Um dia comum em meio à pandemia, por Roberto Bitencourt da Silva

O Brasil sequer consegue assegurar laços mínimos de cooperação e solidariedade. O neoliberalismo de décadas intensificou o problema do nosso individualismo predatório.

Um dia comum em meio à pandemia 

por Roberto Bitencourt da Silva

Depois de quase duas semanas fui ao supermercado. Sensação desagradável de ver mais gente na rua, gente fazendo atividade física (o esperto vai, os otários ficam em casa; a mentalidade é essa).
De passagem, caminhando, ouço superficialmente alguém na lotérica debochando que o pessoal no bairro “estava com medo”, que não sei onde “tá tudo normal”, que “não têm medo não”.
O Brasil, na prática, não é uma República. Raras as vezes em que aspectos desse nosso regime político falaram alto na história. Não prezamos o bem comum, o espaço e os negócios públicos.
O princípio elementar do espírito republicano, dizem os pensadores clássicos, é a virtude. Isto é, a submissão das paixões particulares aos interesses coletivos maiores. O todo precede as partes. Pressupostos estranhíssimos em nossa experiência republicana.
O Brasil sequer consegue assegurar laços mínimos de cooperação e solidariedade. O neoliberalismo de décadas intensificou o problema do nosso individualismo predatório.
Convenhamos, isso tudo é sabido, porém ganha dimensão muito dramática na conjuntura. Ex-fazendão colonial, a trajetória nacional é permeada pela superexploração do trabalho, por atomização e egoísmo cavalar.
País notoriamente importador do que é feito, pronto e já consumido e conhecido em outras praças, despreza a educação, a ciência e uma palavra razoável baseada em reflexão metódica. Cultura da incultura. Hoje ganhando status de mote para movimento político, senão religioso.
O fatalismo, religioso ou não, é influente. Muitas rotinas sociais desgraçadas e desumanas, absolutamente marcadas pelo desapossamento de direitos, fazem a morte banal ser naturalizada. A vida não tem valor. Especialmente a dos mais pobres e marginalizados. Cada um por si. Sobretudo nos centros urbanos das grandes metrópoles.
O medíocre, lesa pátria, entreguista, reacionário e repugnante presidente da República não surgiu do nada. Sua deliberada campanha pelo genocídio dos brasileiros, boicotando medidas de isolamento social, tem surtido efeito. E tem raízes profundas na terra da original exploração do pau brasil.
O País talvez aprenda alguma coisa com tudo o que estamos vivendo. Pode ser que melhore em algo, no curso do tempo, após a superação da pandemia. Não seria  surpreendente se a cultura política brasileira revisasse valores, prioridades, princípios e comportamentos.
Mas, infelizmente, caso ocorra, não será sem dor. Muita dor. As projeções amplamente divulgadas para o Brasil têm sido sombrias. Pelo que conhecemos do sistema de saúde, do perfil de nossas autoridades e do comportamento em vigor nas ruas, é plausível dizer que a sombra do horror está crescendo.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.
Redação

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