Drogas e Neoliberalismo no filme “2033”

 

A ficção científica mexicana “2033” (2009) é o sintoma do mal estar-estar de um país arrasado pela violência do narcotráfico e pelo desastre econômico após anos de políticas neoliberais.  E surpreende ao retratar a religião não como o ópio mas como instrumento de resistência e libertação.

Embora carregada de clichês das sci-fi norte-americanas, a ficção científica mexicana “2033”, desempenha o importante papel de ser o contraponto crítico de uma época. Se no seminal neoliberalismo da década de 80 de Margareth Thatcher e Ronald Reagan tivemos filmes como “Robocop” (1987 – ambientado em uma Detroit onde o Departamento de Polícia era privatizado pela empresa OCP criando um sistema político corrupto envolvendo um cartel de drogas), no filme “2033” temos uma narrativa em que o México vive os resultados da política neoliberal onde o Estado foi reduzido a sua forma fascista (repressiva e policial) e as grandes corporações bancam um apartheid sócio-econômico e o narcotráfico.

Ao lado disso o filme aborda o tema da Religião. Se nas sci-fi distópicas como “O Livro de Eli” (The Book of Eli, 2010 – já analisado nesse blog, veja links abaixo) a religião é apresentada como o “ópio” do povo nas mãos dos poderosos, no filme mexicano ela desempenha o surpreendente papel de resistência e libertação. Isso porque no sistema fascista pós-neoliberal o ópio ideológico passam a ser as drogas produzidas por uma poderosa corporação farmacêutica.

O filme “2033” é a estreia do diretor Francisco Laresgoiti, fundador da produtora La Casa de Cine e conhecido como diretor de vídeos publicitários, curtas e vídeos experimentais.  A narrativa se passa na Cidade do México de 2003, agora conhecida como Villa Paraíso. Um Estado convertido em mero aparelho policial e repressivo controla a sociedade, bancado por corporações de telecomunicações, farmacêuticas, energia e Cryo-pausa (onde intelectuais, cientistas e políticos são guardados em armazéns congelados para que suas mentes sejam reprogramadas para posteriormente serem úteis aos sistema).

O enorme desenvolvimento tecnológico apenas fez aprofundar a divisão social: nos subúrbios vivem os pobres que são caçados por esporte pelos ricos como fossem animais. Ao mesmo tempo, os cidadãos são “pacificados” pela bebida viciante chamada “pactia” cujo principio ativo é uma droga chamada “Tecpanol” produzida pela corporação farmacêutica Phaarmax.  Dessa forma, temos um retrato distópico: enquanto os cidadãos são oprimidos quimicamente, os pobres o são pela miséria e violência (uma interpretação do México atual?).

O protagonista é Pablo (Claudio Lafarga), um jovem profissional do mercado financeiro, arrogante e submerso em um mundo de luxo, drogas e álcool. Ele terá sua vida transformada ao conhecer um sacerdote misterioso conhecido como “Padre Miguel” (Marco Antonio Treviño) que mostrará para ele a verdade.

Padre Miguel lidera os “fanáticos”, “religiosos” ou “crentes”. A autonomia eclesiática foi abolida e a prática religiosa é reprimida. Juntos formam um grupo de resistência para derrubar o regime.

Fármaco-política versus Religião

O diretor Laresgoiti afirma que o filme “2033” pretende ser “uma visão real do que pode acontecer em meu país onde persistem os excessos no âmbito econômico, político e social”.  Sabemos que as consequência das experiências neoliberais no México desde a incorporação do país ao Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte) em 1992 têm sido nefastas: liquidação das empresas públicas por meio de privatizações, sucateamento do Estado e crescimento da pobreza com a ampliação das indústrias “maquiladoras” (industrias onde processo industrial ou de serviço é destinado à transformação, elaboração ou reparação de mercadorias vindas de fora do país, importadas temporariamente para sua exportação posterior).

O resultado final desse “estado mínimo” é o crescimento endêmico do narcotráfico que se utiliza da corrupção de um Estado pauperizado para servir de rota que abastece o mercado do vizinho EUA (ainda mais facilitado pelas desérticas fronteiras entre os dois países).

Embora o filme “2033” nos faça lembrar do clássico “1984”, nesse filme o Estado não segue a linha totalitária do “Big Brother” de Orwell: aqui, o Estado privatizou as funções de manipulação ideológica através da Pharmaax e limitou-se à função de repressão física. A bebida Pactia dispensa um Estado que imponha o medo através de dispositivos de vigilância. Todos são “pacificados” quimicamente e seguem a suas vidas obedientes, como zumbis produtivos (o lema de Villa Paraíso é “Produza, Consuma e Seja Feliz”).

Em postagem anterior (veja links abaixo) cogitamos a existência de uma fármaco-política com a banalização do consumo de antidepressivos impulsionado pelo lobby midiático da indústria farmacêutica.

Nesse contexto a religião passa a ser dispensável e indesejável para o Estado por se tornar a forma de identidade das massas excluídas nos guetos dos subúrbios. No filme “2033” a religião parece retornar às próprias origens do Cristianismo como grupo subversivo de resistência ao império romano. Sabemos que o Cristianismo surge nas tensões sociais na Palestina sob o jugo dos romanos em 64 A.C. As mensagens de amor ao próximo, perdão, compaixão e desapego ao materialismo trazidas por Jesus ameaçavam o domínio romano (que nunca fora completo na Palestina).

Na narrativa de “2033” o líder “Padre Miguel” encarna essa natureza progressista e, porque não dizer, gnóstica da religião: ir além da consolação ao propor um novo paradigma ético e moral que desafie uma ordem existente ao nos fazer despertar para a possibilidade de um outro mundo.

Dessa maneira, o filme se enquadra nas distopias pós-modernas: o futuro é representado não como algo diverso, mas como um desdobramento ou potencialização das tendências do presente: Neoliberalismo, privatização do Estado e a dependência fármaco-química.

É crucial em “2033” como a catarse religiosa é substituída pela catarse química como uma projeção dos tempos atuais. No filme apresenta como a Phaarmax, sob a aparência de ser um centro de medicina para altruísticos estudos da anatomia humana, na verdade pesquisam os mecanismos neuronais que produzem o fenômeno da consciência para posterior intervenção química (qualquer semelhança com a agenda neurocientífica atual não será mera coincidência). Dessa maneira, a religião como instrumento ideológico fica dispensável. O que liberta a catarse religiosa para o seu gnóstico papel: o de despertar.

 

 

Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador