Crise na Capes expõe fragilidade da ciência no Brasil e abandono de pesquisadores de ponta
por Alex Mirkhan
A renúncia coletiva de 34 pesquisadores da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), nesta terça-feira (7), é mais um marco na crise vivida há cinco anos por cientistas e pesquisadores de ponta no Brasil. Agora, já são mais de 100 cientistas que deixaram suas funções na fundação responsável por consolidar os programas de pós-graduação stricto sensu – os mais afetados pelos seguidos cortes de orçamento promovidos pelo governo de Jair Bolsonaro (PL-RJ).
Os cientistas de áreas ligadas à Engenharia se juntaram a outros 80 que já haviam deixado a fundação. Eles alegam não terem condições de produzir avaliações de qualidade para os cursos de mestrado e doutorado, fundamentais para a distribuição de recursos para as unidades que mais se destacam e possuem um corpo científico mais relevante.
Pesquisadores doutores, que já foram contemplados por bolsas de estudo nos últimos anos, relatam as consequências do corte no orçamento destinado à academia nos trabalhadores com formação altamente especializada. Sem apoio, muitos são empurrados para o desemprego ou são incorporados ao mercado de trabalho fora de suas áreas, em situações muitas vezes precarizadas e, acima de tudo, convivendo resignados diante do desperdício de tempo e conhecimento acumulado por anos e até décadas.
“Consegui uma bolsa para o doutorado, sem ela eu não faria, que terminou em março do ano passado, bem no meio da pandemia. Até consegui aproveitar esse momento do trabalho remoto para terminar a minha tese, mas depois me vi sem possibilidade de entrar no mercado de trabalho e com dois filhos para criar”, conta o advogado e pesquisador em Direitos Humanos e Justiça, Rodrigo Lentz, que precisou se tornar prestador de serviços como micro empreendedor individual (MEI): “isso abala o psicológico e a confiança na carreira acadêmica”.
Assim como Lentz, o biólogo e antropólogo Pedro da Glória também viu sua carreira como pesquisador ser ameaçada pelo fim de uma bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e já até contava com a possibilidade de trocar os estudos pela carreira de perito criminal. Até que, em 2019, ele finalmente conseguiu uma vaga como professor de pós-graduação em Antropologia na Universidade Federal do Pará (UFPA), sete anos depois de concluir o doutorado.
Nesse período antes de se tornar concursado, da Glória avançou sua tese para um pós-doutorado e, além de se preparar para os concursos, também continuou debruçado sobre as amostras que colheu durante suas pesquisa de campo financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Mas também dependeu do apoio contínuo da bolsa do CNPq, sem o qual teria seu caminho ainda mais dificultado no concorrido acesso à uma vaga na universidade.
“Eu tive a sorte de pegar a última leva de vagas da UFPA em 2019, depois disso abriram novos concursos só agora”, conta o cientista, que também descreve a corda bamba que vivem, especialmente, os jovens pesquisadores doutores. “Para você manter um doutor ativo na sua área, você tem que dar uma bolsa para que ele continue realizando a pesquisa, mas para que ele continue sobrevivendo sem ter que mudar de área, e há um tempo entre o seu doutorado e sua fixação em um concurso.”
Como pano de fundo para a redução de subsídios para a produção científica está a “franca desindustrialização do país desde os anos 1990”, explica a historiadora Flávia Calé da Silva, presidente da ANPG (Associação Nacional de Pós-Graduandos). Ela credita à “falta de visão estratégica” o descompasso entre a “profunda revolução tecnológica mundial e a participação de uma força de trabalho qualificada para abastecer uma indústria nacional competitiva”.
Em março do ano passado, uma série de portarias assinadas pela Capes resultou no corte de milhares de bolsas, agravando ainda mais o fato de haver mais doutores se formando do que vagas abertas em suas áreas. Entre 2014 e 2017, o total de doutores saltou 36,1%, enquanto o número de doutores sem emprego formal em suas respectivas áreas avançou 53,3%, de acordo com dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
Com a cara e a coragem
Também subvencionada por bolsas, a pesquisa de pós-doutorado de Filipe Gaudie Ley Lindau envolveu intensas etapas de coleta de amostras de gelo nas montanhas mais altas da Bolívia, com as quais ele estuda a variabilidade do clima na Floresta Amazônica e em todo continente, um trabalho desenvolvido junto ao Centro Polar Climático da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Engenheiro químico Filipe Lindau foi às Cordilheira dos Andes para sua tese: “as geleiras guardam informações da atmosfera Amazônica” / Arquivo pessoal
Mesmo tendo coletado material suficiente para subsidiar novos estudos e apoiar novas descobertas em um tema tão sensível como a crise climática, Lindau ainda não sabe que rumo tomará a partir de fevereiro, quando sua bolsa do CNPq chega ao fim. Há no radar planos de viabilizar uma parceria internacional com um colega cientista francês, que participou na longa empreitada em campo, mas isso dependeria de apoio junto aos governos da França ou do Brasil.
Outra alternativa é se inscrever em editais internacionais, “que são extremamente concorridos porque envolve o mundo todo”, ou atrair o interesse da iniciativa privada especializada. “Já fiz algumas tentativas, mas ainda não tive sucesso”, comenta o jovem pesquisador, que embora ainda se veja um “estranho no ninho” fora da universidade tem otimismo de que o que desenvolveu nos últimos anos “tenha valor para a sociedade, de forma geral, incluindo empresas e o setor público”.
Outra barreira para postulantes de pesquisas de doutorado é o alto custo para financiar pesquisas que necessitem de insumos específicos e tecnologias avançadas. Para a etapa de campo de seu projeto, da Glória precisava viajar de São Paulo para o interior do Amazonas, onde colhia amostras biológicas da população ribeirinha, como as de saliva, por exemplo. “E tudo isso eu tinha que congelar e trazer para São Paulo, então foi uma pesquisa muito cara, que eu jamais teria condição de fazer agora só com o financiamento do CNPq”, observa.
Além das incertezas, há casos mais dramáticos de pesquisados com currículos excelentes, que se depararam com o desemprego e a falta de perspectivas até em áreas teoricamente menos exigentes, simplesmente por falta de domínio de treinamento.
“Ontem, recebi um email de um cara extremamente qualificado dizendo ‘a minha bolsa acaba em janeiro e não sei o que vou fazer. Eu tenho uma filha e vou, sei lá, vender bala no sinal, fazer qualquer coisa’”, ilustra da Glória. [Continua após o vídeo.]
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Fuga de cérebros
A possibilidade de concluir os estudos em alguma instituição no exterior é uma válvula de escape para cientistas que não encontram condições para desenvolver suas pesquisas no Brasil. Segundo Flávia, o país vive “um processo crônico de fuga de cérebros”, e alerta tratar-se de um quadro “não diagnosticado”, pois o país não possui um levantamento atualizado sobre quem são os pesquisadores que emigram e quais suas áreas de atuação para posteriormente buscar uma reaproximação.
Dessa forma, ela acredita que a tendência é de êxodo cada vez maior de talentos brasileiros, “que tendem a ser absorvidos por empresas dos países onde residem e produzir patentes para esses países e não para o Brasil”, defende. Em contrapartida, Rodrigo Lentz acredita que esse processo ainda é bastante restrito e elitizado, devido às barreiras culturais, financeiras e de idioma.
Lindau mesmo não descarta recorrer à universidades estrangeiras, embora saliente ser possível se debruçar lá fora sobre situações circunscritas ao próprio país e continente. Mesmo assim, ele reforça sua intenção de encontrar soluções para permanecer em solo brasileiro. “É onde eu tenho mais interesse de continuar a desenvolver meu trabalho, por eu sempre ter buscado agregar conhecimento para a nossa região, aqui no Brasil e na América Latina”.
Pedro da Glória prevê que, com o ritmo atual, “o corpo de pesquisadores do país está erodindo aos poucos (…), o que poderá ser sentido daqui cinco ou dez anos”. Para Lentz, grande parte da comunidade de estudantes e recém-doutores aguardam “e até lutam dentro das suas limitações” para que um novo governo “minimamente democrático” retome uma agenda positiva para a produção científica.
Edição: Vinícius Segalla
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