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Embasamento legal para reabilitação gradativa de prédios antigos para habitação social

O grupo executivo coordenou a visita a um número expressivo de edifícios – foram 51 imóveis visitados, onde residem 3500 famílias (10.650 pessoas), sendo 57% deles com vínculo a movimentos organizados de luta por moradia.

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Embasamento legal para reabilitação gradativa de prédios antigos para habitação social

por Ricardo Moretti, Celso Santos Carvalho, Julia Moretti, Giovanna Milano, Francisco Comaru, Renata Gonçalves, Mary Jane Spink, Fernando Rocha Nogueira, Lucas Rangel Eduardo Silva

Síntese – objetivos

            Trata-se do relato das conclusões de uma iniciativa que foi organizada pela UFABC (Laboratório de Justiça Territorial e Laboratório de Gestão de Riscos), UNIFESP (Transborda – Estudos da Urbanização Crítica) e PUC-SP (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Práticas Discursivas no Cotidiano). Este texto visa apresentar os resultados dos debates acontecidos em reunião virtual ocorrida dia 01 de abril de 2021, em que estiveram presentes 42 profissionais das Universidades, dos Movimentos de Moradia, de assessorias técnicas e advocacia popular, da Defensoria Pública, da Magistratura e do Ministério Público. Este foi o primeiro de uma série de quatro eventos que visam a identificação de estratégias para viabilizar a qualificação da segurança dos prédios antigos ocupados para moradia, com foco na realidade encontrada na cidade de São Paulo.

Objetivos do ciclo de eventos

  • Ampliar o entendimento do conceito de risco nos prédios ocupados por moradia coletiva, abarcando a dimensão social e avançando na perspectiva da identificação das ações e políticas públicas para viabilizar a reabilitação gradativa dos prédios antigos para habitação social;
  • Refletir sobre possibilidades na legislação existente quanto à qualificação gradativa dos prédios antigos, degradados, com o conceito de regularização fundiária e identificar lacunas e potencialidades de ação;
  • Avançar na construção de parâmetros para a perícia sobre risco em prédios antigos e ocupados, de forma a contemplar a qualificação de segurança.

Antecedentes do evento

            Em decorrência do incêndio e desabamento do prédio Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, no dia 01 de maio de 2018, a Prefeitura de São Paulo instituiu, por meio da Portaria nº 353, de 16 de maio de 2018, um Grupo Executivo com as seguintes atribuições:

Art. 1º. Fica instituído, no âmbito da Secretaria do Governo Municipal, Grupo Executivo com o objetivo de realizar visitas técnicas nos imóveis edificados, públicos ou privados, objeto de ocupações irregulares, já identificados pela Secretaria Municipal de Habitação – SEHAB, ou que venham a ser posteriormente identificados, para verificar as condições desses imóveis e emitir relatório de requalificação de segurança das edificações.

            O grupo executivo coordenou a visita a um número expressivo de edifícios – foram 51 imóveis visitados, onde residem 3500 famílias (10.650 pessoas), sendo 57% deles com vínculo a movimentos organizados de luta por moradia. Essas visitas, mais do que avaliar os problemas e riscos existentes nestes prédios, avançaram na identificação de medidas prioritárias para qualificação de segurança dos moradores. Cabe ressaltar, que do conjunto vistoriado, em apenas três casos não foram identificadas formas de proceder a melhorias emergenciais de segurança, exigindo a interdição e remoção dos moradores. Por outro lado, o relatório constatou o acesso deficitário ao fornecimento regular de serviços de saneamento básico (12,8%) e energia elétrica (11,8%), o que agrava as condições de segurança e salubridade.

            Em síntese, o relatório mostrou que do ponto de vista técnico é possível elaborar medidas efetivas de melhoria das condições de segurança na grande maioria dos edifícios ocupados, medidas essas que não exigem a retirada das famílias.

Questões apresentadas para debate no primeiro evento do dia 01 de abril de 2021

            Os objetivos deste evento foram inventariar e debater a efetividade da base legal para intervenções progressivas de melhoria das condições de segurança nos prédios de moradia coletiva, avaliando a possibilidade de utilizar o arcabouço normativo que já viabiliza a urbanização progressiva de favelas e sua regularização fundiária, inclusive em terrenos de propriedade privada, sem que fosse necessária a remoção dos moradores.

            Objetivou-se ainda avaliar os embates e desafios associados à preparação de laudos e perícias técnicas nestes casos, bem como, de forma geral, identificar caminhos para um melhor desfecho da judicialização dos processos, assegurando-se os direitos de posse, o cumprimento da previsão constitucional de direito à moradia e o cumprimento da função social da propriedade, uma vez que se trata de ocupações em prédios antigos, abandonados, que não cumpriam sua função prevista no Plano Diretor da cidade antes da sua utilização como moradia coletiva. 

Embasamento legal para a reabilitação gradativa

            Houve forte convergência de manifestações no sentido de já existir embasamento legal para a ação pública de melhoria das condições de segurança dos prédios ocupados. Entre as leis citadas, destacam-se as Leis Federais: 13.465/2017 (artigos 59 a 60 61 a 63, e os artigos que regulamentam Reurb-S), Lei 6766/1979 (artigo 40), Lei 12340/2010, com a redação dada pela Lei 12.608/2012 e a Lei 11.888/2008.

            Na legislação do município de São Paulo foram lembrados a Lei Orgânica do Município (art. 149) o Plano Diretor (com relação à regulamentação das Zonas Especiais de Interesse Social), o Código de Obras e Edificações (Lei Municipal 13465/2017, artigo 78) e a chamada Lei Moura (Lei 10928/91 artigos 4º e 7º).

            Inicialmente cabe destacar a possibilidade de aplicação da Lei Federal 13.465/2017, que dispõe sobre a Regularização Fundiária de Interesse Social (Reurb-S), que é a regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda. Houve algumas manifestações na reunião, no sentido de que a regulamentação de Reurb-S pode ser perfeitamente aplicada aos casos dos prédios antigos utilizados como habitação social coletiva. Neste mesmo instrumento legal está regulamentado o condomínio urbano simples, quando um mesmo imóvel contiver casas ou cômodos (artigo 61 a 63). Há também inúmeros dispositivos nessa lei  (art. 11, §1º; 14, §2º; 35, VII; 37) que tratam da dimensão de uso e ocupação (conformidade tipológica) e de melhorias das condições habitacionais, inclusive no caso de edifícios construídos para venda de unidades já edificadas, que serão regularizados como conjuntos habitacionais (artigos 59 e 60). Ou seja, há na lei 13465/2017 previsão legal de aplicação da regularização a edifícios, verdadeiros núcleos urbanos informais verticais.

            Já na Lei Federal 6766/1979, no seu artigo 40, está previsto que, diante do descumprimento do loteador, a prefeitura poderá agir no sentido de sanar a falta, devendo cobrar o ressarcimento dos gastos com a regularização do proprietário/loteador. Há jurisprudência do STJ de que o município tem, neste caso, não só o poder, mas também o dever de agir, para fiscalizar e regularizar loteamento irregular, não se tratando de simples discricionariedade administrativa. Nas discussões foi apresentada a opinião de que essa disposição legal aplicar-se-ia também às moradias coletivas que se configuram nos edifícios ocupados.

            Em síntese, as Leis 6.766/1979 e 13.465/2017 dariam suporte à regularização fundiária das moradias coletivas implantadas em edifícios ocupados da mesma forma que ocorre nos assentamentos informais implantados em glebas ocupadas, admitindo: (1) a regularização dominial independente da regularização urbanística (ou no caso edilícia), desde que haja um cronograma de execução de obras que podem se processar por etapas; (2) que os responsáveis pela regularização sejam os próprios moradores; e, (3) que o município tem o poder/dever de realizar as obras necessárias, podendo exigir ressarcimento dos gastos por parte dos proprietários. A regularização com melhoria das condições de segurança e, na sua impossibilidade, a realocação / reassentamento (exercício da moradia em local distinto do original) seriam direitos dos moradores.

            Com relação à utilização de remoção dos moradores como principal alternativa para redução de riscos, foi levantado que a Lei Federal 12.340/2010, em seu Art. 3-B, estabelece que verificada a ocorrência de ocupações em áreas sujeitas a escorregamentos de grande impacto ou situações de risco correlatas, o município deverá adotar prioritariamente medidas de redução de risco, devendo a remoção de moradores ser realizada apenas quando as medidas prioritárias não forem exequíveis, situação em que deve ser acompanhada por medidas de realocação / reassentamento para atender ao princípio constitucional do direito à moradia. Defende-se que os dispositivos legais definidos para gestão de risco em favelas apliquem-se também à gestão de risco em edifícios ocupados por população de baixa renda.

            Ainda no acabouço legal federal vale lembrar o que está regulamentado na Lei 11.888/2008, que assegura o direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, como parte integrante do direito social à moradia previsto no art. 6o da Constituição Federal.

            Vale destacar ainda a Resolução número 10 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, de 19 de março de 2020, bem como a Recomendação número 90  do Conselho Nacional de Justiça, de 2 de março de 2021 que aprovaram um conjunto de procedimentos especiais para o período de enfrentamento da pandemia, inclusive prevendo “a suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções determinadas em processos judiciais, pois os processos de remoção, além de gerar deslocamentos de famílias e pessoas que foram impactadas, também as obrigam a entrar em situações de maior precariedade e exposição ao vírus, como compartilhar habitação com outras famílias e, em casos extremos, a morarem na rua”.

            Dessa forma, conclui-se que no que diz respeito a intervenções voltadas para a gestão de risco, a legislação federal dispõe que, medidas de melhoria da segurança devem sobrepor-se a medidas de remoção de moradores, que devem ser especialmente evitadas enquanto se mantiver as restrições e medidas especiais associadas à situação de emergência sanitária devido à pandemia de Covid-19.

            Na esfera estadual, há legislação que prevê regras especiais para prevenção de incêndios nas edificações existentes antes da vigência da atual regulamentação, ou seja, dezembro de 2018 (disposição transitória, artigo único e Anexo A – tabela 4 do Decreto Estadual 63.911/2018), permitindo adaptações, em que pese tais adaptações não dispensarem a conformidade das instalações elétricas e do sistema de proteção contra descargas atmosféricas com as normas técnicas.

            Quando se trata da melhoria da qualidade e regularização das instalações elétricas dos prédios, a Resolução Aneel 414/2010, modificada e complementada pela Resolução 479/2012, no seu artigo 52, prevê o atendimento de unidades consumidoras localizadas em assentamentos irregulares ocupados predominantemente por população de baixa renda, e que o mesmo deve ser realizado como forma de reduzir o risco de danos e acidentes a pessoas, bens ou instalações do sistema elétrico e de combater o uso irregular da energia elétrica. Mais uma vez, a racionalidade impõe que o arcabouço normativo voltado para a redução de riscos em favelas seja também aplicado ao risco em edifícios ocupados por população de baixa renda.

            Quando se passa para a legislação municipal, é importante observar a atribuição básica inserida na Lei Orgânica do Município (art. 149) de promover ações em moradias coletivas visando dotá-las de condições de segurança e salubridade. O espírito da regulamentação incluída no Plano Diretor de São Paulo, com relação às Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que explicita para parte dos prédios ocupados da área central de São Paulo, a função social para moradia social, o que ampara e enseja as ações do poder público para assegurar o cumprimento desta função. Vale destacar que 49% dos 51 prédios ocupados visitados em 2018 são gravados no Plano Diretor como ZEIS. O Código de Obras e Edificações de São Paulo (Lei nº 16.642/2017 e Decreto nº 57.776/2017) prevê e regulamenta a requalificação de edificações e no artigo 78 da Lei 16.642/2017 está explícita a possibilidade de adotar soluções que, por implicação de caráter estrutural, não atendam às disposições previstas na regulamentação edilícia, desde que não comprometam a salubridade, nem acarretem redução de acessibilidade e de segurança de uso. Está previsto no §2º do artigo mencionado a possibilidade de que sejam atendidos, nas soluções de acessibilidade, os princípios da adaptação razoável. Reconhece-se explicitamente, assim, a necessidade de se utilizar na reabilitação de prédios antigos, critérios que diferem daqueles que são utilizados nas novas edificações, o que é coerente com a lógica da regularização fundiária aplicada a dimensão do uso e ocupação (conformidade tipológica).

            Também na legislação municipal de São Paulo há a Lei Moura (Lei Municipal 10.928/1991) que regulamenta a intervenção nos cortiços, espécie do gênero moradia coletiva multifamiliar, gênero esse que não deixa de ser a situação encontrada nos prédios ocupados em São Paulo. No seu artigo 7º, esta lei prevê a possibilidade da autoridade municipal competente, na existência de condições físicas e de habitabilidade que evidenciam grave e iminente risco à vida ou à saúde dos moradores, realizar as obras necessárias à eliminação do risco, delas se ressarcindo ulteriormente. Há também na lei a possibilidade de a Prefeitura coordenar acordos com o proprietário e os concessionários de serviço público visando a melhoria das condições de habitabilidade e segurança (art. 4º).

            É importante registrar a iniciativa do programa “De braços abertos” da Prefeitura de São Paulo, iniciado em 2014, onde foram utilizados prédios privados, e a prefeitura investia na requalificação dos prédios, encontrando-se assim precedente legal deste tipo de iniciativa.

            Para os casos judicializados, aventou-se a possibilidade de lançar mão de juízos cooperantes (art. 68, CPC) para permitir a coordenação de processos e decisões relativos a um mesmo território, reconhecendo o caráter de conflito locacional e o impacto que a insegurança da posse tem na adoção de ações voltadas a qualificação da segurança e redução da vulnerabilidade. Foi mencionada a importância de seguir um modelo de decisões estruturais, que permitem soluções negociadas e implementação gradativa, sendo necessário aumentar a participação de moradores nas ações de “manejo de risco” (atualmente, em apenas 18% das Ações Civis Públicas de Manejo de Risco houve a participação dos moradores), bem como a inclusão das concessionárias de serviço público no processo, além da necessidade de repensar a produção probatória, inclusive as perícias, adequando-as à realidade das ocupações. Também se discutiu a importância de, nos processos judiciais, pensar na função social da propriedade e da cidade de forma mais ampla. Ou seja, sem prescindir da importante declaração de descumprimento da função social da propriedade por parte do Município (declaração de não utilização nos moldes do Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios – PEUC), a utilização do princípio da função social não deve ficar limitada ou vinculada a essa declaração (apenas 3,9% dos 51 prédios ocupados e vistoriados foram notificados), mobilizando-se, nesse sentido, o conceito de responsabilidade preventiva, uma tutela anterior a ocorrência de danos que lança olhares para a consequência das ações e omissões da Administração Pública e dos particulares a partir de um dever geral de cuidado, sobretudo com os mais vulneráveis.

            O debate ocorrido no evento sinalizou, portanto, um farto e sólido embasamento legal para as ações e obras de melhoria na segurança nos prédios ocupados por moradia coletiva em São Paulo. Considera-se estratégico que seja dispensado a este tipo de moradia, os mesmos princípios legais que já são utilizados na urbanização de favelas e, em geral, aos núcleos urbanos informais habitados predominantemente por população de baixa renda.

Ricardo Moretti, Celso Santos Carvalho, Julia Moretti, Giovanna Milano, Francisco Comaru, Renata Gonçalves, Mary Jane Spink, Fernando Rocha Nogueira, Lucas Rangel Eduardo Silva são colaboradores da Rede BrCidades.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas

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