O fim da democracia e os homens-bambus, por Luis Nassif

Cada gesto oportunista, que transgrida as regras da democracia, merece a condenação dos seus pares e do público. É por aí que há o controle social

A grande indagação: como o Brasil chegou a esse nível de desregramento institucional? Como foi possível eleger Jair Bolsonaro e aceitar todos os abusos que são cometidos diariamente contra a democracia brasileira? Como explicar a volatilidade das convicções dos homens públicos brasileiros, dos Barroso, Fachin, dos Randolfe e Cristovãos?

A democracia é um conjunto de valores e de práticas consolidadas, que exercem pressão moral sobre as personalidades públicas mais maleáveis. Em democracias consolidadas, são restrições de ordem moral e ética que operam como barreiras de contenção às manobras oportunistas. Cada gesto oportunista, que transgrida as regras da democracia, merece a condenação dos seus pares e do público. É por aí que se exerce o controle social sobre as autoridades.

As cláusulas pétreas da democracia são:

  • Respeito absoluto pelos direitos individuais e sociais.
  • Respeito absoluto pela Constituição e pelo poder do voto.
  • Respeito absoluto pela independência dos poderes, sem que um poder procure se sobrepor aos demais.
  • Respeito absoluto pelo espaço político para o contraditório e para as atividades da oposição.
  • Repressão imediata a qualquer ato que signifique ameaça à democracia.

Todos esses fatores passam a ser progressivamente atropelados pelas instituições, a começar do Supremo Tribunal Federal (STF), que abraçou as teses do estado de exceção.

A atitude de Luis Roberto Barroso, de vetar um indulto presidencial – direito do Presidente da República expressamente definido na Constituição – foi a prova maior da subversão total da democracia. Antes dele, logo no final do mensalão, Luiz Fux procurou acuar o Congresso, paralisando todas as votações até que se resolvesse a questão dos royalties do petróleo para o Rio de Janeiro. E, acima de tudo, a decisão de tirar Lula das eleições de 2018, que contou com o voto de Barroso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Sem a convicção democrática, não há mais constrangimentos nem de ordem ética ou moral para as atitudes públicas, o que abre espaço para toda sorte de personalismo e oportunismo.

Os movimentos oportunistas

No Senado, Renan Calheiros poderia ter sido a peça de resistência. Foi derrotado por uma coalizão que juntou fisiológicos, conservadores e até progressistas e onde se destacou o senador Randolfe Rodrigues, do Amapá, que tinha como grande interesse o fato do concorrente, o obscuro David Alcolumbre, ser seu conterrâneo e de suas relações. Abriu uma porta para o controle do Senado pelo bolsonarismo. Randolfe também foi dos principais defensores da Lava Jato e do impeachment. Hoje em dia, com os ventos do seu público mudando, volta-se para a defesa tardia da democracia.

Randolfe não é nenhum Cristovão Buarque. Menciono-o apenas para mostrar o exemplo dos homens-bambus, infelizmente maioria na vida pública nacional, curvando-se a qualquer movimentos dos ventos, sem nenhum compromisso com valores ou com a coerência.

É o caso reiterado do Ministro Luis Roberto Barroso, talvez o símbolo maior desses tempos de dissipação e de explicitação do caráter nacional.

Sugiro a leitura do relevante “O Pêndulo da Democracia”, de Leonardo Avritzer, analisando, na bucha, os acontecimentos políticos do momento.

Segundo ele, desde 1946 a opinião pública se move em movimentos pendulares, ora acatando valores democráticos, ora curvando-se ao golpismo mais explícito. Depois de cada período de terror – a redemocratização de 1946 depois do Estado Novo e da Segunda Guerra; 1985, depois da ditadura militar – há um movimento do pêndulo em favor de valores democráticos.

Esse processo permite avanços sociais, aumento da inclusão, provocando a reação das elites e da classe média, que se tornam parceiros da nova etapa, de resistência à democracia. Até que sobrevenha um novo período de desgraças, e o pêndulo retome os valores democráticos novamente.

Pela teoria do pêndulo, mais à frente haveria o refluxo e a volta dos valores democráticos. Mais qual o nível de tragédia que o país está disposto a suportar? Qual o nível de desmonte que o STF está disposto a impingir ao país, antes que a violência se torne irreversível?

Esta é a questão.

Luis Nassif

33 Comentários

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  1. Desculpe o pessimismo.
    Mas desta vez acho que vamos até o fim com a barbárie. Sem o sofrimento causado, não compreenderão.
    Haverá o golpe, e chegará o regime ditatorial e autoritário.
    Depois dele, bem, provavelmente alguma forma de bolchevismo. Com a contribuição dos fascistas mortos de fome.
    Tanto acusaram o PT de querer promover o comunismo, que acabarão por obtê-lo, ao fim e ao cabo.

  2. Randolfe não é Cristovam Buarque porque cada um é um merda à sua maneira. Randolfe também pode ser um Ciro, se a gente considerar a troca de partidos.
    Eu lembro bem da comemoração de Randolfe com a eleição de Alcolumbre. Puro cinismo típico dos apoiadores da lava jato, aquele tipo de gente que faz qualquer coisa para se livrar dos inimigos e dos desafetos. Não é um bambu, é um rato.

  3. A questão é: quando os usurpadores da democracia serão punidos?

    Por quê esses movimentos existem ou existiram por causa da impunidade……

    No momento em que houver punições exemplares para aventuras autoritárias elas tendem a cessar. ..que tal fazer isso agora???

    Mangabeira Unger dizia que para endireitar o Brasil de início deveria se colocar uns três ou quatro na cadeia, no Brasil de hoje, poderíamos dizer uns 30 ou 40, pra começar………

    1. Problema do Brasil é a sindrome do “nao enfrentamento”. LULA nao enfrentou Gilmar na Satiagraha/grampo sem audio, Dilma nao enfrentou Obama quando Snowden dedurou a espionagem da NSA sobre ela e a Petrobras, JEC nao enquadrou o MPF nos vazamentos criminosos da Farsa a Jato, o conselho de etica nao enfrentou Jair na apologia a Ulstra no voto do golpeachment, o PT nunca enfrentou a Globo nem a tratou como partido politico, ninguem nunca enfrentou o charlatanismo de Edir Macedo, Waldomiro, JRR Soares e afins, a lista é longa…

    1. Não é verdade; Randolfa apoiou o impeachment de Dilma e só ao final atuou para que ela não tivesse os direitos políticos cassados. É um canalha exatamente como Barroso, Fachin e Christóvan. Aliás, notaram que todas possuem vós e fala afetadas? Faz lembrar a “marca da Besta” …

      1. Sem querer defender o indefensável, mas Randolfe foi contra o impeachment de Dilma desde o começo até o fim.
        Já, quem foi contra o tempo todo e no final votou a favor foi o tal de senador Telmário Mota, à época, do PDT.

  4. “Mas qual o nível de tragédia que o país está disposto a suportar?”

    Tendo a achar que não vivemos um tempo qualquer, nem mesmo um período de revisionismo histórico pura e simplesmente; a mim me parece que vivemos um daqueles breves e intensos – em termos históricos! – períodos de síntese, em que longuíssimas trajetórias da civilização são colocadas à prova.

    No caso do Brasil, país que nunca foi muito afeito à democracia, ao respeito, à moral, aos direitos amplos e otras cositas más de qualquer Sociedade com ‘S’ maiúsculo, há muita sujeira que nossa vã cordialidade escondeu nos porões, muita depravação para sublimar, muita escória pra transmutar.

    Esse noite vai ser longa e nada fácil.

  5. Pêndulo???
    Ora, isso sempre foi conhecido por DIALÉTICA!!!
    Senhores, não há necessidade de inventar novos conceitos pelo menos para essa fase da humanidade.
    A questão é a seguinte. Qual será a síntese desse período, mais pra lá em direção a barbárie ou a síntese será mais civilizadora.
    Ademais, o ser humano é tão chulo, tão inepto, tão presunçoso, tão imbecil e idiota, que pode revogar a lei mais natural que há no universo, e não se enganem que seria a da gravidade, e sim, a da evolução.

    1. Pois é, mas a dialética pressupõe os dois pontos, tese e antítese ‘acontecendo’ ao mesmo tempo, para se chegar à síntese. Foi a base filosófica de muita coisa, entre elas a ciência e a política.

      O movimento pendular, como o Avritzer descreve, pressupõe a (quase) aniquilação de um dos extremos, com as forças se concentrando de um lado em detrimento do outro – a meu ver, exatamente o contrário da dialética. A tese dele não é má.

      1. Ola Flavio,
        Considerando que há inúmeras MATIZES CONCEITUAIS e DE ENTENDIMENTO da dialética temos que considerar pelo menos seus princípios básicos.
        Eu particularmente desconheço conceito de dialética que pressupõe acontecimentos concomitantes, especialmente quando se tratam de fatos históricos. O próprio termo DIAlética significa, pelo prefixo DIA, que acontece ATRAVÉS de…
        Ou seja, os fatos históricos da antítese se opõe aos fatos históricos do período da tese. Tornando mais concreto a análise: o presente representa a antítese do período anterior, o passado, que virão em SÍNTESE compor o futuro, que em seu tempo se tornará uma tese, às vezes com grandes alterações, numa nova tese.
        Grato pela oportunidade de haver discussão.

  6. Nassif, aceite uma coisa: a “democracia” era boa enquanto as representaçoes populares nao eram competitivas. Enquanto Brizola era difamado diariamente o PT, PT, PT se resumia a piquetes em portas de fabricas, a democracia era boa. Foi esse o arranjo da falecida Nova Republica. Bastou o Partido dos Trabalhadores ganhar uma, duas, três, quatro eleições seguidas, que melaram o jogo, partiram, literalmente, pra ignorância.

    Antes de qualquer consideração sobre “valores” democraticos, o que passa pela cabeça da direita (e da extrema direita, pouca diferença há) é “quem vai mandar?” Essa é a pergunta básica da Sociologia Politica. Já está mais que provado, só aceitam a participação do Lula, do Partido dos Trabalhadores ou de qualquer representação popular se for no papel de figurantes. É esse o “acordo” democrático da direita.

    O engraçado é que os que criticam os “erros” do PT, PT, PT na condução da governabilidade propõem que ele faça muito pior,mesmo com o cinismo e a boçalidade da direita escancarados.

    1. É isso aí.
      Só um pequeno reparo.
      O PT no poder sempre foi atacado pela mídia e direita em geral. Fato.
      Mas era visto como, digamos, um sindicato que, a troco de algumas migalhas incômodas, mantinha a fábrica em ordem.
      O ataque passou a guerra sem quartel, segundo atenta observação da conduta da mídia nos últimos anos, no exato momento em que o governo determinou que os bancos públicos fizessem uma expressiva redução dos juros que cobravam.
      Em pouco tempo os bancos privados tiveram que baixar os juros também.

  7. Há outras questões, decorrentes da visão pendular: já passamos o pico ou ainda não atingimos? quanto tempo dura um ciclo completo?
    Se o ciclo anti-democrático anterior começou em 1961 com a renúncia do Vassoura e foi (sendo generoso) até que o Geisel começou a ensaiar a abertura, aí vão uns dezoito anos. Considerando um ciclo de comparáveis proporções e marcando o seu início no chiliques Mineirinho em 2014, isso daria 2032 e não teríamos ainda atingido o pico.
    Vários tipos de medo.

  8. Como, Nassif? A resposta disto é tão simples que não requer textos extensos. A solidez da democracia requer de todos, mas em especial das autoridades, o respeito absoluto as leis e normas (isto requer doses de humildade e resignação), não se omitir frente aos erros e abusos e fazer prevalecer o bem comum frente aos seus interesses pessoais. Quais autoridades que você conhece que não se deixam levar pela vaidade, oportunismo e, até mesmo, covardia? Conte nos dedos se achar alguém. Apenas chegamos ao fundo do poço (chegamos?) porque perdeu-se a vergonha em demonstrar claramente que valores essenciais civilizatórios são descartados em função dos interesses pessoais. Lei.. pra quê lei, se tudo posso com a autoridade, dinheiro ou legião de acéfalos medíocres que me seguem?

  9. NASSIF: é falsa a informação de que Randolfe atuou a favor do impeachment. Uma simples consulta no Google mostra que ele votou CONTRA o impeachment.
    Entendo a sua crítica ao Randolfe, pois ele está articulando uma frente de democratas, e não apenas de políticos de centro-esquerda. Além disso, em entrevista à Andréia Sadi, ele explicou as razões do porquê não aceita a hegemonia petista. Ele saiu do PT quando do mensalão e ajudou a fundar o PSol. Hoje ele está na Rede, que participa de uma aliança com PSB, PDT e PV para 2020.

  10. COMPLEMENTANDO:
    Renan Calheiros votou A FAVOR do impeachment de Dilma.
    Renan é também um homem-bambu ? Ou trata-se de uma exceção, pois foi aliado de Lula em 2018 visando a reeleição sua e de seu filho como governador de Alagoas ?

  11. Estou bem pessimista, também.

    1889 – Proclamação da República – golpe de Estado político-militar (?)
    1930 – inicio da Era Vargas – processo de “revolução” que se tornaria ditadura à partir de 1937 e com nova Constituição (?)
    1964 – Golpe militar – processo de “revolução” que reprimiria o povo para combater o comunismo (?)
    1988 – aprovada nova Constituição (?)
    1989 – interferência da midia no resultado da primeira eleição direta para presidente após o fim da ditadura e no primeiro ano de vigência da nova Constituição (?)
    1992 – impeachment do primeiro presidente eleito após a ditadura e com o apoio total da midia, que aparentemente o colocou e tirou da cadeira e no quarto ano de vigência da nova Constituição (?)
    2002 – para tentar se eleger “sem erro”, candidato à presidência, vinculado ao povo, lutas populares e classe trabalhadora, faz “carta de paz e amor” com o “mercado” e o sistema nacional e internacional (?)
    2016 – interferência da suprema corte no poder Executivo barrando nomeação política, usando como base um grampo ilegal autorizado e divulgado por juíz responsável pelo caso (?)
    2016 – impeachment da primeira presidenta eleita, coordenado, no seu último ato, pelos garantidores máximos da Constituição, conforme prevê ela própria (?)
    2018 – prisão do maior líder político da AL, considerada ilegal por centenas de juristas do Brasil e de fora (?)

    Eu gostaria se saber, baseado nos fatos dos últimos 130 anos registrados aqui, por que poderíamos considerar que nosso país é ou foi democrático, seguidor fiel de qualquer Constituição? Sem contar os variados fatos a nível estadual e municipal. Só pelo fato de sempre termos um livro chamado Constituição? Foram 6 livros diferentes nesse mesmo período!

    Queria poder apontar um caminho. Não consigo. E isso me deixa extremamente desanimado.

  12. https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/o-que-fazer-para-que-a-barbarie-nao-prevaleca/

    O historiador chileno Gabriel Salazar, estudioso, há décadas, dos protestos em seu país, afirmou, não faz muito tempo, que “ter direitos e não ter poder não serve para nada”. Ele é um entusiasta das assembleias populares que lá vão brotando pelos quatro cantos e se dedicam a pensar um projeto de Constituição para o Chile.

    Algo semelhante ocorreu na Islândia, após a grave crise financeira de 2008. A população chilena se mobiliza, de baixo para cima, para repensar o país como um todo.

    Aonde isso vai chegar é impossível de se prever. (…)

    E por falar em Brasil, vivenciamos por estas bandas, nos dias de hoje, a erosão dos direitos individuais e sociais, “consagrados” no texto constitucional, sem que os lesados tenham poder para a isso se contrapor. O povo a tudo assiste anestesiado. A ordem jurídica instituída em 1988 esvai-se.(…)

    A Constituição vai perdendo, a passos largos − exatamente por conta da paralisia dos cidadãos por ela, teoricamente, protegidos − a sua “força normativa”. E como não existe vácuo na política, seu lugar tende a ser ocupado por um ordenamento tendencialmente totalitário e retrógrado. Uma vez finada a “democracia”, poderemos ter de nos sujeitar à “demarquia”, um regime político autoritário, proposto por Friedrich Hayek, no qual a democracia de fachada dá guarida ao ultraliberalismo econômico.

    Contra isso se insurgem os chilenos.

    É tarefa para ontem das forças democráticas, que acreditam na liberdade, nos ideais republicanos e na justiça social resistir e refletir em conjunto sobre o que deu errado nesses 130 anos de República e sobre o que desandou nos pouco mais de 30 anos de “Constituição Cidadã”. (…)

    Esse é o desafio que está posto para hoje e para os dias que virão. Do contrário, a barbárie poderá prevalecer. Já podemos escutar os seus sinais: às 17h37 de um sábado, no centro de Niterói, um homem saca um revólver e atira duas vezes, matando uma moradora de rua que lhe pedia R$1,00 de esmola. Um real.

    * Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG

  13. Ator é censurado no 52° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (vídeo)
    247 – Os cerca de sete minutos do discurso do secretário de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, Adão Cândido, foram abafados por um coro de “Fora Adão!” e “Cadê o FAC?”, em referência ao cancelamento do edital do Fundo de Amparo à Cultura, no valor de R$ 25 milhões, ocorrido em maio deste ano.

    Mais tarde, pouco antes do início da sessão, o ator Marcelo Pelucio pegou o microfone para ler uma carta do Movimento Cultural do Distrito Federal, que reúne diversas entidades artísticas, mas foi impedido por um segurança. Pelucio continuou, mas o som do microfone foi cortado e a plateia reagiu com gritos de “censura”.

    Na carta, além de criticar a suspensão do fundo, o documento ainda cita o não cumprimento de alguns aspectos da Lei Orgânica de Cultura (LOC), como um artigo que obrigaria a publicação do superávit do ano anterior no mês de janeiro, informa a Folha de S.Paulo.

    https://web.facebook.com/watch/?ref=external&v=1319474401558862

  14. Sobre recomendações de Leitura, eu terminei agora de ler “minotauro global”do Varoufakis que é ótimo pra explicar numa linguagem acessível a não economistas, onde estamos no cenário econômico mundial.

  15. Faltou

    * Respeito absoluto pelo dinheiro público, condição básica para a democracia.

    Em seu discurso antológico no Congresso do PT Lula falou após várias críticas ao Moro e Lava Jato:
    “Temos muito que falar sobre ética, sobre combate a corrupção e a impunidade. Mas acima de tudo temos que falar a verdade”

    Está certo. Ética da política sempre foi uma bandeira do partido.

  16. Oportunismo e arrivismo sempre existiram, são apenas prismas do grande poliedro chamado egoísmo.

    O que está em jogo neste grande xadrez (para nos valer da terminologia nassifiana), é a capacidade de traduzir a mentalidade em voga para fins eleitorais, em tempos de modernidade líquida, captando o simbolismo político que traduza a voz da maioria.

    A esquerda urbana, gestada no academicismo das grandes universidades públicas e movimentos sociais de trabalhadores, perdeu a conexão com o Brasil real. Não consegue mais traduzir em seu discurso as plataformas variadas dos cidadãos que vivem nesse país imenso.

    A direita, pelo contrário, incorporou a percepção do homem comum do interior. O apelo sertanejo, a bandeira do agro, a destruição ambiental como simples pedágio para o progresso, a teologia da prosperidade neopentecostal, que transmuta o desejo de vencer na vida à qualquer custo como uma cruzada divina. Enfim, todo um simbolismo arcaico, construído sobre as necessidades primárias do homem, sem o verniz da sofisticação da noção de convívio e civilidade que se aprimora nas grandes metrópoles.

    O Brasil real não está nos campi das federais ou nas classes médias intelectualizadas das grandes cidades. São apenas bolhas num universo de primarismo e ignorância. Na realidade do interior não existem comunidades LGBT, não existem direitos humanos como direitos fundamentais inatos. Não existem direitos trabalhistas, mas encargos trabalhistas. Existe propriedade privada e poder econômico como condição “sine qua non” de cidadania, é a mentalidade do que “você vale o que você tem” em seu prisma mais escancarado.

    Uso de armas, preconceito contra gays e lésbicas, são tônicas comuns nesses núcleos sociais. Grupos de minoria nunca tiveram direitos nesses ambientes, portanto, todo esse discurso moderno e inclusivo das esquerdas apenas refrata os valores do “homem do campo”. Praticamente não existem universidades publicas no interior profundo, e, por tabela, não há valorização do ensino superior gratuito, visto como uma das causas pela formação de “comunistas, maconheiros e gays” nas grandes cidades.

    Há um tempo atrás, quando a influência do americanismo (globalização) não se fazia sentir tanto, predominava aquela clássica visão utópica do caipira, do sorocabano, do gaudério no sul, como sendo a mentalidade comum no interior. Isso fabulou. É preciso ter em vista que a internet mudou o paradigma de mudança dos valores. Hoje, numa cidade de cinco mil habitantes, o descoladinho da hora consegue imitar a barbearia da Quinta Avenida. As pessoas não têm como parâmetro de vida uma pessoa de existência honesta, digna, honrada etc. Seus novos tipos ideais são pessoas ricas, magras, brancas, caucasianas, bem sucedidas financeiramente. Não importa como se chegou lá, pois se chegou é porque o Senhor prosperou! Poder aquisitivo lava qualquer mácula neste novo estilo de mentalidade rural. O Sertão mítico de Guimarães Rosa é uma fábula perto das paisagens de lavouras de soja, Round Up e Hilux.

    A elite rural sempre teve viés conservador e provinciano, mas assim como se verifica nos EUA, podemos falar que no Brasil interiorano predomina agora uma ideologia “Tea Party”. O fator evangélico agregou uma agressividade que não havia na exposição de tais valores como virtudes do cristão. A intolerância com as religiões afro é apenas a primeira ponta desta visão de imposição à força dos valores conservadores judaico/cristãos. A Igreja Católica é a bola da vez. Ser católico nas pequenas cidades começa a soar como sinônimo de permissivo e “idolatria”. Pastores bem sucedidos, casados com belas esposas, com seus SUV começa a influenciar mais o imaginário do povão que o Padre, “homem que veste saia”, “pedófilo”.

    Poderia dizer mais, abordar outras facetas dessa nova mentalidade caipira, mas fica nítido que o discurso de Bolsonaro, do desprezo pelo meio ambiente à defesa da embaixada em Israel, passa pela adoção irrestrita desses valores do Brasil Real do interior. A eliminação do outro como “modus operandi” político sempre foi a principal plataforma política do interior. É costume nas pequenas cidades que a família dos derrotados busque um exílio forçado, assim como seus principais apoiadores.

    Enquanto assistimos à essa mentalidade tacanha adquirir formas concretas de manifestação política, num contexto de fechamento de fábricas e indústrias e abertura de novas fronteiras agrícolas, resta evidente que o modelo da grande metrópole como trampolim para ascensão social perdeu apelo junto ao imaginário comum. Os filhos da terra agora querem lavouras de soja e criação de boi, querem viver num Texas que fala português e não em São Paulo, essa Nova York do mundo bizarro, retratada pelo Cidade Alerta.

    E Lula solto envereda pela mesma miopia da esquerda, num discurso para convertidos. Desconsiderando que o operário não quer melhor salário, quer apenas garantia de ter seu emprego, não importa que tenha que abrir mão de domingos, feriados. Afinal, o que é o domingo se comparado à perda da fonte de renda (e de cidadania)?

    Sou morador – forçado – do interior. O que procurei descrever é o que vivo, tendo passado por umas oito cidades até sessenta mil habitantes, por força de concurso público. Ser à favor de políticas públicas contra a desigualdade, graduado em universidade federal, e ainda por cima entusiasta de Lula, me tornam portador da letra escarlate.

  17. O que está em jogo neste grande xadrez (para nos valer da terminologia nassifiana), é a capacidade de traduzir a mentalidade em voga para fins eleitorais, em tempos de modernidade líquida, captando o simbolismo político que traduza a voz da maioria. Oportunismo e arrivismo sempre existiram, são apenas prismas do grande poliedro chamado egoísmo.

    A esquerda urbana, gestada no academicismo das grandes universidades públicas e movimentos sociais de trabalhadores, perdeu a conexão com o Brasil real. Não consegue mais traduzir em seu discurso as plataformas variadas dos cidadãos que vivem nesse país imenso.

    A direita, pelo contrário, incorporou a percepção do homem comum do interior. O apelo sertanejo, a bandeira do agro, a destruição ambiental como simples pedágio para o progresso, a teologia da prosperidade neopentecostal, que transmuta o desejo de vencer na vida à qualquer custo como uma cruzada divina. Enfim, todo um simbolismo arcaico, construído sobre as necessidades primárias do homem, sem o verniz da sofisticação da noção de convívio e civilidade que se aprimora nas grandes metrópoles.

    O Brasil real não está nos campi das federais ou nas classes médias intelectualizadas das grandes cidades. São apenas bolhas num universo de primarismo e ignorância. Na realidade do interior não existem comunidades LGBT, não existem direitos humanos como direitos fundamentais inatos. Não existem direitos trabalhistas, mas encargos trabalhistas. Existe propriedade privada e poder econômico como condição “sine qua non” de cidadania, é a mentalidade do que “você vale o que você tem” em seu prisma mais escancarado.

    Uso de armas, preconceito contra gays e lésbicas, são tônicas comuns nesses núcleos sociais. Grupos de minoria nunca tiveram direitos nesses ambientes, portanto, todo esse discurso moderno e inclusivo das esquerdas apenas refrata os valores do “homem do campo”. Praticamente não existem universidades publicas no interior profundo, e, por tabela, não há valorização do ensino superior gratuito, visto como uma das causas pela formação de “comunistas, maconheiros e gays” nas grandes cidades.

    Há um tempo atrás, quando a influência do americanismo (globalização) não se fazia sentir tanto, predominava aquela clássica visão utópica do caipira, do sorocabano, do gaudério no sul, como sendo a mentalidade comum no interior. Isso fabulou. É preciso ter em vista que a internet mudou o paradigma de mudança dos valores. Hoje, numa cidade de cinco mil habitantes, o descoladinho da hora consegue imitar a barbearia da Quinta Avenida. As pessoas não têm como parâmetro de vida uma pessoa de existência honesta, digna, honrada etc. Seus novos tipos ideais são pessoas ricas, magras, brancas, caucasianas, bem sucedidas financeiramente. Não importa como se chegou lá, pois se chegou é porque o Senhor prosperou! Poder aquisitivo lava qualquer mácula neste novo estilo de mentalidade rural. O Sertão mítico de Guimarães Rosa é uma fábula perto das paisagens de lavouras de soja, Round Up e Hilux.

    A elite rural sempre teve viés conservador e provinciano, mas assim como se verifica nos EUA, podemos falar que no Brasil interiorano predomina agora uma ideologia “Tea Party”. O fator evangélico agregou uma agressividade que não havia na exposição de tais valores como virtudes do cristão. A intolerância com as religiões afro é apenas a primeira ponta desta visão de imposição à força dos valores conservadores judaico/cristãos. A Igreja Católica é a bola da vez. Ser católico nas pequenas cidades começa a soar como sinônimo de permissivo e “idolatria”. Pastores bem sucedidos, casados com belas esposas, com seus SUV começa a influenciar mais o imaginário do povão que o Padre, “homem que veste saia”, “pedófilo”.

    Poderia dizer mais, abordar outras facetas dessa nova mentalidade caipira, mas fica nítido que o discurso de Bolsonaro, do desprezo pelo meio ambiente à defesa da embaixada em Israel, passa pela adoção irrestrita desses valores do Brasil Real do interior. A eliminação do outro como “modus operandi” político sempre foi a principal plataforma política do interior. É costume nas pequenas cidades que a família dos derrotados busque um exílio forçado, assim como seus principais apoiadores.

    Enquanto assistimos à essa mentalidade tacanha adquirir formas concretas de manifestação política, num contexto de fechamento de fábricas e indústrias e abertura de novas fronteiras agrícolas, resta evidente que o modelo da grande metrópole como trampolim para ascensão social perdeu apelo junto ao imaginário comum. Os filhos da terra agora querem lavouras de soja e criação de boi, querem viver num Texas que fala português e não em São Paulo, essa Nova York do mundo bizarro, retratada pelo Cidade Alerta.

    E Lula solto envereda pela mesma miopia da esquerda, num discurso para convertidos. Desconsiderando que o operário não quer melhor salário, quer apenas garantia de ter seu emprego, não importa que tenha que abrir mão de domingos, feriados. Afinal, o que é o domingo se comparado à perda da fonte de renda (e de cidadania)?

    Sou morador – forçado – do interior. O que procurei descrever é o que vivo, tendo passado por umas oito cidades até sessenta mil habitantes, por força de concurso público. Ser à favor de políticas públicas contra a desigualdade, graduado em universidade federal, e ainda por cima entusiasta de Lula, me tornam portador da letra escarlate.

    1. Parabéns. Do alto do meu emprego público vitalicio, cheio de direitos, garantias, vantagens e privilégios uno a minha voz a sua para declarar solenemente que “o operário não quer melhor salário, quer apenas garantia de ter seu emprego, não importa que tenha que abrir mão de domingos, feriados”. Só faltou proclamarmos: “Brasil em cima de todos. Deus evanjegue nas costas dos trabalhadores celetistas”.

    2. Havemos de considerar o seu comentário apenas como um desabafo, eis que não compactua com a realidade do país.
      Segundo dados do IBGE, (transcrevo o primeiro parágrafo) “De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2015 a maior parte da população brasileira, 84,72%, vive em áreas urbanas. Já 15,28% dos brasileiros vivem em áreas rurais. (https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18313-populacao-rural-e-urbana.html
      Assim, a sua percepção sobre o PT, suas responsabilidades e seu alcance, bem como a mentalidade do homem do campo em relação ao da cidade, traduz tão somente o seu ponto de vista – extremamente restrito.
      O brasil real, para a sua sorte, você não precisou conhecer ainda.

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