver com três variáveis: a inovação incessante do setor tecnológico das grandes empresas do ramo, especialmente das chamadas “mega-caps” (empresas de tecnologia de megacapitalização), que já possuem IA suficiente para substituir o equivalente a 300 milhões de vagas de emprego em tempo integral; o cenário instável devido à alta inflacionária na principal potência do planeta e os conflitos armados ao redor do mundo; e o modelo insaciável neoliberal, que objetiva assegurar maiores lucros aos seus investidores.

Considerando tal cenário, pode-se imaginar que o acordo recentemente celebrado entre a Unesco e algumas empresas de forte alcance tecnológico – Grupo Lenovo,LG AI Research, Mastercard, Microsoft, Salesforce, GSMA, INNIT e Telefónica – seja insuficiente para garantir a proteção dos direitos humanos, quando os interesses financeiros dessas empresas estiverem ameaçados.

Ora, como mensurar a quebra do direito humano na prática, em vista do primeiro implante de chip em cérebro humano realizado pela empresa Neuralink de Elon Musk? Segundo este, o equipamento chamado Telepathy “permite o controle de seu telefone ou computador, e através deles quase qualquer dispositivo, apenas pensando”. (4) A primeira narrativa, como não poderia ser diferente, é a de que essa tecnologia será usada em pessoas que perderam a mobilidade de seus membros. Mas a narrativa oficial para justificar o lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki no Japão foi a de pôr fim à Segunda Guerra Mundial. Qualquer semelhança da mitigação dos objetivos entre as duas narrativas acima, em relação ao verdadeiro objetivo de cada uma delas, não é mera coincidência.

É por tudo o exposto até aqui que venho insistindo há tempos sobre a aporia do humanismo romântico de um gigante como Edgar Morin, diante de uma sociedade global cada vez menos apegada a sentimentos. Não obstante seus apelos mais que pertinentes sobre uma “medicina planetária”, sobre a necessidade de “humanizar” as cidades e a necessidade de reconstrução da esperança, o volume de tecnologias existentes hoje no mundo não irá permitir o que Morin chama de uma “corajosa luta inicial”. (5) Como reiniciar algo que já foi corroído pelo capitalismo?

Nesse sentido, o próprio Morin corrobora a sensação de que as dificuldades para suportar a hegemonia do lucro são cada vez maiores. Vivemos um aumento dos tipos de servidões, desigualdades e egoísmos. A técnica está a substituir nossas verdadeiras necessidades e aspirações baseada no gozo instantâneo do consumo. Apesar de Morin ainda achar que a “civilização do interesse” nunca poderá aniquilar o que ele chama de “oásis da vida” – a convivência amorosa, familiar, fraterna, de amizade, solidária e lúdica -, ele apela por uma reforma das condições de trabalho, que hoje produz a mecanização dos comportamentos. Morin, talvez mais do que ninguém, dada a sua longevidade, sabe que consumo e tecnologia estão intimamente imbricados nessa “sociedade do interesse”. Simplesmente não há como reformar o consumo, diante da avalanche de tecnologias disponíveis.

Ao acreditar que o “humanismo se dá como respeito a todo ser humano”, (6) Morin parece abstrair por um segundo o fato de que a civilização atual migra para um tipo de sociedade onde a robotização parcial ou total da vida humana, a depender da capacidade de consumo de cada um, já está madura o suficiente para que a consciência solidária da comunidade terrestre seja apenas uma quimera. Não por acaso ele lamenta que hoje refugiamo-nos por toda a parte nos particularismos étnicos, nacionalistas e religiosos.

À vista disso, faz sentido o alerta do professor de História da University College Dublin, Mark Jones, sobre o perigo de 2024 vir a ser um ponto de viragem tão  trágico quanto o ano de 1933, quando da ascensão de Hittler ao cargo de chanceler da Alemanha. (7) A tecnologia de desinformação que funcionou esplendidamente bem para destruir a democracia de Weimar pode, perfeitamente, servir aos interesses das inúmeras elites que estarão jogando sua sobrevivência política nas próximas eleições em todo o planeta, especialmente na Rússia, nos Estados Unidos e nos países da União Europeia.

O professor Jones entende que não podemos cometer o mesmo erro dos homens influentes da Alemanha, que viram em Hitler e no Partido Nazi a oportunidade de promover uma agenda conservadora. Para ele, a perspectiva de mais uma reeleição de Putin, da volta de Trump ao poder e da consolidação de um Parlamento Europeu ainda mais conservador é tão sombria, que muitos se recusam a contemplá-la. Menos o próprio capital, uma vez que, como ele mencionou exemplificativamente, o CEO do JP Morgan Chase, Jamie Dimon, que já começou a contatar Trump.

É incrível como a modernização desmedida vem suscitando alertas desesperados nas últimas décadas. Um dos mais importantes talvez seja o lançado pelo filósofo argelino Jacques Rancière. (8) Deveras, para ele, a ciência real está a suprimir os limites nacionais pela expansão ilimitada do capital e a submeter essa expansão ilimitada do capital aos limites das nações. O resultado disso, para Rancière, é o casamento do princípio da riqueza com o princípio da ciência, que fundamenta a nova legitimidade da oligarquia. A ciência passou a ser utilizada pelas minúsculas elites que compõem o capitalismo financeiro global para exorcizar a velha aporia: governar sem política. Nas palavras de Rancière:

“E, embora seja possível estabelecer por comparações estatísticas que certas formas de flexibilização do direito do trabalho criam no médio prazo mais empregos do que eliminam, é mais difícil demonstrar que a livre circulação de capitais que exigem rentabilidade cada vez mais rápida seja a lei providencial que conduzirá a humanidade a um futuro melhor. Isso exige fé. A ignorância que se critica no povo é simplesmente a sua falta de fé. De fato, a fé histórica mudou de campo. Hoje, parece o apanágio dos governantes e de seus especialistas. Isso porque apoia sua compulsão mais profunda, a compulsão natural ao governo oligárquico: a compulsão a se livrar do povo e da política.” (ob. cit. pág. 103)  

Finalizo esse texto citando mais um alerta, dessa vez em prol da tecnologia suprema do Armagedom, proferido pelo Secretário de Defesa britânico Grant Sharps, no início desse ano. Para ele, não estamos num mundo “pós-guerra”, mas num mundo “pré-guerra”. (9) Sharps entende que o ressurgimento industrial-militar da Grã-Bretanha passa pelas novas tecnologias nucleares,  em um mundo repleto de vários teatros de guerra que podem conduzir a um novo conflito mundial. Ele parece certo. Com efeito, nunca estivemos tão perto da terceira guerra mundial, desde o episódio dos mísseis em Cuba, lá na década de 1960. Segundo o Doomsday Clock, o Relógio do Juízo Final, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, estamos a 90 segundos da meia-noite, horário que representa a destruição do planeta por uma guerra nuclear.

Noutro giro, a Secretária Geral da Campanha pelo Desarmamento Nuclear – CND -, Kate Hudson, também alerta que, no verão passado, o número de armas nucleares disponíveis para uso havia realmente aumentado, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. Os indícios, como vemos, estão aí. Em 2022 os nove Estados com armas nucleares gastaram US$ 89,2 bilhões com esse tipo de armamento. Só os Estados Unidos gastaram quase metade desse valor. A própria Grã-Bretanha aumentou o limite de ogivas nucleares em mais de 40%, passando para 260 ogivas, além de parar de fornecer informações sobre o assunto para a imprensa. Segundo Hudson, “Quando Estados nucleares fortemente armados se confrontam, diretamente ou por procuração, não existe um ‘pequeno’ ataque nuclear”. (10)

Está mais do que na hora de prestarmos atenção a todos esses indícios de que o mundo está mais perigoso, apesar de mais confortável e com muitas facilidades tecnológicas, para quem pode pagar, claro.

REFERÊNCIAS:

1 – CARSON, Rachel. PRIMAVERA SILENCIOSA. São Paulo. Gaia. 2010;

2 – GRAY, John. Falso amanhecer – os equívocos do capitalismo global. Rio de Janeiro. Record. 1999;

3 – https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72grxw4wg0o;

4 – https://www.poder360.com.br/tecnologia/empresa-de-musk-faz-1o-implante-de-chip-em-cerebro-humano/;

5 – https://www.ihu.unisinos.br/636536-morin-diante-do-pensamento-socialista-em-ruinas-a-missao-do-intelectual-torna-se-uma-luta;

6 – https://www.ihu.unisinos.br/636539-o-novo-humanismo-artigo-de-edgar-morin;

7 – https://www.ihu.unisinos.br/categorias/636496-sera-2024-tal-como-1933-o-ano-da-destruicao-da-democracia-artigo-de-mark-jones;

8 – RANCIÈRE, Jacques. O ÓDIO À DEMOCRACIA. São Paulo. Boitempo. 2014;

9 – https://jacobin.com.br/2024/02/estamos-voltando-a-nos-aproximar-do-armagedom-nuclear/;

10 – Idem.

André Márcio Neves SoaresDoutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL/BA.

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Redação

2 Comentários

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  1. Lendo seu ensaio, André, não pude deixar de pensar no que disse Mauro Santayana, já há alguns anos em referência ao filósofo italiano Gianbatista Vicco que, no século XVIII escreveu que a tecnologia ainda iria fazer o mundo voltar à barbárie.
    Meus parabéns!

  2. Como um Demóstenes nas Filípicas, apesar de tudo, eu insisto com minhas propostas de antídoto:
    Um TGV aqui, agora, mas a partir de Brasilia, não aquele Rio-Sao Paulo sem apelo integrativo, caro, demorado e sem impacto semiótico de historialização.
    Aí teríamos a socialização da tecnologia, percebe? Uma subversão à “ordem” Viccaniana que querem nos impor.

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