País sem Marquise, por Jean Pierre Chauvin

De modo geral, revelam mau-gosto supremo, quase sempre a ostentar posses e propriedades: a chave que pende do bolso, o anel de rubi, o relógio dourado-radioativo, a roupa que pretende conceder fumos de fidalguia novaiorquina e garbo parisiense

Foto Reuters

País sem Marquise

por Jean Pierre Chauvin

Suspeitava que eles & elas não sabiam nada de História do Brasil (afinal, reeditam discursos do passado, embora defendam, desde a indigestão MT, pós-golpe, um país “do futuro”). Mas eles & elas tampouco conhecem algo, para além de capas (sim, capas) de livros de autoajuda, dispostos estrategicamente em expositores pagos pelas editoras mais pop. Nunca leram um filósofo; nem Dante, Petrarca, Camões ou Cervantes; quem dirá Darwin; tampouco os 72 livros que compõem a Bíblia “oficial”, supostamente traduzidos de Deus para o Português a partir da vulgata. Não sabem o que significam ou simbolizam as cores da bandeira republicana-positivista; sequer o hino nacional ou o nome dos Três Poderes da União; tampouco manuseiam (ou acessam) dicionários, já que se consideram parte de uma classe melhor e superior às outras (ainda que a deles seja tão idealizada porque abstrata). De modo geral, revelam mau-gosto supremo, quase sempre a ostentar posses e propriedades: a chave que pende do bolso, o anel de rubi, o relógio dourado-radioativo, a lentidão forçada dos gestos, a roupa que pretende conceder fumos de fidalguia  novaiorquina e garbo parisiense; a exibição de milhares de fotos da viagem periódica (cuja meta é andar na montanha russa ou posar a frente de pontos turísticos); o hábito inclassificável de tomar champagne na Avenida ruidosa e poluída, a confundir protesto político com “desfaçatez de classe” (recorro a um termo schwarziano, alto lá). Eles & elas adoram o discurso da ordem, da moral, da propriedade privada, dos bons-costumes, da assepsia social e da autoridade, embora – a rigor – não satisfaçam aos critérios que supõem existir ou fingem defender. A isso se daria, hoje, o nome de cinismo. Daí a tentar explicar a diferença que há entre a pequenez destes e a grandeza dos cínicos da Antiguidade (o que será isso, né, “Antiguidade”? Coisa velha. “Serve” para nada) vai uma diferença ainda maior que os dois milênios e meio que separam a idiotice dos entreguistas sádicos em relação aos sábios de outrora. Eles & elas não valem sequer o “post” agressivo e estúpido com que realçam a sua ignorância geral e o indisfarçável desejo de extermínio dos(as) diferentes. Deixe-os/as um minuto em silêncio (se é que isso é possível, pois grande parte deles padece de histeria e incapacidade de autoexame no modo “mute”) e longe de câmeras que, talvez, os censurassem, ou de celulares que os rastreassem. Verão as monstrusidades (chutar mendigos, queimar índios, alvejar carroceiros, estapear pretos, pobres, crianças e velhos); os lances grotescos de quem só refreia desejos quando convém (eis aí o mito de Eva, a justificar a “vontade sexual”, o estupro, a mão que esgana e a morte). Eles & elas fingem retidão moral em meio a vida mesquinha e tortuosa que levam; vivem a confundir ética da micro ou macro empresa com decência pessoal (outra lição de Marilena, aquela que odeiam porque isolaram uma frase e a transformaram em falsa síntese de um raciocínio consistente). O assunto dominante é o lucro, senão como proceder mais eficiente e eficazmente. A depender do que e de quanto levam no bolso, nas horas vagas consumirão cervejas ruins, arrotando sabedoria e grosseria num bar cheio, porque point, da avenida top, onde cobiçam uns e outros, enquanto beijam a aliança de compromisso ou casamento. Isso explica que façam a apologia cega de sujeitos indefensáveis, instalados pelo desgoverno nas mais altas esferas, pois não veem (ou fingem não perceber) a distância que há entre o discurso e a ação (embora sejam “autoridades” a definir e regular discursos supostamente doutrinadores). Como são parciais e têm dificuldade em lidar consigo mesmos, manifestam a sanha da companhia, do ruído, da música de qualidade questionável. Para eles & elas, alguém que fale baixo e devagar, ou leia regularmente , não passa de aberração no país em que é compulsório empreender e startar coisas, ainda que não haja mercado consumidor; na neocolônia em que o gerente de banco é melhor e mais respeitado que o professor; na republiqueta que sonha ser grande, mas onde seus cidadãos “de bem” acham normalíssimo faltar saúde, saneamento básico, energia elétrica, moradia e escola em milhares de municípios (os estrangeiros, afinal, não podem ocupar os postos mais remotos que os brasileiros, orgulhosos de si e da carreira financiada pelos pais ou pelo Estado, recusam-se a assumir).
Não menciono a lama que recobre Minas. Os alvos mortos, a esmo, sem possibilidade de defesa, em capitais ditas turísticas. Os miseráveis que aumentaram exponencialmente, nas ruas da Pauliceia, Poços de Caldas, São Caetano do Sul – amostras do que sucede a outras cidades inóspitas, onde todos correm em favor do trabalho (ou do diploma) de onde pretendem extrair resquícios de dignidade, no paiseco dos fatricidas, em que a revolta é extravasada duas ou três vezes por semana, diante do entediante jogo de futebol. Será, afinal, um território estadunidense com extravazão de patridiotas?
Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Temos que começar tudo de novo… Mas o Brasil não fora sempre isso? Afinal Lima Barreto escreveu a satira ao brasileiro “No Pais dos Bruzundangas” ha mais de século. A esperança fica com a moçadinha que vem ai, na crença de que serão menos egoistas e individualistas e mais instruidos e humanos.

  2. Irrepreensível!

    “Será, afinal, um território estadunidense com extravazão de patridiotas?”

    Será, afinal, um território quase estadunidense com extravazão de patricidas

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador