O trem e o pé de laranja lima, por José de Abreu

O TREM E O PÉ DE LARANJA LIMA

José de Abreu

No final década de 50, na minha natal Santa Rita do Passa Quatro-SP, uma das maiores e arriscadas diversões da molecada era pegar o trem de bitola estreita, com locomotiva à vapor, que ligava minha cidade ao mundo, com destino à Usina Vassununga de Açucar e Álcool. Numa subida bem íngreme, onde a força do vapor era suficiente apenas para fazer o trem se arrastar morro acima, saltávamos, corríamos feito loucos por um caminho demarcado por pés de erva-cidreira que margeava os trilhos e esperávamos, exaustos, a chegada do bicho. Subíamos de volta ao trem segundos antes da chegada no topo da montanha, a partir de onde, pela facilidade do terreno, ele voltava à velocidade normal, uns 5 ou 10km/h.

Um dia veio a terrível notícia de que o ramal de bitola estreita seria desativado. Logo em seguida também o de bitola larga que ia de Porto Ferreira para a capital: os ônibus haviam chegado, assim como o asfalto, junto com JK.

Ainda peguei, alguns anos depois, o noturno de São Paulo para Ourinhos indo pra fazenda de um tio no Paraná, com restaurante, cabine e leito, assim como o que fazia Rio-São Paulo, um dos últimos a resistir ao domínio do asfalto.

Os outros contatos com o trem vieram mais tarde através da literatura, de Bandeira do “café com pão” a Tolstoi, e pela música de VillaLobos e Milton e seu clube de mineiros das esquinas da vida. Aliás o trem tem tudo a ver com Minas, a ponto da palavra ter seu significado ampliado na expressão “ô trem bão, sô!”. No sul, meus amigos Kleiton e Kledir estouraram com Maria Fumaça numa deliciosa viagem musical. De trem.

Pois agora, tal qual  Anna Karenina, eis que o “Portuga” do filme “Meu Pé de Laranja Lima”, (adaptação de Marcos Bernstein e Melanie Dimantas do romance de José Mauro de Vasconcelos)  é atropelado tal qual a personagem do clássico russo. E quase como num suicídio: com seu Citroen 11-Legère, Traction Avant, Portuga adorava disputar com o trem quem cruzava primeiro uma “passagem de nível”. Um dia o trem foi mais “ligeiro”, com o perdão do trocadilho infame e equivocado, e lá se foi o Portuga. ( O tal carrinho, “que se alguém conseguisse capotar ganharia um novo”, como se dizia na época, era por muitos chamados de “ligeirinho”, apesar do significado da palavra “légère” ser “leve”.)

Reassistindo ao filme agora, no lançamento, a presença do trem se tornou ainda mais forte e reativou ainda mais minhas memórias da infância. Hoje a estação da Companhia Paulista de Estrada de Ferro em Santa Rita se tornou um Centro Cultural como em muitas cidades do Estado de São Paulo e de outros Estados. Mais precisamente o Museu Zequinha de Abreu, meu honônimo, embora sem parentesco, autor de uma das músicas mais gravadas de todos os tempos, Tico Tico no Fubá.

O filme “Meu Pé de Laranja Lima” se passa em Minas, fala da infância do protagonista Zezé, de seus medos, sofrimentos e sonhos, e o trem é um personagem marcante.

Trem, para os brasileiros da minha geração lembra infância, saudades, tempos vividos. O trem no Brasil nao tem presente, só passado. E revendo o filme percebi o tamanho do equivoco de um dos personagens que mais gostei de fazer no teatro e no cinema: Juscelino Kubisticheck de Oliveira. Um mineiro. Ô trem esquisito, sô!

José de Abreu, ator, produtor e diretor 

Luis Nassif

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