Sufragistas? Quem?, por Marcelo Manzano

Pouca gente se dá conta, mas de acordo com ninguém menos que Adam Smith, de meio milhão de operários que trabalhavam nos moinhos da Inglaterra no fim do século 18, 39% eram mulheres, 31% crianças e apenas 30% eram homens. A gloriosa história das sufragistas é um dos desfechos civilizatórios da luta operária

do Brasil Debate

Sufragistas? Quem?, por Marcelo Manzano

É um tanto lamentável como a importantíssima e bela história de luta pela conquista do voto das mulheres foi transformado no filme “As Sufragistas”(Suffragette, Inglaterra, 2015) em um conto insosso para burguês ver. A começar que a diretora Sarah Gavrone e a roteirista Abi Morgan se limitam a contar aspectos particulares do que ocorreu entre 1910 a 1913 (!!!), desconsiderando décadas de luta das mulheres que se estendiam, pelo menos, desde meados do século 19.

Só para lembrar, quando chegou pela primeira vez à Inglaterra, em 1842, Engels ficou fascinado com a explosão de revoltas operárias de todo o tipo com que se deparou e, naquele contexto, foi fortemente influenciado por algumas mulheres em especial.

A primeira delas, sua companheira Mary Burns, que, apesar de analfabeta, com apenas 19 anos, já se destacava como liderança nos guetos de trabalhadores de origem irlandesa em Manchester. Foi graças a ela que Engels teve acesso livre às vielas insalubres e violentas onde viviam os operários da cidade e nas quais um homem da burguesia como ele jamais poderia circular.

Depois, foi fundamental o contato que teve com a escritora Elizabeth Gaskell – que morava também em Manchester e se dedicava a escrever romances, como Mary Barton (1848), nos quais retratava, por meio de inéditas protagonistas femininas da classe operária, as opressivas condições das mulheres e dos trabalhadores em geral nas cidades indústrias da Inglaterra.

Pouca gente se dá conta, mas de acordo com ninguém menos que Adam Smith, de meio milhão de operários que trabalhavam nos moinhos da Inglaterra ao final do século 18, 39% eram mulheres, 31% eram crianças (sob a esfera de atenção das mulheres) e apenas 30% eram homens (1).

Portanto, a história de emancipação da classe operária inglesa se confunde com a própria história de emancipação das mulheres ao longo da era moderna. Ao lado dos “Cartistas” (Chartists), que reivindicavam o fim do voto censitário entre os homens, as lutas em prol do direito dos trabalhadores, da jornada de oito horas, das restrições ao trabalho infantil, do descanso semanal aos domingos etc. eram também, em grande medida, luta das mulheres.

Nesse sentido, a gloriosa história das sufragistas é um dos desfechos civilizatórios desse processo, assim como o Labour Party (pai – ou mãe? – de todos os partidos trabalhistas do ocidente) deve à luta e à politização promovida pelas operárias britânicas parte importante do amálgama político que levou a sua fundação, em outubro de 1900 – aliás, é bastante simbólico que a primeira lei aprovada por um deputado trabalhista no parlamento da Grã-Bretanha tenha sido oEducational Act, em 1906, estabelecendo refeição gratuita para as crianças nas escolas britânicas.

Tudo bem, alguém poderá argumentar que as autoras do filme queriam se limitar apenas à luta específica das sufragistas. Claro, esta seria uma opção, mas que o fizessem ao menos apontando melhor suas origens, como, por exemplo, a partir da fundação da Liga Franchise de Mulheres, em 1889, sob a liderança da mesma Emmeline Pankhurst (interpretada por Meryl Streep), que no filme aparece quase como uma inspiração divina, destituída de qualquer contexto, a iluminar da janela de um lar burguês o caminho da libertação feminina.

É uma pena. O filme dá de ombros a tudo isso, e na medida em que despolitiza a história, reduz o feito das sufragistas às agruras familiares e circunstanciais de meia dúzia de moças corajosas de coração bom.

Em tempo: a quem interessar e tiver a oportunidade, vale um passeio pelo Museu da História do Povo, em Manchester, onde muitos detalhes dessa história estão fartamente reconstituídos.

Nota

(1) Green, 2008, p.72.

Marcelo Manzano – É economista, Pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho e Professor de Economia da Faculdades de Campinas – Facamp

 

Redação

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Uma pequena dose de generosidade (ou complacência…)

    Realmente o filme “personaliza” a luta operária na figura de umas poucas tomadas por exemplo e postas como protagonistas da história, na mesma medida que se dá às lideranças burguesas, às vanguardas intelectuais, etc.

    Sejamos mais generosos: os dramas familiares são, em dois ods casos apresentados, dramas de famílias de operários; são exemplares de tantos que comportam a dura luta das mulheres no movimento operário, na luta pelo voto e pela condição da mulher que, no lar, cumpria mais uma jornada e, no mais das vezes, ainda tinha que conviver com adversidades matrimoniais.

    Mas o filme também fala da luta de classes, e, é claro, cumpre com a profecia posta na boca da principal protagonistas, segundo a qual as mulheres não teriam como perder a luta, pois representam metade da humanidade, logo seria só uma questão de tempo para dobrar a resistência dos mais reacionários.

    Por fim, não se trata de um documentário, mas de um drama nos limites da narrativa cinematográfica convencional, logo esperar uma grande obra de arte é querer demais de uma indústria que, no mais das vezes, entrega coisas muito, muito piores, o que nos fez ver com simpatia esse subproduto de uma época onde já é possível comemorar as mudanças já havidas, mas é preciso lutar por outras ainda a obter, que alcance uma sociedade sem classes, conforme se queira – uma minoria não quer isso de jeito e maneira….

  2. Bravo!

    Texto informativo e necessário. Sem ter os dados acima lembrados, lamentei no filme a falta de vínculos entre as operárias e os movimentos socialistas. A luta foi não só de mulheres, mas de homens também na esquerda comprometidos com todos os trabalhadores. E que tiveram um papel essencial na luta das companheiras.

    Lamentei, lamento a ausência, mas saúdo assim o filme, É uma saudação na base do “na falta do ótimo, que venha o razoável”.

  3. Fizeram como Zuenir Ventura no livro 1968

    Transformou um movimento imenso de pessoas (mesmo se talvez majoritariamente de classe média, mas nao tenho certeza disso) numa combinaçao de meia dúzia de “personalidades”.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador