Justiceiros sinalizam alerta para sociedade carioca

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Foto: Yvonne Bezerra de Mello

Educadora foi ameaçada após alertar autoridades sobre adolescente amarrado a poste

Os episódios de “justiçamento” ocorridos nos últimos dias no Rio de Janeiro, quando jovens foram acorrentados a postes nos bairros do Flamengo, na Zona Sul, e da Taquara, na Zona Oeste, sinalizam um importante alerta para a sociedade carioca, indicam especialistas ouvidos pela BBC Brasil.

Embora concordem que não se trata de um fenômeno novo na cidade, e que chacinas, grupos de extermínio, milícias e outras formas de fazer Justiça com as próprias mãos sejam parte da realidade de todo o país, os entrevistados acreditam que os casos são preocupantes e merecem atenção cuidadosa da população e do governo.

A educadora Yvonne Bezerra de Mello, que fundou o projeto Uerê e há anos trabalha com crianças carentes, encontrou o adolescente de 15 anos acorrentado no Flamengo na noite do dia 31 de janeiro e o fotografou, postou as imagens no Facebook e alertou as autoridades. O garoto foi espancado, teve suas roupas arrancadas e depois foi acorrentado com um cadeado de bicicleta. Durante a surra, também perdeu parte de uma orelha.

“Eu passei uma semana recebendo todo tipo de ameaça. Diziam que a culpa dos roubos nas ruas era minha, porque eu ajudava essas crianças. Para mim estamos entrando num período de caos, de barbárie”, diz Yvonne, que perdeu oito de seus alunos na chacina da Candelária, em 1993. Para ela, há muitas semelhanças entre os jovens de classe média que saíam à caça de homossexuais e mendigos na Zona Sul do Rio entre os anos 80 e 90 e os grupos atuais, que focam suas atenções sobre os supostos assaltantes.

A polícia também registrou ataques recentes a gays no Aterro do Flamengo, mas não ficou claro se os responsáveis são os mesmos pelo ocorrido na semana passada.

Justiceiros

Angelo Castilho, de 29 anos, é o criador do grupo no Facebook Reage Flamengo: Queremos Nosso Bairro de Volta. Ele critica a falta de policiamento no bairro, diz que os moradores estão “abandonados” diante dos assaltos frequentes, e argumenta que todos têm direito de legítima defesa.

Na rede social, a página, que foi criada no início do mês e já conta com mais de 200 integrantes, se define como um “grupo criado para debates sobre como combater a violência crescente no bairro. Se você já teve um pai ou irmão vitimado, não se sinta oprimido por marxistas babacas. Você aqui será bem-vindo e aqui todos nós vamos compreender sua revolta”.

“Quem apoia os justiceiros não se dá conta de que pode ser o próximo alvo. Hoje são supostos bandidos, amanhã homossexuais, e depois?”

Jaqueline Muniz, antropóloga

Em entrevista à BBC Brasil, Castillo diz apoiar o que foi feito com o adolescente no Flamengo, mas nega conhecer os responsáveis pelo ocorrido.

Ele se autodefine como de direita e a favor da redução da maioridade penal, e acha que as pessoas deveriam ter mais facilidade para andar armadas. Quanto aos gays, se diz a favor dos homossexuais e das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, mas contrário ao kit gay (material que seria distribuído em escolas públicas para combater a homofobia mas foi vetado pelo governo federal).

Castilho conta que a maioria dos integrantes do grupo é do sexo masculino, tem entre 19 e 35 anos e pratica alguma arte marcial, como jiu-jitsu, muay thai ou luta livre. “Somos eu e mais umas 50 pessoas envolvidas nisso. Se esperar demais, acontece o que aconteceu. O bairro fica à deriva. A gente vê pessoas sendo espancadas, assaltadas. Se a população tiver oportunidade, tem que reagir”, diz.

‘Barbárie e inferno’

Para a antropóloga Alba Zaluar, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o fenômeno dos justiceiros não é novo, pois já ocorreu em décadas passadas. Ela acredita que “vamos caminhar para a barbárie” caso não se efetive “uma relação de cooperação entre a sociedade e a polícia”.

Já o professor de Sociologia e Antropologia Michel Misse, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), alerta que a reação favorável a essas práticas na sociedade é muito preocupante. “É preciso compreender que a sobrevivência dessa ideia de justiça como vingança, uma ideia pré-moderna, é absurda, e que não é uma saída aos problemas. Precisamos esclarecer a importância da lei, ou estamos fadados ao inferno”, argumenta.

João Pedro Pádua, advogado criminalista e professor de Processo Penal da UFF (Universidade Federal Fluminense), acredita que é justamente a descrença na lei que move a lógica do justiçamento no país.

Foto: Facebook

Grupo diz que moradores devem agir em legítima defesa

“A lei é um instrumento que é mal visto como regulador social no Brasil. Para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei. Por não confiar na lei, o policial mata porque crê que a Justiça será lenta e ineficiente. O jovem da Zona Sul se junta em bandos e faz justiça com as próprias mãos. E assim as milícias, os traficantes, é a mesma lógica”, diz.

O criminologista argumenta que o Brasil tem um conjunto de indicadores altamente contraditórios entre si. “Continuamos prendendo sempre mais pessoas, temos uma alta taxa de encarceramento. A polícia aqui mata mais do que em qualquer outro lugar do mundo, e o crime não está diminuindo. Agora temos cada vez mais justiçamentos e execuções, e ainda há crime. É nítido que precisamos buscar soluções para a segurança pública”, diz.

Para Jaqueline Muniz, antropóloga e cientista política e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é crucial esclarecer que o justiçamento nada mais é do que uma “apropriação privatista dos mecanismos de policiamento. Trata-se de um policiamento ilegal e clandestino, idêntico às milícias e ao patrulhamento das favelas exercidos por narcotraficantes”.

Ela argumenta que ao apoiar este tipo de prática, a população deve manter em mente que está entregando “um cheque em branco, uma procuração assinada” a esses grupos, e que o “defensor de hoje pode ser o tirano de amanhã”.

“Quem apoia os justiceiros não se dá conta de que pode ser o próximo alvo. Hoje são supostos bandidos, amanhã homossexuais, e depois? Ao entregar o uso da força a esses grupos, essa parcela da população não se dá conta de que assina um cheque em branco, porque são eles que vão definir as regras, não você. Essa imprevisibilidade de regras produz o terror. É um movimento conhecido na História, e justamente por isso foram criadas a polícia e o Judiciário”.

Segurança Pública

“A lei é um instrumento que é mal visto como regulador social no Brasil. Para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei.”

João Pedro Pádua, advogado criminalista

Em reação ao caso no Flamengo, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (Seseg) disse que o secretário José Mariano Beltrame “repudia a existência de grupos de justiceiros e qualquer ação de violência” e que a pasta “determinou que a Polícia Civil identifique, localize e prenda aqueles que, ao agir por conta própria, cometem crimes”.

Quanto ao número de assaltos no bairro, a 9ª Delegacia de Polícia (Catete), registrou um aumento de 61% no número de roubos a transeuntes entre janeiro e outubro de 2013 em comparação com o mesmo período de 2012. De acordo com os números do ISP (Instituto de Segurança Pública), foram 496 casos em 2012, contra 801 em 2013.

A elevação é maior do que a acumulada em toda a capital, que teve uma variação de 10% no mesmo período – em 2012 (janeiro a outubro) foram 22.488 registros, contra 24.703 em 2013.

A Seseg não negou os números, mas argumentou que no último trimestre do ano passado houve cem prisões por flagrantes de roubos e furtos, contra 66 no mesmo período de 2012, e que no final do ano as ocorrências diminuíram gradativamente.

O governo diz ainda que o policiamento foi reforçado no bairro e que o delegado Roberto Gomes (que assumiu nesta semana a 9ª DP, supervisiona as investigações para identificar todos os envolvidos no grupo que atacou o adolescente e que pretende autuá-los no crime de formação de quadrilha.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

7 Comentários

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  1. Bestas à solta

    Opiniões e piadas bestiais antes eram compartilhadas reservadamente, com interlocutores bem selecionados, amigos ou familiares. Contavam piada de preto, defendiam pena de morte, criticavam suposta ditadura gay, direitos humanos pra bandido e outras pérolas de preconceito, desinformação.

    Porém, de um tempo prá cá, esses temas entraram sem vergonha em páginas da imprensa, como Veja. Alguns programas policialescos, há tempo, já abordavam a criminalidade de forma maniqueísta, simplista. Mas a coisa estourou. As redes sociais, o Facebook, trouxeram aquela segurança e sensação de inconsequência semelhante a que temos no trânsito para soltar impropérios. Daí, os “iguais” começaram a se encontrar. Então veio o “stand up”, e aquelas piadinhas politicamente incorretas (pra usar um eufemismo) saíram das mesas das elites e passaram pra tevê. Logo, a opinião bestial passou para o horário nobre, editoriais de jornais, e a ser compartilhada sem pudor.

    É reflexo do medo de classes. A elite e a classe média tradicional morrem de medo de quem está embaixo. Tem origem no fracasso da educação, tanto em casa quanto na escola. O currículo está direcionado ao capital. A gente estuda, desde a primeira série, pra ser bem sucedido, pra ganhar dinheiro, para ser um vencedor. Assim, temos de derrotar os outros. Aí vale tudo. E qualquer tentativa de inclusão, de igualização, é vista como trapaça.

    Alguém precisa conduzir o país a um processo de transformação, à correção dos rumos. Um estadista, alguma instituição religiosa, um grupo de empresários, a imprensa. Mas o primeiro está acovardado, dando cada passo com cálculos eleitorais. A segunda está mais preocupada com seus dogmas excludentes. Os empresários nacionais não têm essa capacidade de organização. A grande imprensa está na luta pelo poder e dinheiro dos patrões, acuando e acovardando todos os anteriores. Muitos cidadãos ainda lutam isolados por uma sociedade mais justa.

     

    “Tão cegos são os homens, que chegam a gloriar-se da própria cegueira!” Santo Agostinho

  2. Cadê a imprensa velha?

    E  por que a imprensa não cai em cima desses imbecis como caiu em cima dos assassinos do cinegrafista? Por que não pressiona os órgãos públicos, políticos, judiciário contra esses babacas filhinhos de papai? Não precisaria nem caçá-los, eles tem  “cara”, nome e endereço.

    Ah! Sim. O problema é o endereço. eles são rebentos mimados de tubarões da mídia, diretores de redação, juízes, políticos, delegados, enfim, gente bacaninha para quem a lei é apenas um objeto útil em casos de necessidade, como um rolo de papel higiênico.

    Que os envolvidos na morte do cinegrafista sejam todos presos, julgados e que paguem pelo crime. O que me revolta no entanto, é essa diferença de tratamento. Para o MST e os black-blocs da vida, as manchetonas e o sensacionalismo. Para esses pulhas, o  silêncio complacente.

  3. Não adianta ficarmos

    Não adianta ficarmos espantados com o garoto amarrado ao poste.

    Se continuarmos na mesma trilha veremos muitos outros acorrentados em varios postes pelas ruas.

    A encruzilhada do pais esta na dificuldade que os querem uma sociedade melhor tem para criticar o governo.

    A luta politica atual é violenta.

    Criticas oferecem, no momento, munição aos adversarios.

    E apesar de todos os erros e mediocridades das autoridades, estariamos muito pior nas mãos de um aecinho ou de um dudu beleza.

    A sorte é que ambos são pessimos de palanque.

    São incapazes de explorar politicamente  as falhas nas politicas de segurança.

    E são muitas.

    Nos comentarios do blog muitos de “esquerda” apresentam o problema como uma questão entre pobres e ricos.

    Não é verdade.

    Os pobres sofrem muito mais que os ricos com a insegurança.

    São roubados nos onibus, nas ruas, no trabalho.

    Nos postos de gasolina, em geral, as vitimas não são os proprietarios, mas os frentistas,agredidos,esfaqueados, assassinados.

    Nas localidades pobres a vida esta se tornando insuportavel.

    Necessitamos de lucidez e coragem para vencer esse caos.

    A violencia interessa a  poucos.

    Mas ja é tão constante que assaltar esta se tornando um ato banal.

    E enfiar um revolver na cara de alguem por um relogio ou celular é um ato muito grave.

    A sociedade que não olha-lo assim esta mal direcionada.

    Porem a violencia não acontece apenas quando alguem a ponta uma arma em direção ao outro.

    Ela esta no transito.

    Esta na maneira como os motoristas dirigem nas estradas, nas ruas, com total falta de respeito a vida alheia, como buzinamos sem necessidade.

    Esta na maneira como os veiculos de informação denigrem a reputação de alguem.

    Esta na forma como tratamos nossos rios, nossas praias, nossas matas, nossas crianças, nossos velhos.

    Para consertarmos o que esta errado teremos que partir resolvendo todas essas formas de violencia.

  4. A arte e a vida

    Sugiro a todos a leitura de um esplêndido romance, que narra em tom quase folhetinesco uma história passada no distrito Diamantino, MG, logo depois da “independência”. Vão ver que vem de longe o que hoje ocorre no Rio, três séculos depois.

    Reitero: apesar da fidelidade histórica, o romance é romance mesmo, literatura da ótima, nada a ver com obras panfletárias.

    Em breve tudo será mistério e cinza, romance de estréia de Alberto A. Reis.

  5. “Castilho conta que a maioria

    “Castilho conta que a maioria dos integrantes do grupo é do sexo masculino, tem entre 19 e 35 anos e pratica alguma arte marcial, como jiu-jitsu, muay thai ou luta livre. “

    Só podia. Um bando de calhordas. Quando se juntam ficam corajosos e agressivos, sozinhos, parecem uns bambis.

     

  6. Mais um número no Circo de Horrores

    De uma maneira geral, a maioria das pessoas procura relacionar fatos como este (adolescente preso à poste) a causas ligadas a segurança pública ou à nossa realidade socioeconômica. De fato, tanto uma quanto outra apresentam falhas crônicas, como podemos perceber nas políticas de prevenção, punição ou assistência aos desfavorecidos. Mas o que tem me chamado atenção mesmo são as críticas que passam longe de uma reflexão mais ampla, e que, a meu ver, apontariam para as principais causas de nossa patologia social, marcada pelo predomínio do egocentrismo absurdo, manifestado pelos ismos da pós-modernidade – narcisismo, individualismo, egoísmo, imediatismo e consumismo.  Assim, acredito que é dessa ausência de saúde coletiva, onde a dor alheia passa a ser encarada como apenas um número de um circo de horrores, que surgem as ações bestiais dos “justiceiros” e os fracassos das políticas públicas.

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