A desigualdade de acesso à escola e maternidade na pandemia(2): qual modelo possível?
Por Adriana Macedo[*]
No primeiro artigo que publiquei, intitulado A desigualdade de acesso à escola e maternidade na pandemia (que pode ser lido aqui), discuti algumas conquistas feministas indicando, ao longo do seu desenvolvimento, a incompatibilidade entre as necessidades humanas mais básicas – como sentir-se seguro, viver contatos sociais prazerosos e significativos e ser valorizado dentro da sociedade – e a lógica capitalista. Das várias questões que se apresentaram lá, que sustentaram que o retorno às aulas em plena pandemia representa a submissão da vida à lógica sacrificial capitalista da necessidade da retomada do consumo, duas restaram por acentuar. A primeira é a ruína da ideia de família nuclear rumo à necessidade de um modelo de interação e cuidado social mais coletivo. A segunda é o sofrimento psíquico intenso pela ausência de relações substantivas das crianças com os provedores.
No primeiro caso, é importante retomar que é a própria lógica capitalista, que um dia impôs à mulher a obrigação do trabalho doméstico, gestando e alimentando trabalhadores para o mercado, que inviabiliza a perpetuação desse modelo. Ao não reconfigurar a jornada de trabalho dos responsáveis, extraindo de ambos todo o seu tempo para a produção de lucro, o capitalismo logrou aumentar ainda mais a sua base mercantil de extração de lucro, ao jogar o cuidado e a alimentação das crianças para o mercado. O cuidado na família, assim, ao seguir a lógica sacrificial, acaba por não abarcar as necessidades afetivas dos seres sociais em formação.
A segunda questão se exemplifica por frases dos pais que remetem à ausência de limites das crianças. As críticas se referem ao agrado material exagerado como forma de recompensar a ausência dos cuidadores e à ausência de punição e, assim, inviabilizam a questão central do sacrifício das relações e da carência afetiva nas interações sociais superficializadas. Na pandemia, essas questões eclodiram: muitas mães, pais, casais e filhos estão sofrendo com a convivência prolongada com pessoas que, no dia a dia, interagem de modo mais superficial e procedimental, no sentido da racionalidade econômica do cumprimento das tarefas.
Os progressistas têm sido acusados por problemas que o capitalismo criou ao impor ritos sacrificiais tão intensos que desestruturam as relações e levam ao caos social, ao sofrimento extremo que se evidencia quando o mundo pára e precisa enfrentar o que aceitou sem pensar, o que sacrificou, o que não coube na rotina. O movimento de mulheres pelo retorno às aulas está dentro da lógica autosacrificial, é uma fuga do problema, é duro lidar com ele. Trata-se de não poder romper com o sacrifício e sentir a sobrecarga maior, que é sim insuportável, pois impõe acumular mais peso do que se pode suportar.
É preciso pensar qual o papel da escola, neste momento, com os cidadãos no centro, invertendo a lógica sacrificial. Na racionalidade econômica, a escola forma para o mercado. Nessa lógica, se não há retorno das escolas em plena pandemia, o primeiro “prejuízo” que se ressalta é o atraso dos estudantes, prejudicados na preparação para a entrada no mercado. Eles estariam “perdendo” uma corrida, um objetivo até maior que a própria vida. Neste momento de pandemia, é disso que precisamos? Podemos investir em outras esferas importantes para a vida social que estão à deriva? Podemos pensar sobre a vida?
Talvez, neste momento, o papel mais importante da escola seja o de elaborar o próprio momento. Para isso, as “disciplinas” mais desvalorizadas são as mais importantes. O que é desprezado na racionalidade econômica é a luz essencial à racionalidade humana. A lógica econômica é a lógica sacrificial que nos mantém submetidos, que incendeia nossas matas e animais, que imola a todos. É preciso parar e pensar o pensamento. A literatura, as artes, a expressão corporal, a filosofia e a produção mental são justamente as vias capazes de ajudar os estudantes a elaborar esse momento.
Essa lógica sacrificial gera um adoecimento social imenso. No processo de inserção da mulher no mercado de trabalho, por exemplo, não entrou em questão, pelo menos não com força, a redução da jornada de trabalho (e dizer isso sempre vem com a ideia auto sacrifícial que remete ao complemento “com redução de salário”, dada a nossa imersão nessa lógica perversa). Com a entrada de tantos trabalhadores no mercado não seria algo socialmente desejável? Quanto aos recursos financeiros, não é correto pensar que todos, sem exceção devem ter o mínimo para viver decentemente?
O futuro, com o avanço tecnológico e a substituição do trabalho humano por máquinas, prometia mais tempo para a vida no sentido mais amplo e gratificante. Hoje está claro que o sacrifício do tempo é imperativo nas sociedades ditas civilizadas. A adaptação com a entrada das mulheres no mercado formal foi no sentido da renúncia do tempo de convivência com familiares e amigos e da conversão da escola num depósito de crianças, com a redução das férias escolares e a ampliação do tempo de funcionamento das escolas.
Óbvio que é possível compreender a necessidade sacrificial dos pais, mas tais mudanças têm sido implementadas travestidas de interesses nobres tais como aumentar o tempo de aprendizado, no primeiro caso, e proporcionar atividades educacionais extras, no segundo. O mercado agradece, bem como os pais, que se afastam dos seus filhos num rito sacrificial no qual servem ao deus contemporâneo. Os responsáveis primeiros pelas crianças, ausentes, transferem para a escola ainda outra responsabilidade, a de educar seus filhos. Embora eu esteja particularmente afastada da ideia da família nuclear como a única envolvida na educação cidadã, no imaginário social, a família deve educar, mas, na ausência da família, a escola é cobrada, embora a lógica econômica não permita essa possibilidade. Pautada na formação conteudista e seguindo a lógica da eficiência (econômica, claro), a escola se organiza com muitos alunos por turma e por professor, não havendo tempo para as relações também dentro da escola. A sociedade contemporânea carece de relações substantivas por todos os lados.
Não se trata aqui de minimizar, em absoluto, o sofrimento em decorrência do desemprego causado pela diminuição da demanda por serviços e produtos. Pelo contrário, e a redução da jornada de trabalho com pleno emprego já esteve na ordem do dia. A preocupação, tanto com os trabalhadores, quanto com os administrados como indesejados, mas essenciais à manutenção dos baixos salários (o exército de reserva), está presente em cada linha deste texto, quando indica a necessidade de tirar a economia tal como se apresenta hoje do centro da análise. Busca-se, assim, o afastamento da lógica sacrificial na qual o suplício é a regra em “tempos normais” e a imolação é expandida em tempos de crise. Nosso futuro depende não só do combate à devastação criminosa das vidas, mas da eliminação permanente de suas causas. É urgente pensar em outras bases que coloquem as vidas no centro, que integrem homem e natureza, numa perspectiva de diversidade e mútua dependência, e que coloquem a economia a serviço das vidas.
Que possamos enxergar a magnitude da imolação humana, do sacrifício das relações e destruição da natureza e direcionar nossas críticas aos alvos certos. O mundo arde em chamas e precisamos achar os culpados, sempre tão ocultos na maneira como pensamos. Precisamos pensar o pensamento, sair da aparência e chegar à essência do problema, à lógica capitalista. Se a escola é necessária e desejável, é também crucial pensar que escola. É fundamental que um outro sentido de iluminismo, deslocado da ideia do interesse do indivíduo e do conhecimento segmentado, orientado na direção de um interesse coletivo e a integração dos saberes, adentre a escola visando ao desenvolvimento da capacidade de análise crítica da sociedade, da lógica social e do eu na sociedade, visando ao conhecimento preterido, dos subalternos inclusive, à transformação da realidade social e à integração do homem na natureza na qual ele está contido e da qual é dependente. O desejo de mudança social é imenso, é preciso investir nos futuros agentes dessa mudança. É tempo de elaborar todas as perdas, a perda dos entes queridos, do sentido da vida, das matas e florestas, dos povos originários, da diversidade cultural. É tempo de resgatar a história apagada e de analisar a realidade recalcada, é tempo de sair da aparência e alcançar a essência do que somos, enquanto indivíduos e sociedade, e do que queremos ser. É tempo de uma nova escola. Não é o retorno das aulas presenciais que é urgente, é a implementação de outra lógica social.
[*] Adriana é Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Extensão e Pesquisa Social (LIEPS/IFRJ) e do Núcleo de Estudos do Movimento Humano (NEMOH/UFRJ). É especialista em Biomecânica, Mestre e Doutora em Engenharia Biomética (COPPE/UFRJ) e graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
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