A justiça da escrita, por Eliseu Raphael Venturi

Mesmo na mão gasta de lavagens e cansada de resíduos dos "imitadores e vozes", a justiça da escrita lança seu olhar mais direto e intenso e decreta: continue

Ilustração por Eliseu Raphael Venturi, 2019.

A justiça da escrita

por Eliseu Raphael Venturi*

A justiça da escrita é a única justiça e a repetição obsessiva é o marcador de uma descoberta não inédita, como que um reconvencimento íntimo de uma convicção, o que dispensa o paradoxo e a contradição, que simplesmente não existem no plano do influxo das coisas.

Não há metáfora que represente ou alegoria que encene a justiça da escrita por meio do respeito à memória e o apego ao esquecimento, que é como se manifesta precisamente essa justiça tão bela e extensível como o é a justiça da escrita, essa justiça mortal e finita.

Apenas a escrita faz jus àquilo que um organismo julga deva ser preservado: àquelas pequenas memórias perdidas em meio aos esquecimentos sem fim que, de repente, irrompem como a mais clara das imagens em movimento ou paradas, mas com cores tão vivas e sem auras de aberração cromática, como que imantadas por sons de pássaros e aromas caseiros e sentimentos de expectativas de alimentos afetivos, como que emolduradas em manchas e máculas que se diluem e se mesclam umas nas outras como uma tinta diluída, tinta nova e saturada, aqueles vermelhos incríveis de vivos e pulsantes como um sangue recém jorrado ou azuis cobalto, cerúleo e ultra-mar, ou os roxos destas mesclas, com pigmentos preciosos e extraterrestes, imagens pulsantes deslocadas e ressignificadas por sucessivas alocações mentais e corporais ao longo dos anos, das décadas, das novas experiências e das novas memórias, acumulando-se em estratos e mesclando em cores diferentes, mais vivas ou mais opacas, somadas à imaginação e às expectativas futuras, que captam o passado e o sujeitam de um modo muitas vezes cruel, muitas vezes generoso.

Apenas a justiça da escrita permite esta liberdade plena de lembrar e de esquecer, que é uma arte de desenho e de rasura, raspagem e descolamento, rasgo, de fugir portando o objeto da fuga, conservando-no até à maturação do embate e à destruição recíproca, quando então o tempo se perdeu e o espaço foi inutilizado, e todas as coisas úteis são lixo, e todas as coisas inúteis são relíquias, e todas as coisas afetivas são afeto e estopim.

A justiça da escrita, assim, por sua mágica e profusão, por sua exatidão e sua maestria, por seu domínio do homem e dos animais, é uma justiça sem provas e uma justiça de confiança, sem deus e sem garante, sem prestação de contas e, eu ousaria dizer, atacando uma deidade quase absoluta: uma justiça sem dúvidas.

A única justiça, a da escrita, prescinde de prova da presença, da experiência, da ocorrência do fenômeno, senão prescinde de qualquer existência que não a da palavra bruta e da palavra polida, porque não existe descrição nem narrativa, existe apenas a potência e o poder da justiça da escrita, como um deus originário, uma física originária, uma química originária: a criação.

Mesmo na mão gasta de lavagens e cansada de resíduos dos “imitadores e vozes”, a justiça da escrita, que não é cega nem coberta da cafonice da justiça jurídica (e toda comparação é, além de insuficiente, inútil e ofensiva à justiça da escrita, cuja palavra não se apagou e não se revestiu de um limo persistente), lança seu olhar mais direto e intenso e decreta: continue.

Esta é apenas uma de suas grandezas.

*Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba-PR.

Redação

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