Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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A ditadura não está morta, por Urariano Mota

Pesquisadores fazem escavações no DOI-Codi em São Paulo, e buscam vestígios de mortos e torturados na ditadura

A ditadura não está morta

por Urariano Mota

Em conversa com o cientista político José Antonio Spinelli nesta semana,  eu lhe disse:

– Estes dias e o futuro atualizam a nossa juventude.

Isso me veio a partir da notícia de que pesquisadores fazem escavações no DOI-Codi em São Paulo, e buscam vestígios de mortos e torturados na ditadura:

“Os técnicos e especialistas vão atuar em três frentes de trabalho: arqueologia forense, arqueologia da materialidade do espaço e arqueologia pública. Essa última envolve o trabalho de divulgação, oficina de formações com professores e alunos, a visitação pública e o ciclo de debates. 

A pesquisa no DOI-Codi em São Paulo é pioneira no país, porque inclui a investigação de arqueologia forense em um prédio histórico marcado por violações do estado durante a ditadura militar…. 

‘Dente, brinco, cabelo. Anel? Exato. Elementos pequenos que caíram que vai nos permitir reconstruir essa história, a partir desses pequenos fragmentos. Porque esses pequenos objetos têm uma história por trás’ “.

Mas penso que essa necessária pesquisa científica, com fatos materiais, provados sobre o terror de Estado na ditadura, já está presente em meu romance “A mais longa duração da juventude”. Mas presente de outra maneira, como personagens vivos pela que deles a memória recupera, personagens que são vivos a tal ponto, que são pessoas, e não criaturas de papel. Como aqui, por exemplo:

“A vida lembra a intensidade de uma canção. Na reconstrução pela memória, a vida é intensa, profunda e breve como uma canção fundamental. Mais próximo do que desejo dizer: a memória da vida é uma brevidade que não termina. Há um ponto e uma repetição indefinida. Melhor, não é um ponto, são reticências. Mas pontos que não se repetem, porque se deslocam, variam, percepções em torno de um acontecimento que voltam sem fim. Então a sua retomada é mais que uma música. Mas lembra a canção que se renova no sentimento, na felicidade às vezes amarga que volta, como se pudéssemos voltar a ser ontem. Ao ser de ontem. Ao ser sem resposta de antes, mas com uma gravidade que não imaginávamos no sem saber resposta do bar, enquanto o corpo de Luiz do Carmo jaz no necrotério.   

O celular da minha mulher toca. É a mulher de um amigo que deseja saber como foi a morte. Ela fala de outra cidade, de outro mundo, fora do Recife. E deseja me falar. Tento responder, mas estou sem resposta. Estou fora de cobertura, sozinho, eu e ela, mais uma vez. Ella, a outra, sempre está na sua voz repousante, que é um sinal para nós que a Terra é azul e pode ser um abrigo para quem sente e não tem a expressão para o que se revolve no íntimo. “Como vais escutá-la se não tens um toca-discos?”. Eu nem havia me dado conta do absurdo da compra do disco, aliás, só vim notar mais de 30 anos depois, quando Luiz do Carmo me contou e dele veio a recordação da certeira observação. Mas Luiz do Carmo, noto agora, todos nós tínhamos a nossa Ella Fitzgerald sem toca-discos. Quero dizer, a maioria de nós era pobre, muito pobres, alguns até miseráveis, e nem nos dávamos conta da carência de tudo, porque sonhávamos com os olhos escancarados para o mundo que viria.

Quem possui o sonho não é pobre. ‘Camarada, isso é um idealismo. As condições materiais são a base do mundo subjetivo’, me falaria Selene, a nossa líder no movimento secundarista. Mas jamais poderia vir dela tamanho corretivo, porque ela própria estava no paradoxo de amar o distante e não ter as chamadas condições objetivas para o amor. Ela se mantinha firme e forte com os companheiros, uma fortaleza contra intimidades, enquanto despertava paixões e feitiço nos rapazes solteiros, para quem ela era a própria deusa da subversão. Mas Selene, com a sua correção retórica, era a polícia tentando invadir o real, que não é dogma nem se move por ordem positivista.

Quem possui o sonho não é pobre. Nós nos alimentávamos do sonho, uns aos outros. Contávamo-nos os próximos passos do levante insurrecional que viria, sem sombra de dúvida. Contávamo-nos a beleza de nossas aspirações culturais, porque ambicionávamos também o mundo das luzes. Revolução, arte e cultura eram uma só, orgânicas, sem fraturas. Se não eram até ali, seriam. ‘Será’, dizíamo-nos com uma certeza de arrasar exércitos contra nossas Canudos”. 

Assim fala um leitor do romance no site da Amazon:

“Este romance é uma sincera narrativa sobre a memória dos tempos ditatoriais recentes. Lembranças que contestam a História oficial e reivindicam vozes e experiências diversas sobre o autoritarismo que ainda permanece. Além de inscrever Recife e Olinda como lugares de memória relevantes sobre os traumas do passado brasileiro. Vale muito a pena ler!!!”

https://m.media-amazon.com/images/I/5174cAvr47L._SX312_BO1,204,203,200_.jpg

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

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Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

1 Comentário

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  1. Desaparecidos políticos, o delito permanente de tortura e uma nação inconclusa.

    Sendo a dignidade da pessoa humana um dos pilares da nossa Constituição, e a vedação à tortura um de seus sustentáculos, resta claro que enquanto não for totalmente elucidada a questão acerca dos desaparecidos políticos, remanesce viva a tortura, espargindo seus nefastos efeitos dia a dia.

    E, não há falar em respeito à anistia, pois o direito de saber acerca de seus familiares, desaparecidos, de seus descendentes, subtraídos, permanece constante, com seus efeitos deletérios minando a saúde física e mental de todos.

    A tortura nesses casos somente cessa quando encontra a verdade.

    A lei da anistia não tem ( e não pode ter) como fim proteger a mentira, a desídia, a ignominia, mas torná-la clara, transparente, para que todos saibam os horrores que foram perpetrados e, desta forma, nunca mais ocorram tais violações e desumanidades.

    Não há compromisso com a ocultação da verdade, pois se isso ocorrer estará em franca colidência com a anistia, que não prescinde de fatos a anistiar.

    Qualquer pessoa que se coloque como obstáculo a esta busca, seja por ação ou omissão, está vestindo o atual uniforme do torturador, devendo ser, sem qualquer sombra de dúvida, responsabilizada por tais crimes permanentes de tortura.

    Neste caso, tais atos de tortura são supervenientes à Lei da Anistia, a qual, indubitavelmente, não é passível de ser aplicada.

    Com o advento da Lei da Anistia, ainda que se considere que não pode haver punição pelos crimes cometidos, isto não é aplicável quando se trata de crimes de efeitos permanentes, no caso, crimes de tortura com efeitos que se postergam no tempo.

    Isto se dá nos casos em que há a supressão (histórica, sistemática)das informações acerca do destino que foi dado aos combatentes da ditadura -desaparecidos políticos), bem como das circunstancias que cercam tais fatos.

    Estes torturadores tem o dever de informar o destino dado aos presos políticos (e muitas vezes, de seus descendentes – filhos), sendo que, no caso do silencio, posterior à lei da anistia, podem e devem ser responsabilizados penalmente.

    A Lei da Anistia (neste artigo não há juízos de valor sobre sua validade tanto ética moral ou politica), não alcança tais situações.

    Tal situação é descrita de forma dolorosa pelo Frei Leonardo Boff no I Seminário do Grupo TORTURA NUNCA MAIS, in verbis:

    E há ainda uma tortura que continua, a tortura dos desaparecidos, crucificando seus entes queridos. Houve uma Guerra no Araguaia. Até hoje os militares e o Estado não a reconheceram. Não lhes convém esse reconhecimento, pois a consciência nacional os condenaria. É que lá se cometeram todos os excessos: cortaram a cabeça e os dedos dos guerrilheiros mortos e os enviavam a Brasília para reconhecimento. Sumiram com seus cadáveres. Fizeram desparecer as vidas e pretendem agora apagar as mortes. E as famílias carregam o pesadelo. “Por que não comecei as buscas antes?”. Cada campainha que toca em casa funciona como um vento a soprar as cinzas e reanimar a brasa da esperança, seguida da decepção: ”Será que não é ele que está chegando?” Outros dizem desolados mas com leve laivo de espera ainda não desesperada: “Não mudemos de casa porque ele pode ainda chegar… e se nós não estivermos mais aqui para o abraço, o beijo e as lágrimas. Que vai ser?”

    Enquanto persistir a tortura (na forma de delito permanente em relação aos familiares e afins dos desaparecidos políticos do regime militar) seremos uma nação inconclusa, pois ausente um dos pilares que sustentam qualquer Estado Democrático de Direito.

    Neste caso, não se trata apenas do exercício de um direito fundamental individual (dos familiares) mas sim coletivo, envolvendo todos os que podem ser, dignamente, chamados de cidadãos.

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