Luciano Hortencio
Música e literatura fazem parte do meu dia a dia.
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Pai, afasta de mim esse CALE-SE!

CÁLICE – CALE-SE

Por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello

Este é mais um exemplo de letra contra a censura, predominante entre nossos compositores à época (1973) em que a canção foi criada. Na verdade, “Cálice” destinava-se a um grande evento promovido pela PolyGram, que reuniria em duplas os maiores nomes de seu elenco, e no qual deveria ser cantada por Gilberto Gil e Chico Buarque.

No livro Todas as letras, Gil narra em detalhes a história da canção, a começar pelo encontro inicial dos dois no apartamento em que Chico morava, na Lagoa Rodrigo de Freitas, ocasião em que lhe mostrou os versos que fizera na véspera, uma sexta-feira da Paixão. Tratava-se do refrão (“Pai, afasta de mim este cálice / de vinho tinto de sangue”), uma óbvia alusão à agonia de Jesus no Calvário, cuja ambiguidade (cálice / cale-se) foi imediatamente percebida por Chico.

Gil levara-lhe ainda a primeira estrofe (“Como beber dessa bebida amarga / tragar a dor, engolir a labuta / mesmo calada a boca, resta o peito / silêncio na cidade não se escuta / de que vale ser filho da santa / melhor seria ser filho da outra…”), lembrando a “bebida amarga”, uma bebida italiana chamada Fernet, que o dono da casa muito apreciava e sempre lhe oferecia, enquanto “o silêncio na cidade não se escuta” significava que “no barulho da cidade não é possível escutar o silêncio”, ou “não adianta querer o silêncio porque não há silêncio”, ou seja, metaforicamente: “não há censura, a censura é uma quimera”, pois “mesmo calada a boca, resta o peito, resta a cuca”. Deste e mais outro encontro, dias depois, saíram a melodia e as demais estrofes, quatro no total, sendo a primeira e a terceira (“De muito gorda a porca já não anda…”) de Gil, a segunda (“Como é difícil acordar calado…”) e a quarta (“Talvez o mundo não seja pequeno…”) de Chico.

No dia do show, quando os dois começaram a cantar “Cálice” desligaram o microfone. “Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la”, conclui Gil. Irritadíssimo com o microfone desligado, Chico tentava outro mais próximo, que era cortado em seguida, e assim, numa cena tragicômica, foram todos sendo “calados”, impedindo-o de cantar “Cálice” até o fim.

Liberada cinco anos depois, a canção foi incluída no elepê anual de Chico, com ele declarando que aquele não era o tipo de música que compunha na época (estava trabalhando no repertório de “Ópera do Malandro”), mas teria que ser registrado, pois sua tardia liberação (juntamente com “Apesar de Você” e “Tanto Mar”) não pagava o prejuízo da proibição. Na gravação, as estrofes de Gilberto Gil, que estava trocando a PolyGram pela WEA, são interpretadas por Milton Nascimento, fazendo o coro o MPB 4, em dramático arranjo de Magro. 

Fonte: Livro 85 anos de Música Brasileira Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34http://www.chicobuarque.com.br/letras/notas/n_zuza_calice.htm

 

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça 

 
 
Luciano Hortencio

Música e literatura fazem parte do meu dia a dia.

30 Comentários

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      1. Luciano, eu é que tenho que

        Luciano, eu é que tenho que agradecer o post. Os comentários são elucidativos e didáticos. Só você mesmo. Abração. 

         

  1. Como bem disse o Chico…

    Muitos dos contemporâneos do fantástico Chico na época, não entenderam a letra desta música,verdadeiro hino e grito  contra a falta de liberdade de expressão e de criação, que parabolicamente, remetia as palavras, para quem soubesse entende-las e traduzi-las, pois eram o grito dos perseguidos, que nem podiam criar sem censura.

    O Cálice de vinho tinto “de sangue” era a tradução do “Cale-se” exigido pelos censores, e o “Filho da outra”expressava a vontade reprimida de mandar os governantes, para os úteros das Puta que os Parira, e torcer para que eles morresem ao nascer, e que as putas de suas mães, morressem de parto, que nada de tão ruim, aconteceria ao país, que eles consideravam, como suas cocheiras, aonde curtiam seus cavalos, estes mesmos cavalos, que nos pisoteavam diariamente . 

    Desculpe o desabafo, é que “Hoje eu num tô bão”

  2. Manifesteto pela liberdade

    Ha alguns anos, o museu da “Cidade da Musica” realizou uma exposição sobre a musica brasileira. Dentre as varias épocas, havia destaque para a musica de cunho politico. Lembro que uma amiga francesa ao ouvir Calice pela primeira vez ficou encantada com o jogo de palavras, versos em alexandrino. Percebi, então, a força dessa letra, que transcende a barreira da lingua e que é marca indelevel da historia da MPB e do Pais. 

  3. Chico Buarque: um grande brasileiro

    Nessa época ele não falava fino com a Ditadura Militar. Ele enganava os ditadores de plantão.

    Parabéns Chico Buarque, por ainda manter a coerência.

    Neste dia 31 de março e 1° de abril, devemos lembrar a escuridão que a Ditadura Militar trouxe para o povo brasileiro. Devemos rejeitar a volta da Ditadura de 1964.

  4. Até tu Chico Brutus?

    Chico Buarque e Edu Lobo compuseram, em 1984, o ano da inauguração do Sambódromo, a canção “Dr. Getúlio”.

    Os autores elogiam o ex-presidente que, embora tenha sido democraticamente eleito em 1950, havia governado ininterruptamente de 1930 a 1945.

    O Estado Novo representou o auge da repressão ditatorial varguista, com mortes de inimigos políticos, crescimento econômico e nacionalismo exaltado.

    A charge é de Chico Caruso

    Na canção de Chico e Edu Lobo, que a cantora Simone se prontificou a gravar, em nenhum momento aparece a palavra “ditadura”, e catalisou-se a imagem de um líder benevolente:

     

    Foi

    O chefe mais amado da nação

    Desde o sucesso da Revolução

    Liderando os liberais

     

    Foi

    O pai dos mais humildes brasileiros

    Lutando contra grupos financeiros

    E altos interesses internacionais

     

    Deu

    Início a um tempo de transformações

    Guiado pelo anseio de justiça

    E de liberdade social

     

    E

    Depois de compelido a se afastar

    Voltou pelos braços do povo

    Em campanha triunfal

    Abram alas que Gegê vai passar

    Olha a evolução da história

    Abram alas pra Gegê desfilar

    Na memória popular

     

    Foi

    O chefe mais amado da nação

    A nós ele entregou seu coração

    Que não largaremos mais

     

    Não

    Pois nossos corações hão de ser nossos

    A terra, o nosso sangue, os nossos poços

    O petróleo é nosso, os nossos carnavais

     

    Sim,

    Puniu os traidores com o perdão

    E encheu de brios todo nosso povo

    Povo que a ninguém será servil

     

    E

    Partindo nos deixou uma lição

    A Pátria, afinal, ficar livre

    Ou morrer pelo Brasil.

    [video:http://youtu.be/87jYpSWBwbE%5D

    http://www.uss.br

  5. Esquisito…

    Esquisito ler algumas informações sobre “Cálice”, de Chico e Gilberto Gil. Li uma entrevista do segundo, explicando que ele e Chico teriam de fazer uma canção juntos por questões contratuais. Estavam na Semana Santa e Gil compôs os versos “Pai, afasta de mim este cálice” e os mostrou para o Chico. Na mesma hora, Chico sapecou alguns versos, que segundo Gil, transformava o “Cálice” em um “Cale-se”.  Gil não gostou da história, afastou-se e deixou que Chico compusesse o resto. Gil já tinha se exilado em Londres e não gostara nem um pouco do exílio, não queria meter-se em nova roubada. Claro, o verso original era “Filho da Puta”, para rimar com labuta. Como algo assim jamais seria liberado, a palavra mais parecida para rimar era “outra”. O Jornal da Tarde, dos Mesquitas, entrevistou Gil e publicou os versos malandramente: “Música de Gil e Chico foi censurada por causa desta letra”: E publicou toda a letra, que havia sido proibida pela censura da Ditadura Militar.

  6. Pitty…

    Bem, sendo atento ouvinte da música brasileira de todos os matizes, trago aqui a contribuição da recente geração roqueira do Brasil, nesse caso da Bahia, para o clássico antiditatorial de Gil e Chico: Pitty também gravou “Cálice”, e muito bem. Muitas e muitos jovens conheceram essa canção não na versão original, mas nessa aqui…

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=lcj6Rb4-G80%5D

  7. E lembrar que ouvi pela

    E lembrar que ouvi pela primeira vez com o Gil, sentdo no “anfiteatro da Qímica(UFMG) lá pelos idosde …, ele simplesmente me tira uma folha datilografada/escrita do bolso e nos oferece em primeira mão.

    Em tempo, um show quase intimista que começou por volta de meio dia no velho ICEX e teve de mudar de lugar por causa das aulas que começavam às 13:30.  E arrumamos novo lugar e, salve engano, não havia trinta moleques. E ele ficou tocando até umas tres da tarde como se nada tivesse acontecido.

      1. Caro Luciano. Comprei esse LP

        Caro Luciano. Comprei esse LP logo após seu lançamento. Percebi, de imediato, sua importância dentro do cenário musical. É daqueles DEFINITIVOS. Ele tem, em grande parte, influência sobre minhas convulsões “músico-emocionais” diárias. Tô acostumado. 

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