Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

A última entrevista de Celso Marconi, por Urariano Mota

Em novembro de 2023, ele estava com a voz frágil; mais uma vez, o maior crítico de cinema manteve-se lúcido em um corpo que não lhe respondia

Foto: Arquivo Pessoal – Urariano Mota

A última entrevista de Celso Marconi

Urariano Mota*

Dias antes da sua última entrevista, Celso Marconi queria ter um suicídio assistido por mim, Trude e Marco Tavares Queiroz.

Agora, em 29/11/2023, ele estava com a voz frágil, às vezes de audição difícil depois, apesar da sensibilidade do gravador. Acompanhado por Trude, a entrevista era sujeita a interrupções, para que ele respirasse melhor. Isso era um misto de pulmões e ansiedade, porque ele não queria que acabasse a entrevista. 

Com o nosso maior crítico de cinema, aqui mais uma vez, a contradição ou antagonismo da vida, quando mantém o cérebro lúcido em um corpo que já não lhe responde. 

Cabia a este seu amigo, no papel difícil de repórter, entrevistá-lo. Para Celso Marconi, falar, quando não mais podia ver e escrever,  era uma necessidade. Ouvi-lo, escutá-lo, era um dever e graça, uma homenagem à sua vida.

Com a ajuda técnica essencial de Marco Tavares Queiroz, registramos.

– Celso, você queria um suicídio, mas era um suicídio cinematográfico, né? Não era simplesmente um suicídio. Tinha que ter gravação com o seu amigo, o fotógrafo Vlademir. Vlademir Barbosa precisa saber disso. E mais quem?

Celso Marconi – O Câmera. Helder seria o Câmera, né? Seria sem roteiro, né? Sem roteiro, sem nada. Se o…

–  Sem roteiro. Seria só improvisação, né?

Celso Marconi – É, tudo improvisado.

– O suicídio seria através de quê? De injeção? O quê?

Celso Marconi – Eu não sei, o médico é quem diz.

– Seria uma injeção do quê?

Celso Marconi – Eu não sei. Antes eu pensava que era covardia de quem ficasse chorando a velhice. Mas a velhice é muito ruim.

– Celso, o que é que dói mais na velhice? É a solidão?

Celso Marconi – É a solidão. É uma coisa horrorosa, sim. Recebi mil visitas no hospital. No hospital, sim, mas é um horror, a solidão. No hospital, me doía tudo. A cama era esquisita, alta. Era altamente reclinada.

–  É, Celso, o ambiente de hospital, nunca é bom. Nunca é bom nem pros médicos. Quando eu fiz a minha cirurgia de rim, eu fiz no hospital Esperança, mas era aquele hospital, Esperança lá da Ilha do Leite, entendeu? E aí depois eu vi que aquele pessoal era evangélico, sabe? Eu ia pro banheiro e nada. Não conseguia defecar porque a impressão que a gente tem, depois de uma cirurgia no ventre, é que se defecar os pontos se rompem. Rasgar tudo. Aí eu ficava sem poder defecar. Apesar de estar tomando remédio para as fezes serem líquidas, entendeu? Aí, um dia vem a enfermeira me dar um sermão, veio me dizer, o senhor está muito sério. O senhor devia sorrir. Então eu disse: “como é que eu posso sorrir, se eu não posso nem cagar?”. (Celso ri)

Mas pulando essa parte do suicídio. Para o nosso conforto, essa cena não vai ter no seu próprio cinema, no seu próximo filme. Eu pergunto a você, nessa altura dos seus 93 anos, quais são os filmes assim que marcaram você para toda a vida até hoje?

Celso Marconi –Um filme que eu adoro, o italiano “Rocco e Seus Irmãos”. Mas dizer nomes de filmes para mim… Visconti. Os diretores, mas eu não tenho essa coisa de ficar apaixonado por um filme, e ficar elaborando em torno dele. Eu nunca elaborei em torno de tal ou tal filme. Eu elaboro buscando escolas cinematográficas. Aquele pessoal do Cinema Novo, do neorrealismo italiano. Aquele pessoal que você vê, e vai encontrando determinados períodos.  

– Você seria capaz, de botar filmes, eu sei que é difícil,  diretores numa escala de 1 a 10? Você seria capaz disso?

Celso Marconi – Pier Paolo Pasolini, Pasolini, um dos maiores.  Fellini…

– Eu não sabia disso.

Celso Marconi – Pasolini. Um homem que era malvisto pela sociedade,  porque era comunista. Comunista e gay.  Era uma figura que ficavam passando pra trás. Mas eu acho que ele é o maior cineasta do mundo.

– E você, destacaria o quê dele? Teorema?

Celso Marconi – Todos, todos filmes. Mas foi a grande figura. Agora, se você não é visto muito, você já era. Nas minhas críticas, eu procuro momentos de filmes que eu adoro.

– E Bergman está entre os seus grandes, não é?

Celso Marconi – Bergman, está. Mas não é um dos maiores.

– E Godard, qual o lugar dele?

Celso Marconi – Godard é um especial. Godard é uma figura especial, uma figura especial. Quer dizer assim, inclusive é uma figura que teve a coragem de morrer numa hora que estava cansado. Ele tinha dinheiro pra pagar o suicídio assistido. Era filho de banqueiro

– Agora, duas coisas que eu queria saber de você. Mas antes, o seguinte: todas as semanas, é isso que eu ia lhe dizer: todas as semanas, eu envio pro site Vermelho duas matérias suas. Uma que eu pego daquele livrão, em que você está na capa com o Nelson Pereira dos Santos, entendeu? Eu copio o texto, digito palavra por palavra. Lá, escolho um texto, copio digitando. Depois, pego uma coluna sua, já publicada no Vermelho, as primeiras de há mais de 3 anos, escolhe uma, e coloco as 2 críticas, até para mostrar a continuidade da sua atividade no tempo. Do Jornal do Commercio até hoje.

Celso Marconi – Eu escrevi uma matéria sobre o nosso presidente. Você viu? Uma sobre a volta dele.

– Eu vou pegar essa. Eu sei como é. Você fala. Trudy grava e passa pro Face. Fica maravilha. Celso, todas as semanas eu envio seus textos para o Vermelho, mas não só. Eu divulgo em vários grupos do Face, como “Os amigos da livro 7”, grupos do cinema brasileiro entendeu? Em “Clássicos do cinema”. Todas as vezes, todas as semanas. Agora, eu queria saber de você o seguinte: dos cineastas pernambucanos hoje, você acha que Kleber Mendonça é o principal, ou além dele, há outros?

Celso Marconi – Do ponto de vista da publicidade, do, como é que se chama?, do sucesso internacional é ele, sim. Quer dizer, é o melhor. É o primeiro cineasta pernambucano que é conhecido mundialmente. Agora, talvez ele não tenha chegado à coisa dos cineastas que fizeram o cinema pernambucano. Tem vários. Lírio Ferreira é um dos maiores. Camilo Cavalcante….

– Você disse, em relação a Kleber Mendonça, que ele chegou a realizar um sonho que o Cinema Novo não pôde fazer, que era fazer cinema de arte e atingir o grande público.

Celso Marconi – Sim. O Cinema Novo iria atingir. Se não tivesse havido o golpe de Estado em 64, o cinema brasileiro seria o maior de todo o mundo. Um dos maiores, sem dúvida.

– E quem seria, o que seria o cineasta de ponta? Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos?

Celso Marconi – Assim… são os mais conhecidos. Meu Deus, tinha mais gente. Cacá Diegues… Glauber é um grande cineasta. Mas vários daquela época são grandes cineastas, fizeram grandes filmes.  Leon Hirszman, “esse cara é comunista”, diziam. Grande cineasta. São Bernardo. O cineasta pode ter validade só por um filme. Não precisa ter 30 filmes pra ter valor. O cinema, eu acho, pra mim, 2 minutos de um filme podem valer mais do que a história toda do filme. Porque aquela forma é cinema pra valer. A realidade é: quem faz uma cena daquele tipo é um grande cineasta, independentemente dos que fizeram outros grandes filmes.

– O que eu acho arretado com relação a você, Celso, é que você não é só um crítico de cinema, você é também um pensador de cinema. Você tem tiradas que…,   

Celso Marconi – Eu sou mais pensador que crítico. Embora eu tivesse me preparado para escrever teoria de cinema, não tive a estrutura acadêmica. Eu poderia ter uma estrutura mais estável na cultura brasileira, mas não tive condições de fazer isso. Não sei se por vadiagem, se por falta mesmo de recursos, isso não aconteceu.

– O fato é que você tem frases, tem reflexões, que são de um pensador de cinema. De um cara que pensa o cinema. Do ponto de vista filosófico mesmo. Quando você cita Walter Benjamin, não é de graça não. Tem sentido. Tanto é o seguinte, Celso, que naquela fase do Cinema de Arte Coliseu, você não tem a dimensão do que você representava pra nós no Recife. Naquela fase do Coliseu, a gente chegava a dizer: “Cultura no Recife é Celso Marconi”. Entendeu? Por causa das críticas que você publicava no Jornal do Commercio, aquilo pra nós era como pegar de um verso de Manuel Bandeira, aquilo era um Alumbramento! Alumbrava a gente com aquelas sacadas que você tinha. E não somente as sacadas, como a programação do cinema de arte Coliseu, que era muito boa.

Celso Marconi – Eu nunca fui um acadêmico. Fiz o meu curso de Filosofia, e fiz o curso de Antropologia. Mas sinto uma grande falha em não ter sido professor da Universidade Federal. Dentro da universidade, eu teria uma posição melhor.

– Se você tivesse publicado nos jornais do Sul e Sudeste, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, você estaria reconhecido há muito tempo.

Celso Marconi – Sim. Eu tive a possibilidade de ir pra São Paulo, depois de 64. Mas não fui, não sei por quê. Na hora, eu comprei a passagem de avião, mas na hora eu disse que não ia mais não. Preferi ficar em Pernambuco.

– E o que foi que levou você a desistir?

Celso Marconi – Não sei. Eu estou com dificuldade de falar. Na realidade, era uma coisa interior. Uma coisa íntima. Eu tenho intimidade com o Nordeste. Já tive várias oportunidades, eu podia ter ficado no Rio de Janeiro, tinha inclusive namorada lá, mas terminei não ficando. Era uma ligação com Pernambuco. Eu não sou um escritor, não sou um grande, sei lá.

– Você começou como jornalista num jornal comunista, do Partido Comunista do Brasil. A Folha do Povo, certo? Que Rubem Braga uma vez escreveu numa crônica, disse, ao modo dele, que começou a trabalhar no Recife, no jornal mais quebrado do Brasil. Quebrado porque a polícia chegava lá, quebrava máquinas e redação toda vez. E você começou na Folha do Povo.

Celso Marconi – A Folha do Povo era no edifício Vieira da Cunha, no quarto andar. E o escritório do meu pai, engenheiro, era no terceiro andar.

– Aí ficava mais fácil, não é?

Celso Marconi – Depois de mais ou menos um mês. Comecei lá. Trabalhei lá com David Capistrano, Hiran Pereira, que era ator de teatro também. Com um bocado de gente boa. A Folha pagava, mas era pouquinho.

– Celso, depois você vai pro jornal Última Hora. Você trabalhou com Aguinaldo Silva.

Celso Marconi – Aguinaldo Silva foi quem trabalhou comigo. Ele era bem jovem. Muito talentoso.

A esta altura, o nosso crítico de cinema tinha dificuldade de falar. Então demos uma pausa no gravador para continuar depois. Celso Marconi pedia para que continuássemos, ainda assim. Mas não foi possível. Ficou a saudade no fim.

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Leia Também

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador