De sinhá a patroa, por Bárbara Amaral dos Santos

Após a a emenda constitucional nº 72, resultado da aprovação da “PEC das domésticas”, o tema da relação entre empregadas e patrões voltou à cena com o filme de Anna Muylaert, que escancarou outras facetas pouco discutidas quando o debate se limita aos direitos trabalhistas

do Brasil Debate

De sinhá a patroa: o efeito de ‘Que horas ela volta?’ no reconhecimento do privilégio

Bárbara Amaral dos Santos

Há tempos a temática do trabalho doméstico vem sendo para mim aquela incômoda pedra no sapato. Sou mulher branca, de classe média e feminista que mantém uma relação de quase 15 anos com uma grande mulher que lavou minhas roupas, cozinhou minha comida, me deu colo, afeto; compartilhou comigo suas confidências e me deu severas broncas.

Esta mesma mulher se recusou uma, duas, centenas de vezes se sentar comigo e com minha mãe à mesa ou a não lavar a louça em um evento para o qual ela era a convidada. Que relação é esta permeada de desigualdade, afeto e cuidado?

O “ser feminista” neste contexto implica reconhecer as opressões de gênero, raça e classe embutidas no trabalho doméstico. E o ser feminista branca, de classe média resulta num trabalho diário e constante do reconhecimento do meu privilégio e de mim enquanto opressora. Detectar ações discriminatórias e entendê-las enquanto práticas cotidianas automatizadas que são capazes de ser desconstruídas é o primeiro passo para a não reprodução das opressões sistematizadas.

Após as tramitações da PEC 66/2012, que culminaram na emenda constitucional n°72 , a temática voltou à cena com o filme roteirizado e dirigido pela cineasta paulistana Anna Muylaert, “Que horas ela volta?” (2015). O filme escancarou ao público outras facetas pouco discutidas quando o debate se limita aos direitos trabalhistas, como a (não) evidente relação de opressão que extrapola a relação trabalhista.

Alguns argumentos contra a PEC 66/2012 ousavam ser contrários à aquisição de mais direitos, afirmando-se vocais na defesa das trabalhadoras devido ao risco que estas teriam de perder seus empregos, caso aprovada a emenda constitucional: argumentos que eram utilizados para manter pessoas negras escravizadas no Brasil se repetiram publicamente na exclusão de alguns direitos trabalhistas de trabalhadoras(es) domésticas(os) na constituinte de 1988  e, de novo, nas discussões da PEC 66/2012.

Mesmo assim, a conexão entre a escravatura e o trabalho doméstico passa despercebida no debate público, apesar dos esforços constantes dos movimentos de mulheres negras e de trabalhadoras domésticas de ressaltar esta triste herança do trabalho doméstico remunerado.

O filme traz as consequências desta herança de forma mais explícita. Digo as consequências, pois a escolha da figura de mulheres não-negras para a personagem da trabalhadora doméstica Val (Regina Casé) e também de sua filha Jéssica (Camila Márdila) dificulta essa conexão direta.

O enfoque acaba sendo na desigualdade de classe e relega o debate sobre a discriminação racial mais uma vez à margem. De qualquer maneira, tendo sido um artifício proposital ou não da diretora, não quero, neste momento, argumentar a favor ou contra esta escolha, tendo em vista que mulheres nordestinas não-negras também constituem uma grande parte da força do trabalho doméstico remunerado no Brasil. Somente gostaria de pontuar que não há como realizar qualquer análise sobre o trabalho doméstico sem ser à luz de sua herança colonial escravocrata.

Via de regra, o público cria uma relação de afinidade, de simpatia e/ou identificação com o personagem principal. Neste caso, para além de ser Val a personagem principal, a perspectiva dela está no centro da narrativa, o que guia o público a analisar as situações e interações entre os personagens desde o ponto de vista de uma trabalhadora doméstica, de seus anseios, sentimentos, de sua resiliência e, por fim, de sua resistência.

A construção do argumento a partir do olhar do Outro, do subalterno, é um dos motivos pelos quais Anna Muylaert consegue trazer muitos elementos interessantes e suscitar reflexões necessárias no público, principalmente quando este é o público de classe média/alta que terceiriza o trabalho do cuidado e os afazeres domésticos.

O(a) telespectador(a) enquanto patroa ou patrão dificilmente conseguiria se colocar no lugar das trabalhadoras domésticas, devido ao abismo social e próxima realidade do trabalho doméstico remunerado. Ou seja, pode-se criar afinidade e simpatia pela personagem Val, no entanto a identificação deste específico público cairá sobre os personagens que fazem parte do núcleo familiar dos patrões. Por isto, as reflexões suscitadas podem vir a contribuir para o processo de reconhecimento de privilégio.

O artifício utilizado no longa para quebrar e questionar as velhas práticas não-ditas do trabalho doméstico remunerado no Brasil é a personagem Jéssica: ela não somente questiona; ela age, desobedece e resiste às imposições não-contratuais, classistas e racistas que regem o trabalho doméstico.

O morar no trabalho e ser acomodada no quarto dos fundos, o fato de nunca ter entrado na piscina, a proibição de comer certos alimentos, a limitação de quando e/ou onde sentar-se, entre outras coisas, são apontadas por Jéssica ao longo do filme. As reações de “dona” Bárbara (Karina Teles), por sua vez, vão delimitando o aceitável e o não aceitável dentro daquela relação que a própria personagem descreve como uma relação de família. Estas reações da patroa transformam a opressão já há tempos sentida em regras verbalizadas e explícitas.

A opressão explícita pesa e visibiliza outras opções de vida, de ocupações, e torna-se insustentável. A resistência à opressão, representada pela cena em que Val entra na piscina e os atos seguintes de se demitir e de ainda pegar o jogo de café que havia sido rechaçado pela patroa; pode ser lida como uma mensagem aos(às) patrões(oas) no público: a mensagem de que não há mais espaço na conjuntura atual de nosso país para a opressão sistemática de mulheres, grande parte delas negras, nos moldes coloniais.

Identifiquei-me muito com Fabinho (Michel Joelsas), em seu sincero amor por Val e, ao mesmo tempo, na sua incapacidade de levantar da mesa para pegar sua própria comida que está na geladeira a 30 centímetros de distância (entre outras coisas). Confesso que há tempos o incômodo em “ser servida” cresce, mas ainda não foi o suficiente para que eu tomasse ação para que isto não mais aconteça. Não se trata de advogar por uma relação trabalhista em que não haja afeto, mas que este não mais seja travestido pelo que se crê ser “bondade” ou a “caridade” do(a) empregador(a).

Bárbara Amaral dos Santos – É feminista, socióloga pela UnB, mestra em Estudos de Gênero e das Mulheres pela Universidade de Oviedo (Espanha) e Universidade de Utrecht (Holanda)

Redação

1 Comentário

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  1. A ironia nas palavras

    A primeira vez que escutei alguém me dizer “patroinha” eu senti uma reação violenta de choque dentro de mim. Eu senti aquele tapa no rosto, como se ela dizesse sinhazinha e parei tudo ali, naquele instante, para mudar essa relação de cima para baixo.

    A relação com a empregada doméstica no Brasil é ainda ruim porque elas são exploradas economicamente, moralmente e emocionalmente e isso não existe em nenhum outro tipo de trabalho. Eh, sim, a ultima herança do escravagismo e é preciso toda uma mudança estrutural no Brasil para mudar isso.

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