Diários de Lisboa

Estas cinco cartas foram escritas para uma lista de tradutores da qual participo desde 1997, e com a qual ando meio estranhado nestes últimos meses, exclusivamente por culpa minha – mas reconhecer isto não me dá muita vontade de fazer alguma coisa para desestranhar-me, aquela lista não é mais o que foi (mas quem é?).

As cinco cartas foram escritas no período de janeiro a maio de 1999, quando voltei a Lisboa, uma cidade que amei insensatamente e cuja lembrança ainda me nutre, depois de uma ausência de mais de vinte anos, vindo de um projeto fracassado em Dublin.

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I

24 de janeiro de 1999


Estou em Lisboa.

Cheguei no meio da tarde, vim para o Hotel Borges (da minha janela posso conversar com quem está sentado nas mesas da calçada d’A Brasileira), distribuí as vinte malas por todos os cantos do quarto, tomei um banho — um duche —  vesti minha roupa-de-ver-deus, desci a Calçada do Alecrim até um lugar onde serviam (e servem!) absinto, emborquei dois e continuei descendo até o Cais do Sodré tomei o comboio — trem — pra Cascais, direto para o Jardim dos Frangos, local da minha última refeição, a do condenado, em Portugal em 1979, última vez em que estive por aqui.

O Jardim dos Frangos continua ali, ao lado da Casa Velha dos Galegos, e ainda serve frango na brasa. Mas, apesar das minhas boas intenções, sou rapaz influenciável. Na mesa ao lado, estavam comendo ameijoas: “Se faz favor, uma porção de ameijoas”. Logo em seguida, as tradicionais febras de porco na brasa, com fritas e salada, que estavam comendo na mesa em frente. Depois, o garçom passou com um prato de gambas al ajillo, e quem disse que eu resisti? Pensei em pedir também um frango na brasa, afinal era pra isso que eu tinha feito quarenta minutos de trem. Mas a garrafa de Dão Meia Encosta e toda a comida falaram mais alto, e limitei-me à sobremesa. Seguida, é claro de café e aguardente velha, e uma cigarrilha Café Crème, que ninguém é de ferro.

Cascais continua igual. O John Bull, o Bar Inglês e o Chequers estão como Minas, onde sempre estiveram. Está um pouco mais parecida com todas as demais estâncias turísticas da Europa, cheia de lojas de luxo e brasileiros falando mal de tudo, mas é ainda irresistivelmente Cascais. Lisboa foi ocupada pelos russos e depois invadida por Napoleão, e é uma terre brulée. Entre uma parte e outra da cidade é agora preciso atravessar quilômetros de vias expressas, tuneis, viadutos e outras malufices do gênero. Mas, mesmo agora enquanto escrevo, ouve-se lá fora o rangido das rodas do elétrico nos trilhos (o que passa aqui, ainda me lembro, é o mesmo que eu tomava para vir ao trabalho no Diário de Lisboa: o 28, Martim Moniz-Prazeres), o zunzunzum dos fregueses (e das freguesas!, isso também mudou) d’A Brasileira, sente-se o cheiro de maresia com café e braseiros que o Bairro Alto sempre teve, vêem-se da minha janela as mesmas calçadas de pedra do Chiado. Lá embaixo, não vejo, mas sei e sinto que o Tejo arrasta-se sereno, levando os meus sonhos de há vinte anos para o mesmo lugar onde espreitam os sonhos dos portugueses todos, os daqui e os daí, à espera da nossa hora.

Estou escrevendo e olhando para dois olhos que me deram, e o mundo fica mais claro. Estou em Lisboa, como antes estive em Santiago, e a vida não dá voltas, eu sei, mas roda como a Lusitana e faz da vertigem uma virtude.

Até logo mais.

Tomás, viriatíssimo 

 


II

26 de janeiro de 1999

 

Ainda não me decidi se isto é oftópique ou papo furado. Então, vou alternando.

Quando estive aqui por algumas horas, em setembro, fiquei chocado com as transformações da cidade. Cheguei a escrever e mandar para algumas pessoas um imeio intitulado “Ai das cidades que se levantam e são derrotadas!”. Não consegui ver, daquela vez, senão aquilo que me afrontava mais diretamente. Eu, um pedestre militante que nunca pousou as mãos sobre o volante de um carro em movimento, ser obrigado a enfrentar duas vias expressas para ir de um lado ao outro do Campo Grande! A Praça de Espanha transformada em um canteiro de obras, com barraquinhas de camelô espalhadas por toda a parte! Túneis na avenida da República!

As cidades não podem ser museus, é certo. São organismos vivos, que evoluem, se transformam, e Lisboa, ainda bem, não foge à regra. Mas é certo também que o que parece haver acontecido aqui é uma tentativa deliberada de romper com o passado, de “modernizar” a cidade. A minha impressão setembrina não estava assim tão distante da realidade dos fatos, apesar de ter sido produto de um choque. O que houve aqui foi um ataque aos sinais da Lisboa que tornou possível e incentivou e abrigou o 25 de abril, foi a preparação do terreno para as tropas de ocupação dos automóveis e dos bancos. Em cada esquina há uma loja de automóveis e um banco. O dinheiro da UE continua a entrar aos borbotões, e a ordem do dia é prosperar, ser rico, ser moderno. O que mais se ouve, por toda a parte, como pano de fundo perpétuo, é o barulho das britadeiras.

Sous les pavés, la plage? Não, sous les pavés está a conta de poupança da Caixa Geral de Depósitos.

Mas esta cidade que eu amo desmedidamente desde que encontrei pela primeira vez, em 1975/76, resiste. Naquela época eu era um vagabundo completo e, fora algumas poucas semanas intermitentes de traduções feitas para o digníssimo Professor Braga da Cruz, não fiz muito mais além de namorar e andar pelas ruas. Acordar tarde, tomar o café da manhã ao meio dia com suco de pêssego e “croissant com fiambre” e flanar, até as tantas da madrugada. Talvez, na madrugada, um caldo verde no Mercado das Couves ou um chocolate quente com peixe frito nas barraquinhas atrás do Cais do Sodré. Quase sempre, várias imperiais na Trindade, e uma ou outra vez sacudir as ancas no Bolero, ali junto ao Martim Moniz.

Bom, o Martim Moniz virou uma praça muito da moderna, cheia de barraquinhas de fibra de vidro azul translúcido e uma horrorosa fonte em forma de estrela bem no meio. O Bolero, é claro, não existe mais, e muito menos as barraquinhas atrás do Cais do Sodré. Não fui ainda ao Mercado das Couves, tenho medo de encontrar um shopping center bem em cima. Mas, por indicação do listeiro Mário César, dos “de cá”, fui aos “bares das Docas”, e comecei a me reconciliar um pouco com a modernidade lisboeta. Agora é possível, coisa que no meu tempo não era, ir até as três da madrugada e passar em dez bares diferentes sem precisar tomar o elétrico para ir de um a outro, e sem precisar estar na zona para isso. Mas não deixei, é claro, de ir ao Bar Oslo, ali na “rua das meninas”, em homenagem aos velhos tempos.

Alcântara e o Príncipe Real continuam sendo lugares belos e gentis, como sempre. Continua a haver tascas e cafés baratos por toda a parte. O Bairro Alto está um pouco mais limpinho, mas continua sendo um convite a vagar sem destino. Aquele sujeito parado ali junto à vitrine da David & David não é o Fulano?…

Não, Tomás, olha para o seu reflexo na vitrine e compara. Quando muito, pode ser o filho do Fulano, com a mesma idade que você tinha naquela época. Mas aquele senhor de barbas brancas sentado na primeira sala da Trindade é sim o dono da Livraria Barateira, à mesma mesa de sempre. Mas esta era fácil, ele já tinha barbas brancas em 1975.

Lisboa é eterna e nada a vai destruir, graçazadeus. Há um ou outro prédio de alumínio ou de vidro atrapalhando a vista, mas lá embaixo é o mesmo Tejo que corre em direção ao Brasil, como sempre. Esta é a nossa fonte, foi daqui que saímos todos, inclusive a Barilovska. Esta cidade fez de nós o que somos. Falamos talvez uma língua um pouco diferente, correm nas nossas veias sangues de cuja existência D. Dinis nem suspeitava, mas o nosso coração é português, em cada fibra. Por mais que a maioria de nós se revolte contra isso.

Como disse ainda ontem a alguém, as coisas estão um pouco fora de lugar. É como voltar para casa depois de vinte dias na praia e descobrir que o sofá está mais perto da janela, que há um vaso desconhecido em cima do piano, que as paredes estão brancas quando antes eram gelo. É claro, é a sua casa, as contas acumuladas na caixa de correio estão todas no seu nome e o cachorro abana o rabo.

É estranho, mas estou em casa, não há dúvidas. Não é a minha única casa, mas continua sendo a favorita.

 


III

28 de fevereiro de 1999


A uma pedrada bem dada daqui estão as torres barrocas da igreja de São Miguel, cujos sinos acabaram de bater as sete. A varanda do meu apartamento está em um nível ligeiramente mais alto que elas e o prédio do outro lado da rua não me deixa ver o resto da igreja, e muito menos o largo onde sei que há dois cafés com mesas para fora que agora devem estar apinhados. O único que se avista daqui são o telhado e as torres. A esta hora, com o céu já quase escuro, a igreja está toda iluminada e vê-se o topo do buriti solitário plantado nem no centro do largo. No alto, aparentemente bem em cima do Barreiro lá do outro lado do Tejo, a lua refletida nas águas negras aponta para cá uma faixa de luz que parece entrar pelo apartamento adentro. Com as luzes apagadas, as portas da varanda abertas e o concerto pra violoncelo do Vivaldi tocando bem baixinho, o vento frio traz aquele que é para mim o mais belo dos sons: o burburinho de vozes humanas acumuladas, com risos, discussões, um ou dois rádios ligados e crianças, dúzias delas, aqui embaixo no largo em frente à minha casa, nos becos e nas vielas que descem para São João da Praça e para o Chafariz de Dentro, no Beco da Galé ali à direita, na rua que sobe ao miradouro de Santa Luzia, sob os arcos das Escadinhas de São Miguel, todas muito bem comportadinhas de banho tomado e à espera do jantar de domingo. Mais tarde, depois que a maioria tiver ido dormir, chega até aqui ao quarto andar o barulho das águas da fonte da esquina da minha rua com a rua que vai para o miradouro.

Os sons de Lisboa. Do alto do Castelo de São Jorge, de onde nas cidades comuns, as que estão neste mundo, se escutaria o som infernal das buzinas e dos motores, o que se ouve são vozes.

E britadeiras. Mas já me reconciliei com elas.

Da janela do banheiro, torcendo bem o pescoço, consigo quase imaginar uma ponta do castelo, e a Sé está bem atrás daquela casa amarela com jardim logo ali. Do alto e da esquerda, as igrejas de Santa Luzia, Santa Engrácia, São Vicente e São Miguel e o domo do Panteão são as únicas estruturas que se destacam da massa de casas. Os telhados e as vozes distanciam-se até o rio lá embaixo, e do outro lado, bem longe, está a linha de luzes da ponte Vasco da Gama e das cidades da outra margem, Barreiro, Cacilhas, Almada.

Tudo o que eu puder dizer sobre Alfama já terá sido dito antes. A tarefa é bem maior que eu. Mas da euforia que sinto ao andar por este emaranhado de vielas, praças, becos, escadas, largos e ruas comuns por onde os carros até passam, mas com cuidado, só eu posso falar. Se a alegria de viver for retratada, terá a cara destas pedras, das quitandas, mercearias, cafés, tascas, fontes, estátuas, restaurantes, limoeiros, açougues, peixarias, palmeiras, terraços, arcos e paredes azulejadas que se amontoam na encosta entre o castelo e o rio. Durante séculos, mouros e cristãos mataram-se pela posse dessas ruas, que só a tomada do castelo podia validar e garantir. Hoje, quando o direito de andar pelas ruas é garantido por outra morte mais sutil e sombria, quando as casas e as pessoas voltam-se para dentro e tentam proteger-se do império universal da miséria cercando a sua própria e tentando excluir dela os outros miseráveis, a pobreza aberta de Alfama — as cadeiras na porta de casa, a roupa pendurada em varais que dão para a rua, a sardinha assada na praça, os mexericos e os bares cheios de gente — é mais uma batalha surda, é a própria vida que resiste ao assédio do inimigo.

Não há riqueza maior que esta.

……………

Sábado à tarde fomos, a Maria Elisa, a Ana Luísa, a Natasha, o Filipe e eu, almoçar no Atira-te ao Rio, nas docas velhas e abandonadas de Cacilhas, do outro lado do Tejo. A dona é uma gaúcha de Cruz Alta. Comemos uma bela feijoada, precedida de caipirinha (e pão de queijo!!) e acompanhada de um tinto Pasmados muito honesto. À noite, a Maria Elisa e eu fizemos uma escala libatória em um lugar aqui ao lado no largo de São Martinho, e depois continuamos empenhados na nobre tarefa de engordar felizes: o João Roque Dias, a Clotilde Mesquita e a Isabel Monteiro levaram-nos ao Poço das Fontainhas, em Setúbal, onde nos dedicamos todos a dar cabo de uma montanha de douradas, linguados, massacotes e uma coisa parecida com calamares en su tinta que os portugueses chamam de outro nome, indecifrável. As senhoras beberam vinho branco, o João e eu fomos de cerveja: eu precisava trabalhar hoje e o João precisava guiar de volta pra Lisboa. De lá voltamos para a casa da Clotilde, onde ficamos até as três da manhã bebendo vinho do Porto, comendo trufas de chocolate e falando mal de todo o mundo. E rindo. Sem parar, de tudo e de todos, principalmente de nós próprios.

Não há riso melhor que este.

… … … …

A Maria Elisa foi-se embora hoje de manhã, de volta às lides tradutórias da gelada Filadélfia. Hoje à tarde, encontrei-me com a senhora dona Fernanda, funcionária da pensão onde ela ficou, que me disse: “Já estou com saudade da menina Elisa”. A senhora dona Fernanda é uma sábia senhora. De saudades estão cheios todos os meus dias.

Amanhã, almoço no Cacilheiro, para curtir sozinho uma saudade que brilha mais que as outras. 

 


IV

14 de março de 1999

 

O hábito é uma coisa terrível.

Eu estava fazendo tudo errado. Desde a minha última vez aqui, há mais de vinte anos, acostumei-me a pensar que Alfama = Mouraria = Martim Moniz. Portanto, saía de casa, descia as escadas da rua da Adiça até a rua de São João da Praça, andava até a Sé, cruzava o largo da Sé na diagonal até a rua das Pedras Negras, ia até o fim dela, entrava à direita e subia e descia a rua da Madalena, passava em frente ao hotel Lisboa/Tejo, atravessava o Martim Moniz inteiro até a boca da estação do metrô, e pronto, sentava-me com um bom livro até chegar a Entrecampos. Depois fazia tudo ao contrário pra voltar pra casa.

Hoje descobri que não é bem assim. Primeiro, a melhor estação pra mim, perto do trabalho, é a de Alvalade, mas isto é um detalhe. O importante é que, por falta de coisa melhor pra fazer, na volta resolvi descer na estação Baixa/Chiado e andar um pouco pela Baixa. Saio da estação e o que vejo bem à minha frente? O castelo de S. Jorge. Ora então, pensei eu, se eu for por aqui pela rua da Vitória até a rua dos Fanqueiros, entrar à direita até a rua da Conceição…

Dito e feito, e bem feito foi. Na rua da Vitória, pra começar, topei com um quarteto de cordas tocando Haydn (falta uma letra aí, não falta?) e com uma estátua viva. Depois, a Baixa é sempre um lugar agradável, apesar das ruas retas e dos edifícios tooodos da mesma altura. A única coisa mais ou menos parecida que eu conheço é aquela parte de S. Paulo nas vizinhanças da Barão de Itapetininga: calçadão, comércio de roupas, sapatos, restaurantes, bares, livrarias, despachantes, escritórios. Mas hoje era domingo e, ao contrário do centrão de São Paulo, as ruas estavam cheias de gente passeando. E qual a loja da Barão que anuncia “Lanches Cerveja Neve Fructas de Exportação” com esta ortographia de começo de século e com as letras *entalhadas na pedra* da estrutura do prédio? E claro, por toda parte estão os azulejos, verdelejos, amarelejos…

A rua dos Fanqueiros já é a periferia da Baixa. Parece-se mais com a Lapa, no Rio, e com absolutamente nada em Sampa. Mesmo tipo de comércio, mas um pouco mais acanhado, e quem estava andando por ali estava de passagem, como eu. Se for reto por ela, acabo no Terreiro do Paço e, como me ensinaram, nas barcas pra Cacilhas. Mas é na rua da Conceição, duas quadras abaixo e três antes do Terreiro do Paço, que começa a subida para as minhas bandas. Uma quadra até a minha velha conhecida, a rua da Madalena; contorno uma igreja que, pelo nome da rua, deve ser a de N. Sra. da Conceição e chego à rua de Sto. António da Sé. Aquela igreja logo ali deve ser, é claro, a de Sto. António da Sé. A igreja deve ser do século XVIII ou mesmo XIX, pós-terremoto em todo caso, e forma em ângulo reto com um prédio de três andares mais ou menos da mesma idade uma pracinha bastante agradável, com uma estátua em bronze modernosa de Sto. António, bem desagradável. Por uma nesga por cima do museu Antoniano, ao lado da igreja, avista-se a parede de azulejos mais multicoloreja que já vi em Lisboa: pavões e outros pássaros mil, árvores, frutas, uma profusão de cores que faz os bandos de turistas alemães pararem, extasiados. E eu ali com eles. Atrás da igreja de Sto. António estão os torreões (não há outra palavra: até ameias têm) românicos da Sé de Lisboa. Passando à direita dela enveredo pelas Cruzes da Sé, que vão ladeando o paredão do que parece ser o quintal da igreja: não sei o que há lá dentro. Parei para imaginar o que esconderiam aqueles paredões de pedra de trinta metros de altura com ameias no alto e limoeiros embaixo, na calçada, e ouvi, sem a menor sombra de dúvida, Haydn de novo, O esca viatorum, vindo lá de dentro da Sé. Entrei, é claro (ainda bem que não havia lá ninguém conhecido pra me ver entrando todo respeitoso, até o sinal da cruz fiz diante do altar — não gosto de desafiar as crenças alheias. Se me tivessem visto, lá se ia a minha reputação de ateu renitente). Assisti à missa até quase o fim e saí de fininho antes da comunhão, teria sido um abuso eu filar uma hóstia.

Depois de começar no beco da Caridade, as Cruzes da Sé terminam no beco do Quebra-Costas, e é onde começa o meu bairro, junto com a rua de São João da Praça. É impressionante: a qualidade do ar muda. Alfama parece fechar-se sobre si mesma e abrir-se ao mesmo tempo. O largo é amplo, mas amplo na medida do bairro, com talvez oito metros de parte a parte, e dele só saem becos e vielas. Mas os meus olhos emprestam-lhe cores mais vivas, luzes mais brilhantes, vozes mais cristalinas. No espaço de uns sessenta metros há duas mercearias, dois armazéns, uma quitanda, uma papelaria, dois açougues, quatro restaurantes, dois cafés, três bares e uma adega. E ainda acham espaço para residências e becos, vários becos. Um deles, o do Marquês de Angeja, tem dezoito degraus de pedra centenária que levam a uma parede. Nem uma portazinha se abre sobre ele. Um pouco mais adiante está a adega do genro do Sr. António e é pra lá que vou. Já cheguei em casa. Um bom sanduíche de presunto de Chaves com uma garrafinha minúscula de cerveja Sagres sentado em um barril de vinho e ouvindo Benfica X Boavista e depois é só subir escadas sem parar até chegar aqui no alto de onde vos escrevo.

Quando entrei em casa, São Miguel batia as oito. De manhã, às sete, é ele quem me acorda, mas eu durmo de novo. Domingo que vem, para agradecer os serviços prestados, vou à missa na igreja dele. Mas fiquem sossegados, saio antes da hora da hóstia. 

 


V

8 de maio de 1999


Daqui do alto, vejo o mundo que quero. Daqui do alto, a vida de Lisboa é feita de bandos de ginasianos italianos passeando de braços dados, de senhoras conversando de uma varanda para outra, do brilhante Tejo azul ao fundo, do cheiro de sardinha assada em braseiros nas calçadas e nos terraços, da Sarah Brightman cantando “Lascia ch’io pianga” e do Chico Buarque do vizinho francês do andar de baixo, do cacilheiro que vai, do cacilheiro que volta, do amontoado de telhados, de paredes brancas e janelas multicoloridas subindo até a igreja de Santa Engrácia, do verde das árvores espalhadas e da parreira que cobre o fim da rua da Adiça, dos limoeiros e laranjeiras das escadinhas de São Miguel, das vozes da criançada solta nas ruas, da promessa de mangerico nas festas dos santos populares em junho, do som de cascata longínqua do tempo que passa, do oceano azul do céu que a tudo cobre e abençoa.

Mas nem tudo são gerânios nos balcões, caberia dizer. Ao contrário da intimidade fácil da Lista ou do Rio de Janeiro, da confiança desconfiada de São Paulo e da “família instantânea” de Minas e Goiás, Lisboa fecha-se ao estrangeiro. Ou melhor, a cidade, em si, abre-se aos poucos, revela-se a cada nova viela, estende-se com mistérios de virgem cansada nos lençóis brancos dos seus vales sucessivos. Mas os lisboetas, embora em bem menor medida que os parisienses, por exemplo, não se entregam facilmente. Andando pelas ruas do bairro, parece que estou aqui há anos. Nos cafés que freqüento, entro, cumprimento e sou servido, quase sem precisar pedir, já sabem o que quero: café e cigarros na adega, café e pastel de nata na pastelaria. O Filipe dono da mercearia sabe quem eu sou, a Tininha me convida para ir ouvir fado no restaurante dela aos sábados à tarde quando me encontra na rua, a florista da esquina me chama para dizer que os crisântemos dela combinam com o vaso que me viu comprar nos indianos da rua de São Miguel. Por toda a parte encontro sorrisos: lá vem o brasileiro que se mudou para a casa do sr. António Augusto. Mas tudo isto são relações assim, digamos, comerciais. Ao fim de três meses aqui, continuo jantando sozinho quase todos os dias.

Não que isto me incomode mais que o devido, é sempre bom ser forçado a pensar na vida de vez em quando. Descobri que gosto de chegar à minha casa, fazer um chá e ir olhar a vista, escrever, ler, fazer planos mirabolantes para trazer meus filhos para cá, pensar no trabalho, ter saudade. Mas se não fosse pela recepção calorosa da nossa listeira Clotilde Mesquita, do João Roque Dias e da Isabel Monteiro, aos quais sinto que nunca agradeci devidamente, e de alguns colegas da EMTI, os lisboetas de hoje ainda seriam um mistério completo para mim.

Depois da bebedeira de vida pública do 25 de abril, a ordem do dia é poupar, em tudo. Naqueles tempos, não conseguia ter uma briguinha civilizada com a minha mulher na rua sem que imediatamente não se alinhassem dez pessoas de cada lado, argumentando e dando razão a mim ou a ela: quando a propriedade é atacada nas ruas por todos, caem todas as barreiras, tudo é público, nada mais é privado. Derrotado o público, o privado volta redobrado: a nova geração poupa, trabalha, paga impostos, mora em casa própria antes de completar trinta anos. Os bancos proliferam, os automóveis empilham-se nas calçadas, as intimidades protegem-se.

Mas eu sei do que Lisboa e os lisboetas são capazes, quando estão à solta. Daqui do alto do meu posto de vigia entre o castelo e o rio, olho e vejo a cidade que conheço e amo, ouço nas vozes que me chegam os mesmos anseios que os meus, e sei que o que quero vai sair destas ruas.

Luis Nassif

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