O futuro do Brasil em “Eu, Daniel Blake”, por Paulo Moreira Leite

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – As críticas da opressão ao proletariado, da burocratização do Estado e da falta de garantias a direitos trabalhistas e sociais não envolvem apenas o protagonista Daniel Blake, um carpinteiro que, afastado do emprego por um AVC e grave condição de saúde, deve voltar a buscar trabalho. Para Paulo Moreira Leite, é um aviso do que ocorrerá no Brasil com a gestão Temer.
 
A crítica se estende para personagens como Katie, uma mãe solteira e Ann, uma terceirizada agente do governo. Descasos de direitos sociais e a burocracia estatal naturalmente mostrados no filme britânico “Eu, Daniel Blake” garantiram ao longa a Palma de Ouro no último festival de Cannes. A estreia no Brasil ocorreu na última quinta-feira (05). 
 
“A obra apresenta um retrato sem enfeites do colapso do Estado de bem-estar social na Inglaterra, país que, entre outros benefícios sociais, construiu um sistema público de saúde gratuito e universal, ponto de partida para diversos países, inclusive o nosso SUS”, manifestou o jornalista.
 
Para ele, o filme tem um papel muito maior com a estreia no país, revelando o que será o Brasil em um curto futuro. “Do ponto de vista dos 200 milhões de  brasileiros, Eu, Daniel Blake ganha uma importância especial pela conjuntura política, de guerra aberta do governo Temer e da equipe de Henrique Meirelles contra a CLT e programas sociais como Bolsa Família, Previdência Social e Minha Casa Minha Vida”, analisa.
 
Por Paulo Moreira Leite

 
 
No Brasil 247
 
Se há vários motivos para aplaudir o filme “Eu, Daniel Blake,” de Ken Loach, Palma de Ouro do Festival de Cannes, um dos mais importantes do mundo, é fácil reconhecer a razão principal.
 
Centrado na luta de um carpinteiro para proteger seus direitos, a obra apresenta um retrato sem enfeites do colapso do Estado de bem-estar social na Inglaterra, país que, entre outros benefícios sociais, construiu um sistema público de saúde gratuito e universal, ponto de partida para diversos países, inclusive o nosso SUS.
 
Do ponto de vista dos 200 milhões de  brasileiros, Eu, Daniel Blake ganha uma importância especial pela conjuntura política, de guerra aberta do governo Temer e da equipe de Henrique Meirelles contra a CLT e programas sociais como Bolsa Família, Previdência Social e Minha Casa Minha Vida. Neste momento, Loach mostra o destino de um dos países mais ricos do planeta, antiga potência imperial, que se encontra numa etapa posterior do processo que leva ao Estado Mínimo.
 
“Eu, Daniel Blake” registra numa cena a condição de cidadãos britânicos que passam fome.
 
A tradução para a realidade brasileira exige adaptações importantes, como uma renda per capta menor, um patrimônio acumulado também menor — apesar do crescimento dos últimos anos. Considerando que os seres humanos tem necessidades básicas semelhantes em qualquer latitude, pode-se imaginar o tamanho da tragédia em curso. 
 
O mundo que se vê na tela retrata uma classe trabalhadora capaz de gestos individuais de solidariedade mas vencida em derrotas sociais imensas, onde homens e mulheres são obrigados a lutar de forma individual por seus direitos e improvisar caminhos no limite da ilegalidade para reforçar a dispensa. Num momento divertido, retrata-se um cidadão que engorda os ganhos pelos labirintos da globalização, fazendo contrabando de tênis produzidos na China.
 
No mundo pós-moderno de Eu, Daniel Blake, as ações coletivas sequer são cogitadas. A existência de sindicatos, que já foram uma glória do movimento operário, nem é mencionada. Ao longo do filme, o protagonista está mergulhado numa realidade que os brasileiros conhecem muito bem: no combate por direitos estabelecidos junto aos serviços de telemarketing, enfrentando um exasperante labirinto de recomendações e explicações que nada resolvem. São apenas uma forma cínica encontrada pelos governantes para adiar a entrega de um direito que as duas partes sabem que é liquido e certo — mas dificilmente será reconhecido.
 
Nas cenas finais, o filme mostra o que vem depois. Após perder os direitos como trabalhador, o protagonista também é destituído de direitos como cidadão e acaba sendo tratado como criminoso comum quando  tenta de realizar um protesto por conta própria.
 
Com preciosas lições para a atualidade, Eu, Daniel Blake  tem uma omissão do ponto de vista histórico. Você vai para casa perguntando como tudo aquilo pode acontecer.
 
Em vários momentos, o filme faz referências esparsas ao governo responsável pela tragédia social do país, o Partido Conservador. Está correto. Nos 18 anos em que permaneceram no poder, onze deles com Margaret Thatcher  como primeira-ministra, os conservadores fizeram um trabalho meticuloso e profundo para destruir o Estado de Bem-Estar Social. O problema é que, a seguir, o Partido Trabalhista ocupou o governo por treze anos. Em dez deles, Tony Blair foi o primeiro ministro e, contrariando as expectativas da maioria dos britânicos, nada fez para reverter a herança recebida. Em 2010, o Labour sofreu uma nova derrota nas urnas e até agora não se recuperou.
 
Cabia ao Labour, pelo seu lugar na história do país, o papel de resistir aos ataques contra os direitos da maioria. A recusa em assumir este lugar também ajudou a criar um mundo no qual a questão social virou caso de polícia — e este também é um debate que interessa aos brasileiros de 2017. Sem resistência, seus direitos também vão se transformar em poeira.  
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

2 Comentários

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  1. Aquarius

                     Esse filme foi o que venceu  Aquarius em Cannes, com farta torcida de jornalistas que sequer o viram ! 

  2. Quanta verdade se pode suportar?

    Precisaria alguém do ramo fazer um filme contando do golpe que estamos amargando… talvez desde o Mensalão até os dias atuais, um retrato sem hipocrisia nem meias palavras da falta de nacionalismo dos nossos representantes no governo atual e no estado desde sempre. Podia incluir a corrupção nossa de cada dia, como dado cultural… sabe o funcionário público de atendimento no balcão que “desembaça” a certidão, o alvará ou o “habite-se” que ele mesmo faz demorar, o guarda que “ganha” lanche da padaria que vigia, o médico que atende e o paciente que é atendido sem recibo, e assim por diante?

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