Mãe não é amiga – mas que conceito antigo, santa!, por Mariana Nassif

Mãe não é amiga – mas que conceito antigo, santa!

por Mariana Nassif

As questões relacionadas a maternidade vêm sendo reformuladas e, já não era sem tempo, mais dialogadas em ambientes diversos – não somente nas rodas de mães e corredores dos hospitais. A volta do parto domiciliar, das doulas e até mesmo da prática da educação não escolar, veja bem, ampliaram os horizontes de um dos assuntos mais antigos da existência feminina. Hoje em dia, nossa-senhora-do-já-não-era-sem-tempo, os destinos das mulheres não está mais intrinsecamente ligado ao ser mãe.

Caminhos como a legalização do aborto e sobre as questões de gênero também são pauta importante deste diálogo necessário, que vem abrindo portas ainda modestas para as rodas paternas, essa figura nem sempre presente na gestação e na criação de um filho.

Ora, se todos estes aspectos caminham em transformação constante, por que não examinar o caráter psicológico do maternar? Eu, que quase não gosto de discutir embasada nas teorias de Jung e Maslow, me deleito ao perceber que, pasmem, ainda vivemos, individual e coletivamente, ligados íntima e fortemente aos ciclos normativos de repetição. Basicamente, “se minha mãe fazia assim, eu repito”. Uma matemática completamente equivocada, que desconsidera as teorias de evolução individual, a psiquê do novo grupo e, muito importante, as oportunidades de desenvolvimento que se responsabilizar por uma vida aqui na terra apresenta. Defender com veemência que às mães é reservados reinos dos céus ignora as agruras de cada mulher, de cada filho, de cada família já que, é claro pra todo mundo, todo novo fator há de gerar impacto de modificação, e quase nada mais forte nesse mundo que o fator “filho”.

Vamos supor que antes de ter um filho, minha vida como indivíduo estivesse num rumo X. A entrada do novo elemento provoca alteração mesmo que eu não queira e, inclusive, este não querer já impacta ambas as existências. Imagine só o que acontece quando eu decido, então, que aquela pessoa tem o direito de alterar meu rumo para o caminho Y e começo, então, a desenhar outros planos. As mudanças e alterações podem ser formidáveis, de elevação, passando por questões de dissolução de traumas e feridas e culminando num novo e mais saudável modelo familiar que, claro, é assustador para aquele clã que já vem se formando antes de alguém decidir espremer a laranja até o bagaço. (E não, não é apenas uma história pessoal – tenho acompanhado perfis de mães e pais que operam no que vou chamar de novo modelo e, enfim, resumindo bastante, estas pessoas definitivamente experimentam novidades na vida de mãe/pai/casal, é nítido, é óbvio e vem sendo muito mais saudável do que a repetição de valores quase nunca questionados). Eu “culpo” a psicologia que, em enorme parte, mesmo que para uma pequeníssima parcela da população, tem efeito curativo e auxilia a concretizar a formação de famílias novas de verdade.

Enquanto escrevo, um aperto no peito aparece em decorrência da observação de que esta viabilidade acontece quase tão somente na minha bolha de pessoas. Não sei, de verdade, o impacto que estes novos experimentos familiares têm na vida rural, por exemplo, ou na vida daqueles que não têm acesso à informação. Ainda, optei por não acompanhar as novelas, que por bem ou por mal, são termômetros sociais por onde conseguimos observar o que dá pra ser aceito e digerido pela sociedade mais ampla, aquela da qual não se faz parte mesmo sem ter feito escolha alguma. Uma das culpas mais terríveis que carrego em mim é essa vida fechadinha, esse mundinho que desenvolvi e que desenvolveu-se ao meu redor e, então, um dos compromissos que tenho comigo após este período de reclusão que vem chegando – semana que vem, semana que vem! – é o de explorar a imensidão destes organismos desconhecidos.

Voltando a questão das mães, particularmente me impactou uma frase escutada na semana passada: “você e a Clara parecem irmãs”. Claro que já escutei isso inúmeras vezes, algumas delas essencialmente relacionadas às nossas aparências joviais (ui!), outras poucas ao magnetismo que cultivamos em nossa relação, ainda mais após minha mudança para Ubatuba. Existe uma sinergia verdadeira, alegre, um quê de festa nestes encontros que, ao que me parece, causa estranheza por acontecer entre uma mãe e uma filha, como se para esta relação fossem exclusivamente reservados os momentos de conflito, tensão e discórdia. Olha, eu me transformei muito desde que a Clara apareceu na minha vida e sim, claro, temos conflitos profundíssimos. Diz um grande amigo que aposta que a gente jamais daria conta de morar juntas porque eu sou muito louca, preocupada ao extremo, e seria incapaz de cultivar as asas que tanto prezo para que ela voe, pelo menos numa convivência diária e rotineira. Daqui, de longe, é essencial este cultivo e, então, percebo que sou confrontada a quase todo momento a confiar – seja na educação que dou, seja no indivíduo que ela é e, então, percebo nitidamente que uma mudança pessoal impacta, e muito, a dinâmica da relação. 

Não sou mais amiga e menos mãe por escolher me transformar para que ambas tenham uma vida mais feliz: me sinto especialmente satisfeita quando percebo que essa possibilidade existe e faz muito mais sentido para nós duas do que manter hierarquias nas quais o filho tem pouca ou quase nenhuma voz perante as individualidades da mãe “porque eu sou a mãe aqui”. Ressalto, ainda, que a conivência sugerida pelo ato de adjetivar como “irmã” e “amiga”, quando na forma pejorativa, também pode acontecer na forma tradicional “mãe-filho”, mas recebe o nome (forte) de negligência e, aí, o buraco é mais embaixo porque, neste caso, quase sempre a tal da culpa recai sobre quem precisa reformular.

David Cooper, em A Morte da Família, por favor leiam este livro, diz que “o indivíduo tem que chegar à posição de poder fazer o balanço geral de todo o seu passado em família; chegar ao balanço geral de todo seu passado familiar para dele ver-se livre de uma maneira que seja pessoalmente mais eficaz do que a simples ruptura agressiva ou meras atitudes de separação geográfica. Se o indivíduo conseguir proceder da maneira indicada (…), poderá atingir o raro estado de apreciar realmente os pais e a eles se afeiçoar livremente, ao invés de viver engolfado em um amor ambíguo e aprisionante (do qual também os pais são vítimas, tanto quanto os filhos)”.

Eu amo a ideia da liberdade contida nos atos de amor e, portanto, encerro este texto sugerindo que sejamos imediatamente contra as unanimidades, especialmente aquelas que perpetuam sofrimento, dor e o cultivo de mágoas que, observando bem, dão cada vez mais espaço para que as constelações familiares sejam eventos lucrativos e poderosos, uma vez que na grande maioria das vezes não nos é apresentada a possibilidade de romper por e com amorosidade.

 

Mariana A. Nassif

1 Comentário

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  1. Parabéns, Mariana

    Texto muito bem escrito, embasado, com toques particulares, posicionamento pessoal e, por isso mesmo, transparente.

    Aguardo sempre o próximo.

    Abraço da Odonir

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