Anjos & insetos. IX. A saga dos Curie, por Felipe A. P. L. Costa

Anjos & insetos. IX. A saga dos Curie

Por Felipe A. P. L. Costa [1]

Em 1911, uma obstinada cientista, mãe de duas filhas e já então viúva, era agraciada com o Nobel de Química [2]. Um feito e tanto, sem dúvida; por incrível que pareça, no entanto, não era um feito inédito: oito anos antes, ela havia sido laureada com o Nobel de Física. Seu nome: Marie Sklodowska-Curie, ou simplesmente Marie Curie, como se tornou conhecida mundo afora.

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Maria Salomea Sklodowska – ‘Maria’ veio da avó materna e ‘Salomea’, da avó paterna – nasceu em Varsóvia, em 7/11/1867. Filha de um casal de professores, Wladyslaw e Bronislawa Sklodowski, era a caçula de cinco irmãos: Zofia (1861-1876), Józef (1863-1937), Bronislawa (1865-1939), Helena (1866-1961) e ela.

A despeito das restrições financeiras, as crianças cresceram em uma atmosfera intelectual – além dos pais, o avô paterno, Józef Sklodowski, havia sido professor [3]. A história familiar, no entanto, foi marcada pelas perdas precoces: a morte de Zofia, vítima de tifo, e a da mãe, tuberculosa, dois anos depois. Os quatro filhos foram criados pelo pai.

Após concluir o ensino secundário, Maria Salomea prosseguiu os estudos em uma instituição clandestina – a Universidade de Varsóvia não aceitava mulheres. Em 1891, foi para Paris. Anos antes, com a sua ajuda, a irmã mais velha, agora uma médica casada, havia trilhado o mesmo caminho. Morou com Bronislawa e o marido algum tempo, mas decidiu alugar um sótão, mais perto da universidade, indo morar sozinha [4]. Em 1893, obteve um diploma em Física e, no ano seguinte, em Matemática. Em 1894, conheceu o já renomado físico francês Pierre Curie (1859-1906) – ele e o irmão, Paul-Jacques (1856-1941), haviam descoberto a piezeletricidade [5]. Marie e Pierre se casaram em 1895; o casal teve duas filhas, Irène e Ève Curie.

Os raios Becquerel

Em 1896, o físico francês Antoine Henri Becquerel (1852-1908) relatou que uma amostra de uraninita (pechblenda) era capaz de liberar energia (radiação) espontaneamente. Os raios Becquerel, como chegaram a ser chamados, atravessam objetos opacos à luz sem dificuldade. A coqueluche na época, no entanto, eram os raios X, descobertos no ano anterior [6], e, por isso, a nova descoberta de início não chamou muito a atenção.

Marie adotou os raios Becquerel como tema de sua tese de doutorado, obtendo resultados promissores. Desde então, ela e Pierre não abandonariam mais o estudo da radioatividade – termo, aliás, cunhado por ela (ver artigo ‘A idade da Terra’). Em 1898, eles anunciaram a descoberta de dois novos elementos radioativos: o polônio (bem mais radioativo que o urânio), nome dado em homenagem à terra natal dela, e o rádio (ainda mais radioativo que o polônio), nome derivado da palavra latina radium (raio).

Em 1902, após quase quatro anos de um extenuante trabalho físico, durante o qual processou toneladas de matéria bruta, ela anunciou o isolamento do rádio. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que esta se tornava a substância mais valiosa do mundo, os Curie continuavam enfrentando dificuldades financeiras (Aragão 2008). Ainda assim, abriram mão do direito de patentear o processo de isolamento do rádio. Embora tal decisão possa soar absurda, sobretudo nos dias atuais, não lhes parecia certo obter vantagens financeiras da situação, sobretudo diante da perspectiva de que a radioatividade poderia curar doenças.

Reconhecimento e preconceito

Em 1903, o casal foi laureado com o Nobel de Física, ao lado de Becquerel. Só então a situação financeira deles começou a melhorar – os meios acadêmicos franceses haviam sido, digamos, um tanto indiferentes ao casal Curie.

Em 1904, Pierre foi convidado a lecionar na Universidade de Paris (Sorbonne); sua carreira acadêmica, no entanto, foi interrompida trágica e precocemente, pois ele morreu em um acidente de rua, após ter sido atropelado por uma carruagem, em 19/4/1906 [7]. Em 1910, durante o Congresso Internacional de Radiologia e Eletricidade, realizado em Bruxelas (Bélgica), o termo ‘curie’ foi adotado como unidade de medida da radioatividade [8].

Marie não abandonou as pesquisas. O segundo Nobel, como foi dito na abertura, viria em 1911. Na época, ela mantinha um relacionamento amoroso com Paul Langevin (1872-1946), um ex-aluno de Pierre, mas já então um físico renomado (Quinn 1997). O relacionamento, iniciado em 1910, foi muito explorado pela imprensa, sobretudo porque ele era casado. A esposa, Jeanne Langevin (1874-1970), chegou a ameaçar Marie pessoalmente. Às vésperas da entrega do Nobel, alguns colegas, temendo um escândalo, pediram a Marie que ela não fosse à cerimônia. Mas ela foi e não houve problema. Depois disso, porém, o relacionamento esfriou.

Após tantos anos lidando com material radioativo, sem as devidas precauções – além da manipulação direta, ela às vezes carregava amostras no bolso! –, Marie Curie passou a enfrentar problemas de saúde, desenvolvendo um câncer (leucemia). Desde antes da I Guerra Mundial (1914-1918), ela própria havia se envolvido com o estudo das implicações biológicas da radioatividade. Quando faleceu, em 4/7/1934, essa já era uma área de pesquisa das mais efervescentes.

Coda

Em 1935, Irène Joliot-Curie (1897-1956), a filha mais velha dos Curie, e o marido, o físico francês Frédéric Joliot-Curie (1900-1958), foram laureados com o Nobel de Química. Foi um reconhecimento ao trabalho deles com a chamada radioatividade artificial, processo por meio do qual se convertem átomos estáveis em átomos radioativos [9]. Tal distinção fez dos Curie a família mais premiada da história do Nobel – quatro agraciados e cinco premiações.

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Notas

[1] O título deste artigo – os oito anteriores estão aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui – faz alusão ao filme Angels & insects (1995), de Phillip Haas, adaptado do romande Morpho eugenia (1992), da escritora inglesa A. S. Byatt (assinatura literária de Antonia Susan Duffy [nascida em 1936]).

[2] Ela foi a primeira pessoa a ser duplamente agraciada com o Nobel. Tal distinção ocorreria depois com outros três cientistas: o químico estadunidense Linus Pauling (1901-1994), laureado com o Nobel de Química (1954) e o da Paz (1962); o engenheiro eletricista estadunidense John Bardeen (1908-1991), duas vezes com o de Física (1956 e 1972); e o bioquímico inglês Frederick Sanger (1918-2013), duas vezes com o de Química (1958 e 1980). Aproveitando o centenário do Nobel de Química dado à Marie Curie, a ONU proclamou 2011 o Ano Internacional da Química.

[3] Para detalhes e informações adicionais sobre os Curie, ver aqui.

[4] Tanto Bronislawa como o marido, o polonês Kazimierz Dłuski (1855-1930), eram médicos e militantes políticos engajados em atividades sociais.

[5] Formação de carga elétrica provocada pela aplicação de uma tensão mecânica.

[6] A uraninita é composta principalmente de dióxido de urânio (UO2), mas contém ainda trióxido de urânio, óxido de chumbo, tório e terras raras, como polônio e rádio. Em razão da descoberta dos raios X (ou raios Röntgen, como eram chamados), o físico e engenheiro alemão Wilhelm [Conrad] Röntgen (1845-1923) foi agraciado com o Nobel de Física (1901) – ver Brennan (1998).

[7] Chovia e, ao tentar atravessar a rua Dauphine, diante da ponte Neuf (a mais antiga das pontes existentes sobre o rio Sena), ele escorreu e caiu sob uma carruagem. O condutor não percebeu e, ao prosseguir, uma das rodas passou por cima de sua cabeça, esmagando-a. Segundo testemunhas, foi tudo muito rápido – v. matéria ‘Mort tragique de M. Curie’, publicada no Le Matin, em 20/4/1906.

[8] Algumas unidades de medida da intensidade de radiação: 1 curie (Ci) = 3,7 x 1010 desintegrações por segundo (dps); 1 becquerel (Bq) = 1 dps.

[9] Eis o comentário de Aragão (2008, p. 173-5; grafia original) sobre a radiação artificial:

[p. 173] Os átomos estáveis podem converter-se em átomos radioativos através da colisão com partículas a alta velocidade.

A primeira reação nuclear que foi produzida em laboratório foi efetuada por Lord Rutherford, em 1919, bombardeando nitrogênio com partículas α:

N14 + He4 → O17 + H1.

A partícula α, como se viu, é descrita como associada a dois nêutrons e a dois prótons, que, na desintegração α, é emitida pelo núcleo de hélio. Então, na reação de Rutherford, um núcleo de nitrogênio reage com um núcleo de hélio que é lançado à alta velocidade sobre o primeiro, resultando dois novos núcleos, um de oxigênio com massa atômica 17 e um de hidrogênio com massa atômica 1, ou seja, um próton.

O núcleo de oxigênio 17 é estável, pelo que a reação nuclear não leva à produção de radioatividade artificial. Os cientistas começaram, então, uma pesquisa sistemática, bombardeando átomos com partículas α à grande velocidade.

Os primeiros trabalhos desenvolvidos com partículas α à alta velocidade foram feitos com o bismuto (Bi83), também chamado rádio C. Mas outros elementos sofrem reações idênticas, com a formação de núcleos instáveis, que, por sua vez, comportam-se como núcleos radioativos. […]

[p. 174] Em 1934, coube a Irene Curie e a Frederico Joliot Curie a glória de, trabalhando em conjunto, terem descoberto o fenômeno […]. A partir daí, foram preparados muitos núcleos radioativos, usando-se diferentes reações nucleares e com muitas aplicações. Um exemplo é o isótopo radioativo do cobalto (Co60), que é importante como substituto do rádio no tratamento do cancro. É possível obtê-lo através do bombardeamento com nêutrons do cobalto comum (Co59) da seguinte forma:

Co59 + n1 → Co60.

Outro exemplo, o fósforo radioativo P32 é muito importante em pesquisas biológicas, sobretudo no estudo do efeito de fertilizantes de fosfatos sobre o desenvolvimento das plantas. Consegue-se obter este nuclídeo através do bombardeamento de fósforo P31 com dêutons, da seguinte forma:

P31 + H2 → P32 + H1.

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Referências citadas

+ Aragão, MJ. 2008. História da química. RJ, Interciência.

+ Brennan, RP. 1998. Gigantes da física. RJ, J Zahar.

+ Quinn, S. 1997. Marie Curie: Uma vida. SP, Scipione.

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[Nota adicional: artigo extraído e adaptado do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017); para informações a respeito da obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]

Redação

1 Comentário

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  1. terras raras, como polônio e

    terras raras, como polônio e rádio

    Polônio e rádio não são terras raras; o rádio é um metal alcalino-terroso, e o polônio é um metal de pós-transição (calma, Aécio, não estamos falando de você, nem de aeroportos de transição).

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