Primeira sexta-feira, por GeraldoR

Primeira sexta-feira, por GeraldoR

Ao levar meu carro para lavar fui informado pelo lavador de rua, a boca pequena, que excelente partida de fumo estava sendo comercializada em Cabana, uma comunidade de Belo Horizonte. “Coisa nova, chegou recentemente, veneno”, afirmou o lavador entusiasmado.

Era final dos anos 70, sempre que precisava levava meu Karmann Ghia para lavar com conhecidos lavadores na região do bairro Santo Agostinho. Vivíamos um período de intensa repressão aos usuários, cana dura ou, dependendo do juiz, internação em clínica para “tratamento”, de onde muitos saiam chué.

Na ocasião, conhecido delegado circulava pela cidade em um Dodge Dart que tinha uma escopeta sob o capô, cuspia chumbo 2t, anos pesados.

Meu fumo já estava minando, o cu-de-burro (recipiente de borracha utilizado para conservar tabaco) definhava, precisava repor o estoque, era a oportunidade. Além de lavar carros o local também servia para se providenciar um fumo, por isso ali estava.

Mostrei logo o interesse de ir buscar a maconha, asinha, não poderia deixar passar a ocasião, parodiando o ex-governador de Minas Gerais Magalhães Pinto: “Política (boca de fumo) é como nuvem. Você olha e ela está de um jeito. Olha de novo e ela já muda”.

Em troca de uma “presença”, o lavador de nome Antônio se prontificou em levar-me até ao local da transação. Deve-se ir acompanhado de gente conhecida no pedaço, é mais seguro. Morador do bairro Nova Cintra, situado do lado da comunidade, Antônio era frequentador do local, conhecia o mala.

Deixei o carro para lavar e voltei para a Repartição Pública Federal onde trabalhava, Amanuense concursado. Fiquei de buscar o veículo após o expediente, 18:00 horas, quando então seguiríamos em busca da diamba.

Ao retornar encontrei Antônio em companhia de dois amigos que vieram pegar uma ponga, no carro e no fumo.

Antes de sairmos fomos ao boteco da esquina, tomei uma cachaça, comi um bolinho de feijão e bebi uma lata de cerveja, companheiros bis in idem. Paguei a conta e fui ao banheiro, mijei o medo, entramos no carro e nos colocamos a caminho da Odisséia, coração a mil, no rádio Betânia cantava “Sem Açúcar”.

Decorridos uns trinta minutos entramos em Cabana, rádio desligado, o guia toma as rédeas ordenando direções, parecia um GPS humano, por entre becos e vielas fui intimado a parar uns cinquenta metros antes de chegar a uma baiuca.

Antônio pegou o dinheiro, desceu do carro e sumiu por entre as sombras da noite, olheiros acompanharam a movimentação e aprovaram, alívio, no carro ficamos os três, pastorando a hora.

Passados uns trinta minutos Antônio estava de volta, sorriso de Mona Lisa nos lábios, bom sinal, entrando no carro entregou-me a barra, 100 gramas no peso, consumo para mais de um mês, folga. De imediato desembrulhei a erva e a cheirei como o enófilo que cheira o vinho especial. “Ótimo”, exclamei, “trem de outro mundo! É do Paraguai!” Finalizei. Em seguida, tirei uma lasca na barra e a entreguei ao guia, sem demora, liguei o carro e saímos em direção aos limites da comunidade onde deixaria os passageiros, é necessário companhia também para sair do local, “bombado”.

Após alguns minutos no trajeto aquilo que temíamos aconteceu, um carro da polícia estava nos seguindo, surgiu de inopino por uma via transversal, Lei de Murphy?

“Meu Deus! Meu Deus! Oh Meu Deus!”

Assim que percebi pelo retrovisor a presença da polícia, imediatamente participei a situação aos companheiros: “Ninguém olha pra trás, ninguém olha pra trás, os ‘homi’ tão na cola, fiquem do jeito que estão, não se mexam, não tentem dispensar o fumo”. Os companheiros, malacos que eram, entenderam tudo. Tínhamos de demonstrar tranquilidade, nenhum movimento suspeito, nada que chamasse a atenção, nenhuma bandeira, calma, muita calma. Supra-renais em trabalho dobrado, adrenalina jorrava.

Não mudei o caminho a ser seguido, continuei rumo ao exterior da comunidade, a largura estreita das ruas não permitia ultrapassagem, ao passar sob iluminação, pelo retrovisor podia-se observar os meneios dos policiais dentro da viatura, serpentário, bote armado, literalmente.

Já estávamos chegando próximo à avenida que delimita a comunidade e onde a rua em que seguíamos desemboca, era o local em que os companheiros ficariam. A uns duzentos metros antes do entroncamento a rua alargava-se consideravelmente fazendo parte de uma praça, local propício para a ação da polícia, a sorte está lançada.

Num átimo, no derradeiro recurso à última instância, aos céus levanto minhas mãos:

“Deus meu, ajudai-me, Senhor meu Deus, vinde em meu socorro!”

Ato contínuo, eis que inesperadamente surge a nossa frente, luzido e em plena atividade um templo evangélico, fieis à porta em profusão, o culto está para começar.

Defronte ao templo uma providencial vaga de estacionamento em 45 graus se apresentava, o cavalo encilhado diria Leonel Brizola, não deu outra, falei sofregamente aos companheiros: “estamos indo ao culto.” Direcionei o carro para a vaga com extremo cuidado e devagar, sem titubear, nenhum atropelo ou vacilo, na maciota, podia-se ouvir o barulho das piçarras sendo esmagadas pelos pneus, paramos, descemos do carro em conduta impecável demonstrando bastante tranquilidade (camburão parado no meio da rua), obreiros aproximam com cumprimentos e boas vindas. Por dez intermináveis segundos observei o cintilar das luzes da patrulha refletido na parede frontal do templo, cagaço.

De repente sinto as luzes coloridas se afastando vagarosamente, de esguelha vejo a viatura sumir dobrando a esquina.

“Aleluia! Aleluia! Aleluia!”

Com a sensação de flutuar em nuvem etérea entrei no templo com os companheiros e tomamos assento, tremi, o flagrante na cueca. Fechei os olhos por alguns minutos em louvor a Deus, ao abri-los pude ver o último dos companheiros vazando pela porta lateral do templo, Lei de Murici!

O pastor inicia os prolegômenos, obreiros passam recolhendo primícias que as entreguei sem mesquinhez, terminado o exórdio o pastor pede ofertas e obreiros vêm apanhar, novamente compareci, sem julgamentos.

Seguiram-se os rituais e orações de praxe, embora Católico acompanhei com respeito e atenção o desenrolar das atividades, tudo muito comovente e abençoado. Findo o culto sai pela porta lateral e sondei o ambiente: “limpeza”, entrei no carro e fui em direção ao apartamento que alugava no Edifício JK (imenso condomínio no centro da cidade), obra do Niemayer, mesmo não sendo de cobertura era um apartamento duplex e os andares do apartamento não eram superpostos, coisa curiosa.  Já em casa, rapidamente fiz um baseado para experimentar o produto (confirmou-se a expectativa). Cabeça feita, esquentei no fogão o que tinha para comer: lombo de panela, arroz e feijão bago-bago, tudo feito por mim, cozinheiro formado pelo SENAC, para completar fiz uma farofa na manteiga e azeitonas, estômago forrado, tomei um banho e em seguida acochei o digestivo que pitei dedilhando o violão.

Estava chegando a hora de sair para a esbórnia, noite de sexta-feira, tudo a ver, separo um baseado para levar. Cogito o destino: na Rua Araguari o Pitéu Carolina e o Sunflower bombavam, o Maletta, Ali-Ba-Bar ou alguma coisa na Savassi, pululam opções, na dúvida levo o violão.

Antes de decidir aonde ir, resolvo passar em casa de minha Mãe, morava no Prado nas imediações do Quartel do DI da Polícia Militar, bairro bem policiado. Lá chegando meu irmão abre a porta, “Olá mano! Cadê mamãe?” Indago, “está no quarto rezando”, responde. Porta entreaberta, entrei no quarto de mansinho, o brilho de uma vela cintilou em meu rosto na penumbra, “oi mãe!” Ela responde: “Olá meu filho, que bom te ver, estou vindo da Igreja, santa missa, comunguei, pedi muito por você em especial, ao Anjo da Guarda pra te proteger e a Nossa Senhora para te ajudar nos estudos e no trabalho.”

Lá fora a Rua Turquesa calçada de granito, pela janela do apartamento de primeiro andar vejo passar a Polícia Montada em ronda noturna, ouviam-se o tropel dos cavalos, ferraduras em atrito com as pedras. Sob a escuridão o vento sopra o perfume de damas-da-noite.

Tomei um bom café, despedi-me de minha mãe e de meu irmão entrei no carro e saí ainda sem destino, a noite é uma criança…

Geraldor

Redação

6 Comentários

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  1. GeraldoR, você é um escritor cara. . .

    GeraldoR, você é um escritor cara! Excelente narrativa, tem estilo, leve, engraçado e elegante. Gostei muito. Continue. 

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