Cantoria de Viola em colônia piauiense de São Paulo, por Eduardo Pontin

Repentistas piauienses Nely Sousa e Zé da Luz cantam o Piauí em São Paulo

Os piauienses Nely Sousa e Zé da Luz em noite de Cantoria. | Foto: Francisca Sousa

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Série PIAUÍ CULTURA REGIONAL (IV)

por Eduardo Pontin

A Cantoria de Viola, também conhecida como Repente, é a maior expressão cultural do Nordeste e ano passado foi tombada como Patrimônio Cultural do Brasil. A maior parte das pessoas originárias do Sudeste desconhecem a Cantoria, quando dois repentistas se desafiam ou entoam outros gêneros em versos de improviso. Entretanto, equivoca-se quem pensa que em São Paulo não há Cantoria. Os piauienses Nely Sousa e Zé da Luz vêm realizando uma temporada na Terra da Garoa provando isso. Engana-se que não há público para a Cantoria em São Paulo, em pouco mais de 3 horas os cantadores haviam faturado cerca de R$ 1.200,00 depositados na bandeja pelas pessoas presentes. Os Cantadores conhecem muito bem o segredo para que isso aconteça: cantam para os seus. Ou seja, para os retirantes nordestinos que vivem em São Paulo. O público da noite era composto por profissionais como empreiteiro, mestre de obras, inspetor de qualidade, segurança, caminhoneiro, encarregado de obra e outros.

Quem exalta esse povo? Quem canta o sofrimento, a privação e a saudade que sentem diariamente a mais de 2.500 km de distância de seus pais, irmãos, familiares e amigos, a centenas de léguas de seu chão? Somente um dos seus poderia ter tamanha sensibilidade, e é justamente isso o que os cantadores de viola cantam.

Quem conhece a Cantoria apenas de festivais ou as feitas em compromissos profissionais onde os cantadores não têm vínculo com as pessoas do lugar não conhece o que é Cantoria. A Cantoria dos festivais é fria, já que o público é selecionado, sem o calor humano de quem canta para os seus ou em sua terra.

Instrumentos do Cantador

É preciso esclarecer que as periferias da Grande São Paulo são pequenos pedaços do sertão do Nordeste e outros interiores Brasil adentro. Compostas por pessoas que vieram viver o nem sempre bem-sucedido sonho de São Paulo, que trabalham na maior parte das vezes no sistema 6 por 1, na intenção de poupar algum dinheiro para um dia regressar ao seu torrão natal melhor de vida.

A Vila Ayrosa, periferia do município de Osasco, é uma pequena colônia de piauienses. Não exatamente de piauienses, mas dos nascidos em Paquetá, no Piauí, especificamente em povoados como Barrocão, Angical, São Rafael e outros.

Foi nesse pequeno pedaço de asfalto da noite fria paulista que os piauienses puderam reviver sua origem. Nely Sousa é filho do Barrocão e Zé da Luz de São Rafael e os seus os aguardavam ansiosamente para ouvi-lo.

A verdadeira Cantoria de Viola não se faz apenas com dois cantadores, mas com mais de cem pessoas ao menos (presentes ou não presentes). Isso porque, quando os cantadores estão entre os seus, além de citarem prolongadamente nome por nome das pessoas presentes, evocam os seus antepassados, vivos e mortos. Falam neles não apenas de passagem, mas descrevem seus feitos, defeitos e hábitos. O público de pouco mais de 30 pessoas presente à Padaria Piauí foi ao delírio, pois, naquele momento, elas estavam novamente em casa, presenciando uma expressão cultural que viveram em seu torrão, ouvindo versos sobre seus familiares e amigos mais chegados.

As reações variam de acordo com o gênero de Cantoria entoado. O momento que os cantadores conseguem arrancar mais dinheiro do bolso do povo é quando mexem nominalmente com um por um dos presentes, até que ele abra a carteira e deixe a nota na bandeja. Após conseguir esse feito, uma nova rodada de notas é aberta e os cantadores repetem os nomes, mexendo com suas características, louvando a pessoa e a sua família. Somente neste momento específico da Cantoria daquela noite, os dois repentistas por mais de 40 minutos sem parar tiraram versos de improviso e louvaram as pessoas presentes, arrancando aplausos gerais de todos.

Há quem coloque nota de R$ 100,00 na bandeja, muitos de R$ 50,00 e a maioria de R$ 20,00. Mas as pessoas põem a mão no bolso com grande sorriso e a maior satisfação. Uma senhora de vestimentas simples colocou R$ 7,00 porém, pagou mais que todo mundo. Afinal, ela deu tudo o que tinha, enquanto muitos apenas regravam a distribuição das várias notas em sua carteira.

Paga dos Cantadores feita ao modo tradicional, na bandeja. | Foto: Francisca Sousa

Já quando o mote “Eu nunca esqueci do chão/Que fui nascido e criado” foi cantado, a euforia das brincadeiras deu lugar a olhos cerrados e cabeça em movimento afirmativo, com todos em tom contemplativo. Naquele momento todos ali não estavam mais na periferia de Osasco, mas no povoado Barrocão, em Paquetá (PI):

Naquele tempo o que vinha

Era tudo do roçado

Pai não era apusentado

Muito menos mamãezinha

No mês de junho inda tinha

Um chêro de chão molhado

E muito milho verde assado

Na fuguêra de São João

Eu nunca esqueci do chão

Que fui nascido e criado

(Nely Sousa)

Na Cantoria de Nely Sousa e Zé da Luz tudo é autêntico. Os temas de Cantoria são reais, sem aquele duelo de conhecimentos gerais que os cantadores profissionais das grandes capitais são submetidos. Cantoria de grandes nomes hoje parece vestibular: o sertanejo com formação escolar básica precisa saber de história geral, história do Brasil, literatura, filosofia, física, química, biologia, astronomia, matemática, gramática, geografia e muito mais. O Cantador moderno falando sobre essas matérias não se dirige mais ao seu povo do interior do Nordeste, mas às pessoas bem nascidas das grandes cidades. Mas com Nely Sousa e Zé da Luz, não!

Os Cantadores piauienses passam longe das matérias escolares e cantam o seu chão, o seu povo, a sua lida, sua cultura e seu palavreado. E os retirantes nordestinos da Vila Ayrosa de Osasco vibram de verdade, naquele momento não há tristeza, não há saudade, não há dificuldade. Ninguém se lembra de nada disso, estão ali presentes de corpo e alma, como se estivessem se sentido no próprio Barrocão.

Nely Sousa (Genivaldo José dos Santos, 11/12/1973) estava inspirado e pela capacidade de rapidez no improviso que apresentou naquela noite, pode ser comparado ao grande Cantador do Pajeú Otacílio Batista, conhecido pela agilidade na construção de seus versos. Nely é uma verdadeira metralhadora de repentes, versos decididos, mal seu parceiro encerra sua parte, já tem em mente o que vai dizer, como vai dizer e sobre quem vai dizer. Sua voz é característica, parece a voz de velhos cantadores do século XX. Seus versos são cheios de malícia e veneno, com endereço certo e mensagem clara. Conversa direta, sem brecha para dúvida. Nely é um dos melhores acontecimentos que há na música popular brasileira nos dias de hoje.

O Cantador é de fato um sujeito interessante. A cada vez que alterna o seu canto com o seu companheiro produz versos que bem poderiam ser gravados como uma composição independente. Nesse raciocínio, numa noite o cantador chega a elaborar cerca de 100 composições, todas descartáveis. Pois depois que o cantador as diz, não mais as lembra. Mesmo feitas com grande amor e paixão, elas servem para um fim específico naquele exato momento: tocar o sentimento do público presente.

É notável o prazer com que Nely compõe os seus versos. Parece que sua mente é uma grande avalanche de ideias e palavras que formam uma engrenagem dinâmica, onde todas as peças se encaixam perfeitamente e quanto mais ele fala, mais rápido essa máquina gira e todos os seus componentes funcionam, num sincronismo que a ciência nunca vai conseguir imitar na fabricação de máquinas. E a rapidez de funcionamento aumenta ainda mais quando Nely encerra seus versos com um farto sorriso estampado em seu rosto. É de fato admirável!

O piauiense Nely Sousa é um dos melhores acontecimentos na música popular dos dias de hoje.

Zé da Luz (José da Luz de Moura Santos, 22/5/1969) é mais velho e mais experiente que Nely. Tem programa na Rádio da Difusora de Picos. Zé canta compassadamente e é difícil vê-lo errar um verso, sempre com fundamento, métrica, rima e oração. Zé da Luz é nascido no povoado de São Rafael, município de Paquetá, mas faz a sua vida de Cantador na cidade de Picos, a 3° maior do estado, com cerca de 80.000 habitantes. Zé vive exclusivamente da Cantoria, é profissional.

Já Nely concilia a vida de Cantador com a de lavrador, trabalhando de roça nos finais e começos de ano, no sertão do Piauí.

Nely é um sonhador, sonha viver exclusivamente da Cantoria. Se talento fosse garantia de sustento, Nely estava garantido. Mas como a realidade é sempre diferente dos sonhos, Nely segue tocando e cantando para os seus, seja no Barrocão, seja na Vila Ayrosa, com a esperança de um dia viver exclusivamente da Cantoria, podendo dar asas aos seus pensamentos e luz a sua vida.

Afinal, Nely Sousa é um dos melhores acontecimentos da música popular brasileira dos dias de hoje.

O grande Cantador Nely Sousa | Foto: Francisca Sousa

Nely se apresentará com Zé da Luz em São Paulo novamente em agosto, em dia de Cantoria que recomendo fortemente aos amantes da cultura popular brasileira.

SERVIÇO

Quem: Cantoria de Nely Sousa e Zé da Luz

Quando: 21 Agosto (domingo) – 16h00

Onde: R. Dr. Vicente Giacaglini, 376 (Vila Alpina – São Paulo)

Preço: Entrada franca

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Eduardo Pontin

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