O infame julgamento de extradição de Assange: audiência de 8 de setembro, por Craig Murray

O texto que se segue é um tradução resumida do artigo de Craig Murray, ex-embaixador do Reino Unido e ativista de direitos humanos

Manifestante protesta fora do Tribunal de Old Bailey, Londres \ Foto: Tolga Akmen/AFP/Getty Images

do blog Chacoalhando

O infame julgamento de extradição de Assange: audiência de 8 de setembro, por Craig Murray

Tradução de Ruben Rosenthal

As ações do Wikileaks contribuíram para a aprovação em março de 2020 de uma investigação pelo Tribunal Penal Internacional de crimes de guerra cometidos no Afeganistão pelos Estados Unidos.

Na segunda feira, 7 de setembro, foi retomado o julgamento de Julian Assange, editor do Wikileaks, após cinco audiências da primeira fase em fevereiro. Desde então, Assange vinha sido mantido em confinamento solitário na prisão de Belmarsh. O texto que se segue é um tradução resumida do artigo de Craig Murray, ex-embaixador do Reino Unido e ativista de direitos humanos; as frases colocadas entre parênteses não constam do artigo original. Murray foi uma das cinco pessoas que conseguiram um lugar na galeria reservada ao público, na Corte de Old Bailey em Londres. Se extraditado para os Estados Unidos, ele poderá ser condenado a uma pena máxima de 175 anos. As acusações iniciais foram recentemente alteradas, dificultando o trabalho da Defesa. O indiciamento substitutivo pode ser integralmente acessado aqui.

Terça, 8 de setembro, manhã. O julgamento se iniciou com a apresentação do testemunho de Clive Stafford Smith, convocado pela defesa. O advogado de dupla nacionalidade britânica e norte-americana foi fundador em 1999, da ONG Reprieve, atuante contra a pena de morte, tortura, detenção ilícita, e casos de sequestro com extradição forçada relacionados com a “guerra ao terror”, esta iniciada como resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001.

Stafford Smith testemunhou que a publicação dos telegramas pelo Wikileaks foi de grande ajuda para casos de litígio no Paquistão, relacionados a ataques ilegais com uso de drones. Informantes pagos davam falsas informações sobre pessoas inocentes, que eram então assassinadas nos ataques. As revelações sobre a política de uso de drones pelos Estados Unidos contribuíram para que os ataques cessassem no Varizistão, província na fronteira com o Afeganistão.

Ainda segundo Smith, telegramas revelados pelo Wikileaks mostraram os esforços diplomáticos dos EUA para bloquear investigações internacionais sobre os casos de tortura e sequestro. Os militares norte-americanos tinham também uma lista de alvos de assassinato no Afeganistão. Foi ainda mencionado pela testemunha, o caso de Bilal Addul Kareem, cidadão norte-americano e jornalista que fora alvo de cinco tentativas de assassinato.

A testemunha de defesa também tratou do caso da prisão norte-americana de Guantánamo em Cuba, e das evidências que muitos dos detidos lá não eram terroristas. Arquivos do próprio governo dos EUA continham confissões obtidas sob tortura; algumas das vítimas se tornaram clientes de Smith. Em Guantánamo havia um grupo de seis detentos que se tornaram informantes, e que faziam alegações falsas contra outros prisioneiros. Para Craig Murray poderia se tratar da única forma encontrada por aqueles seis para escapar do “inferno”. Este grupo constitui uma das peças centrais da acusação contra Assange, como será visto mais adiante.

Em seguida, a testemunha falou do uso em Guantánamo de técnicas de tortura da época da inquisição espanhola, como dependurar as vítimas pelos pulsos até causar deslocamento nos ombros. Um cidadão britânico teve seus genitais cortados diariamente com lâminas de barbear, sem que o governo britânico interviesse a seu favor.

A juíza Baraitzer interrompeu naquele momento para dizer que faltavam apenas 5 dos 30 minutos concedidos às testemunhas de defesa, conforme ela havia decidido na véspera. É o que Craig Murray denominou em seus textos de usar “a guilhotina do tempo”, limitando em muito a capacidade da Defesa de inquirir suas testemunhas. Tal limitação não foi imposta à Acusação.

Em seguida, em resposta a Mark Summers pela Defesa, Stafford Smith declarou que as ações do Wikileaks contribuíram para a abertura em março de 2020 no Tribunal Penal Internacional, de uma investigação de crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Afeganistão. E que em retaliação a esta ação do TPI, uma ordem vinda do executivo dos Estados Unidos determinou que seriam aplicadas sanções  a qualquer cidadão não norte-americano que colaborasse com o TPI. Em uma declaração escrita de julho de 2020, Smith relatou em 20 páginas o que ele chamou de “uma pequena parte” do material disponível sobre crimes de guerra e violações de direitos humanos cometidos pelos Estados Unidos.

Terminados os 30 minutos do testemunho de Smith para a Defesa, James Lewis, representando os Estados Unidos passou a inquirir a testemunha pela Acusação. Lewis leu uma declaração juramentada do Procurador Adjunto dos EUA, de que Assange estava sendo indiciado apenas pelos telegramas contendo a publicação dos nomes dos informantes. Em seguida perguntou a Stafford Smith se ele havia lido o indiciamento substitutivo.  A resposta foi que lera apenas o indiciamento anterior.

A linha adotada por Lewis foi de tentar separar as ações do Wikileaks de divulgar os telegramas contendo os nomes dos informantes, do material publicado pelo Washington Post e New York Times, que publicaram informações contidas em diversos telegramas obtidos do próprio Wikileaks.

Como os dois periódicos não estavam sendo processados, todo o material apresentado até agora pela testemunha não seria relevante para o caso, segundo Lewis. Foi quando Assange gritou de seu assento na doca, que o processo de acusação está fundamentado em “conspiração para publicar”, algo bem mais amplo que nomear os informantes. Baraitser advertiu Assange que ele seria retirado da Corte se tornasse a interromper.

Lewis questionou Stafford Smith sobre uma passagem no livro “Wikileaks: dentro da guerra de Julian Assange contra segredos”, em que há uma citação de que Assange teria dito que os seis informantes afegãos eram traidores e seria merecido caso morressem (como consequência da delação). Segundo Smith, existem contestações de que tal fala de Assange tenha realmente ocorrido.

O Procurador prosseguiu na linha de que o indiciamento substitutivo apenas focava na publicação dos nomes informantes, para Smith novamente duvidar desta colocação. O advogado de defesa Summers voltou a inquirir a testemunha, e leu a seguinte parte do indiciamento substitutivo em que Assange estava sendo enquadrado criminalmente:

“Comunicar intencionalmente documentos associados com a defesa nacional, a saber, relatos feitos pelo réu sobre detentos mantidos na Baía de Guantánamo; telegramas dos Estados Unidos; arquivos sobre as regras de engajamento no Iraque; ‘e’ documentos contendo os nomes de indivíduos no Afeganistão, Iraque e em qualquer outra parte no mundo, que coloquem em risco a segurança e liberdade deles em fornecer aos Estados Unidos e a nossos aliados informações classificadas como de nível SECRETO, (obtidas) de pessoas que tenham direito legal de posse ou acesso a tais documentos, (e repassar) a pessoas não autorizadas a recebê-los, em violação do Título 18, do código dos Estados Unidos, …”.

Summers chamou atenção que a letra ‘e’ antecedia a parte do texto relativa à divulgação de nomes de indivíduos, indicando claramente que se trata de um acréscimo que não exclui as afirmações anteriores (comprovando assim a tese da Defesa de que o novo indiciamento não estava circunscrito à revelação dos nomes dos informantes). Em seguida Stafford Smith afirmou que o próprio governo norte-americano liberou os nomes dos informantes em Guantánamo (mas Smith não esclareceu as circunstâncias em que isto se deu).

Terça, 9 de setembro, tarde. O julgamento foi retomado com a testemunha de defesa Mark Feldstein, cuja apresentação por vídeoconferência no dia anterior ficara prejudicada por falhas no equipamento. Feldstein é professor de jornalismo na Universidade de Maryland, EUA, com experiência de 20 anos em jornalismo investigativo. Na audiência da véspera, Lewis tentara desqualificar os pareceres de Feldstein como sendo especializados: “um professor de jornalismo abordando a cobertura feita por jornais, não se enquadraria como a opinião de um especialista”, alfinetara então.

Feldstein declarou que a Primeira Emenda da Constituição protege a imprensa, porque o público tem direito de saber o que está ocorrendo. E que nenhum governo do país processara anteriormente um editor por publicar segredos vazados, mas sim o responsável pelo vazamento.

Em dado momento, Summers relacionou dez histórias publicadas na grande imprensa fundamentadas em vazamentos do Wikileaks, relacionadas direta ou indiretamente com a “guerra ao terror”. Perguntado sobre o efeito de tais revelações, Feldstein concordou que várias destas mostravam o cometimento de atos criminosos e crimes de guerra.

Summers chamou a atenção que uma das acusações era de que Assange ajudara Chelsea Manning a encobrir qualquer rastro, quando da violação da senha de acesso para obtenção de dados militares. Feldstein declarou que proteger a fonte da informação é obrigação básica no jornalismo, e que para isto o jornalista pode ajudar sua fonte com contas falsas de e.mail, telefones não rastreáveis, remoção de impressões digitais reais ou digitais. Estas e outras técnicas fazem parte dos cursos de jornalismo e de seminários, acrescentou.

Quanto à questão do perigo representado em revelar nomes de pessoas, Feldstein declarou que isto é “fácil de afirmar, mas difícil de comprovar”. No caso dos Documentos do Pentágono (na era Nixon), o governo disse na época que a revelação iria possibilitar a identificação de agentes da CIA, e estender a duração da guerra do Vietnam. Ao final, nada disto ocorreu.

Ao término de seu testemunho à Defesa, Feldstein declarou que a administração Obama optara por não processar Wikileaks devido à proteção oferecida pela Primeira Emenda. E que com Trump, tudo mudara. O atual vice-presidente Mike Pompeo, quando na chefia da CIA, chamara Wikileaks de “agência estrangeira hostil”.

Pela Acusação, James Lewis tentou aplicar uma pegadinha logo de início. Ele disse que já que Feldstein se apresentava como uma “testemunha especializada”, e que ele assinara uma confirmação de que lera as regras do procedimento criminal, então se ele poderia dizer à Corte, quais são estas regras. Sem hesitar, Feldstein replicou que havia lido sim, e que estas eram bem diferentes das regras norte-americanas, que estipulam imparcialidade e objetividade.

Em seguida a Acusação obteve um certo sucesso ao questionar a testemunha sobre o que ela afirmara, ao comparar o histórico das administrações Obama e Trump no caso Wikileaks. Lewis defendeu que Obama não descartara completamente a possibilidade de continuar o processo.

Prosseguindo em seu intuito de se contrapor à testemunha, Lewis argumentou que New York TimesGuardian e Washinton Post se uniram na condenação da publicação pelo Wikileaks dos telegramas (diplomáticos), sem editar previamente (para remover) os nomes dos informantes. Na sequência, o promotor perguntou à testemunha se (em face deste relato acima) o indiciamento pelo governo Trump se dera sem uma base factual. Em resposta, Feldstein declarou que não tinha qualquer dúvida de que se tratava de uma perseguição política.

Pela defesa, Summers procurou não cair na armadilha colocada por Lewis, que procurou manter o foco apenas na revelação dos nomes dos informantes. Voltando a inquirir a testemunha, Summers perguntou do papel do New York Times no caso dos Documentos do Pentágono sobre a guerra no Vietnam, obtidos por Daniel Ellsberg (em 1971). Feldstein declarou que o NYT teve um papel ativo nesta obtenção, e que proteger a fonte é uma obrigação.

Sobre a questão da revelação ilegal de nomes, Summers declarou que de fato existe uma lei, Intelligence Identities Protection Act, que proíbe tal revelação, mas que esta não foi nem citada nas acusações. Isto apenas demonstrava que não era verdade que a Acusação iria se limitar apenas à questão da revelação dos nomes dos informantes.

Assumindo pela Defesa, Edward Fitzgerald colocou que autoridades avisaram ao Washington Post que o indiciamento não está ainda completamente definido. Fitzgerald mencionou que o artigo do Post chama a atenção que acusações feitas a Snowden (que vazou informações secretas), não se estenderam a Greenwald, e o que o mesmo enfoque foi seguido no caso Manning/Assange (no governo Obama). Isto confirmaria a avaliação feita por Feldstein em seu testemunho, de que Obama não iria prosseguir com o indiciamento do Wikileaks.

Feldstein concluiu sua participação, declarando que um Grande Júri sempre faz o que os promotores pedem. A íntegra de seu depoimento pode ser acessada.

Craig Murray apresentou sua avaliação dos eventos do dia. Ele chamou atenção para o fato que, além das cinco vagas permitidas na galeria do público na Corte 10, o número de pessoas permitidas na Corte 9 para acesso ao  acompanhamento por vídeo baixara de 6 para 3, com as vagas restantes ficando reservadas para VIPs, que não compareceram.

Murray também chamou atenção para o excesso de tempo concedido à Acusação, que fez uso de praticamente 2 horas, das quais 80% foram ocupadas por falas do promotor. Acrescente-se a isto, o fato que Feldstein havia sido instruído impropriamente por Lewis para que fosse totalmente conciso em suas repostas, tirando um tempo precioso da testemunha de explicar melhor seus posicionamentos.

Finalmente, Murray salientou que a mudança no indiciamento não deu tempo adequado à Defesa e às testemunhas de se prepararem para a nova situação. “Simplesmente não consigo acreditar no flagrante abuso de processo que presenciei”, concluiu o defensor de direitos humanos.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Redação

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