Agosto, mês de Obaluaê. Atotô, meu velho!, por Mariana Nassif

Agosto, mês de Obaluaê. Atotô, meu velho!, por Mariana Nassif

“Às vezes velhas feridas coçam. Sentimos o comichão e, quando percebemos, estamos olhando para as cicatrizes. Começa com um pequeno incômodo e vai expandindo, crescendo, se enraizando nas lembranças de como foram feitas, impressas em nossa história, pele, carne e alma. Deslizamos a ponta dos dedos sobre as marcas sentindo, milímetro a milímetro, camadas diferentes de memórias veladas e sepultadas querendo voltar à vida. Vamos descobrindo que as partes que gostamos de pensar que se tornaram uma “casca grossa” ainda têm alguma sensibilidade. Talvez tenham para sempre. E somos tomados por uma dor que nem deveria mais existir, pertencente a uma parte de nossa vida que já foi amputada. Uma “dor fantasma” nos convidando a passear por lugares sombrios. Sorte que não acredito em fantasmas e prefiro lugares ensolarados.” O prefácio deste post, escrito pelo Felipe Agne, um comunicólogo com quem encontrei apenas uma vez presencialmente mas que é alguém que inexplicavelmente quero bem, narra detalhadamente certa fase de um processo conhecido por aqui, e é disso que eu quero falar hoje.

Falar de feridas sem falar de Obaluaê é impossível. Orixá das palhas, da terra, da cura – e também das chagas, da morte. Agosto é seu mês e, pelo que tem se apresentado até o momento, vem sendo implacável a sintonia entre a energia do orixá e os eventos nos arredores. No seu não? Nada de transformação, sério mesmo?

O texto do Agne me tocou por alguns motivos. O principal deles, pelo retrato sensorial de que o passado, mesmo o que passou, faz parte de nós.

Cabe a cada um escolher se aquilo será assustador ou libertador. Este é um exercício que venho me propondo a realizar e, confesso, tem sido bastante difícil – olhar pra dentro geralmente o é.

O isolamento promoveu reflexões profundas, despedidas nem tão doloridas quando eu esperava que fossem, lágrimas e algum medo, além de outros desenrolares íntimos e privados demais para expor, pelo menos enquanto ainda estão maturando em mim. Pactuei importâncias comigo mesma sob a energia do orixá, que é potente que só, e que, aqui fora, já em contato com a vida real, mesmo que em doses homeopáticas, se eu não prestar atenção, caem em desuso. Mas mesmo eu, que acredito em fantasmas, escolhi os lugares ensolarados e, de preferência, bem arejados com os ventos de minha mãe Oyá para viver.

Já não quero mais me importar em resolver assuntos, ando me esforçando para respeitar os movimentos e momentos das tantas forças que operam sobre um evento ou mais; já não me cabe mais desejar o controle para evitar as dores que um dia senti, pois o que vem há de ser sempre mistério. Confiar nos processos todos, inclusive nos de cura propriamente dita, como a terapia, as constelações… acreditar que os processos também têm seu próprio tempo e que quem manda neste é o Tempo, e não eu, olha, tem sido um desafio libertador. Minhas feridas estão secando, e desejo manter as boas memórias quando olhar para suas cicatrizes. 

A escolha é minha sim, rotineira e persistente, em pensar, sentir e agir, na mesma direção, como bem diz uma grande amiga do mar. Porém o resultado, ah, é enlouquecedor e ansiolítico demais pensar que a vida cabe toda num planejamento ponto a ponto. E de loucura e ansiedade já tive minha cota antes de renascer. Não se passam 21 dias envolvida em rituais profundos e verdadeiramente mágicos pra voltar sem feridas fechadas, apesar daquilo que nos é aberto e ofertado, com a pele pronta para receber o que vem de novo por aqui.

Ainda não me olhei no espelho, o que acontece apenas em Outubro, mas afirmo que não me reconheço em diversas fotografias. Quer dizer, me reconheço em mim como nunca, e sei que não estava ali, nem mesmo em retrospecto com olhar de “estava fazendo o melhor que pude”. Em alguns momentos eu simplesmente não estava ali, e existe um enorme compromisso para que isso nunca mais aconteça. Eu vou deixar de me equivocar, de errar porque agora tenho orixá? Não. Mas não vai ser por ser alguém que eu não sou. Se você já passou por processo parecido, sabe o quanto isso emociona. Dá vontade de se dar um abraço. Ah, que deliciosa é a força de quem se perdeu de si mesma e se estruturou em si de novo, como nunca ou vem, pelo menos, experimentando o gosto que tem ser senhora do próprio desejo (e, em igual proporção, da frustração).  

Que oportunidade, viu? Aproveitar-hei e, quando mais alguma coisa fizer sentido, fizer sentir, divido por aqui com vocês, só porque é gostoso demais reviver as sensações de ser filha de Oyá enquanto ela nasce em mim e, como ela também anda com as próprias palhas, me sinto permitida a saudar: Atotô, Ajubero, Atotô, Obaluaê.

 

Mariana A. Nassif

3 Comentários

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  1. Lindo!
    Retrato fidedigno. Dores, todas. Cicatrizes. Cura.

    Meu Pai Oxalá é o rei venha me valer
    Meu Pai Oxalá é o rei venha me valer
    O velho Omulu, Atotô Baluaê
    O velho Omulu, Atotô Baluaê

    Atotô!

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