Potência e poética na luta pela igualdade e liberdade
por Josias Pires
Há oito anos um grupo de professores, com a colaboração de estudantes do curso de Cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), realiza um festival de cinema documentário dos mais relevantes do país. O CachoeiraDoc é um festival pulsante, jovem, que se lança em lutas. Cinema da vida, do mundo, como afirma Amaranta Cesar, idealizadora e coordenadora do festival. Segue aqui o trecho final de longa e bela entrevista: “É necessário não separar forma e conteúdo. Não hierarquizar forma e conteúdo. A nossa curadoria é um pouco isso. Então interessam filmes que são mais investigadores do formalismo e outros mais interessados na comunicação, no conteúdo.
Interessa é que esses filmes estejam juntos porque o propósito é evitar a hierarquização. É reconhecer que tem gestos que são comunicativos e que portanto – e não é “apesar de”, é “portanto” – inventam formas. Se eu quero me comunicar, eu preciso inventar uma forma . Se eu preciso inventar uma imagem em um campo de conflito, eu preciso inventar uma forma pra fazer essa imagem. O risco da luta institui um desafio formal. Os temas estão em pauta, estão na vida. A gente está num momento em que a gente não sabe explicar as coisas. As coisas precisam ser explicadas. O principal da curadoria é que as coisas dialoguem. E não criar espaços restringidos. Não me interessa criar uma mostra ou um espaço para os filmes das minorias. Ou isso atravessa tudo, ou não me interessa”.
Para ler a entrevista completa de Amaranta Cesar ao repórter Chico Ludermir, da Revista Carda Mono: Aqui/. Do meu ponto de vista, quero defender que o Cachoeira Doc é movido pela energia transformadora que moveu também as três décadas da Jornada Internacional de Cinema da Bahia, de curtas e documentários, filmes do Brasil, da América Latina, do Caribe, capitaneada por Guido Araújo por mais de 30 anos. Foram muitos os frutos políticos e estéticos da Jornada. Cito um: a Associação Brasileira de Documentaristas (ABD) nasceu numa Jornada da Bahia. Aqui desembarcaram centenas de documentaristas de todo o mundo, dentre eles Joris Ivens, só para citar um nome dos mais significativos da história do documentário mundial. Dentro das possibilidades atuais, o festival de Cachoeira está cumprindo este papel, relevante papel cultural, estético e político na cena do documentário, há oito anos incluindo vários cinemas, instigantes, experimentais, e o cinema militante, que faz a poética e a potência da imagem brotarem do insurgente.
Em meio às várias crises que atravessam o ser brasileiro na atual conjuntura está, de alguma maneira, a presença avassaladora da imagem que constrói, seleciona e naturaliza narrativas do cotidiano e da existência nacional. Domestica parte significativa do imaginário. De tal modo, que o imaginário elaborado na Rede Globo e nas suas variantes, desde a comunicação grotesca, é recebido com toda a tolerância, bem-querer e, no limite, indiferença pela maioria da população brasileira. Desarmada para desconstruir o jogo ideológico comandado pela inteligência do status quo, brasileirxs inquietxs respiram e trabalham em busca de alternativas.
Na guerra simbólica que dialetiza a luta de classes, em muitas dimensões, há que se refletir sobre o aspecto estritamente estético-político da imagem, da sua potência instauradora, performática, e da sua poética disparada pela fantasia, imaginação, como sempre ocorreu em todas as épocas, pois o reino das imagens vem de longas eras. Veja-se o surpreendente caso do barroco como produção do poder constituído ante uma conjuntura revolucionária; e, fazendo uma elipse que poderia espantar a narrativa histórica, hoje navegamos entre imagens coercitivas, para controlar e conformar a contra-insurgência, disseminando ideologia capitalista strictu sensu, e toda a carga individualista, ideologia do empreendedor, e do proprietário. Ante o imaginário hegemônico que busca esterilizar as pulsões transformadoras, experiências como a do CachoeiraDoc potencializam as imagens-lutas que tematizam os sentidos da Igualdade e da Liberdade.
A escolha de “Quilombo Rio dos Macacos” (Bahia, 2017, 120min) para a abertura da oitava edição do CachoeiraDoc evidencia a história recente de luta política eficaz em favor dos excluídos, luta vitoriosa, ainda que o processo continue em curso, e que foi articulada, apoiada em redes que ultrapassam, que vão além das diferenças que nos separam, que nos distinguem – de classe, de cor, de raça, de etnia, de gênero – diferenças que devem ser respeitadas e compreendidas, evidentemente, porém a luta política deve ir além das diferenças, o passo seguinte é dado nas lutas pela Igualdade e pela Liberdade, e nas imagens da luta em favor do “comum”.
Situando a questão brasileira em um cenário mais amplo, podemos tirar conclusões úteis percebendo como as desigualdades mergulharam os EUA em dois mundos inconciliáveis, como se lê neste comentário “A lógica predatória do lucro dos norte-americanos, por Ricardo Cavalcanti-Schiel“ e neste artigo “Os excluídos dos Eua”. O entendimento da Igualdade como condição indispensável para a Liberdade repõe os termos da luta política contemporânea. No Brasil a transição do lulismo para as próximas jornadas está sendo traumática e suaremos para rearticular referências que possam ajudar na catarse da tragédia diária da crueldade do estado atual do capitalismo, que se manifesta no próprio ar que respiramos como pontua o filósofo francês Alan Badiou: o “fascismo democrático” e a reinvencão do comunismo.
Quilombo Rio dos Macacos está atravessado por muitas dimensões, incide sobre e é expressão da fratura nacional. Particularmente a fratura da terra e do racismo. Depois de cinco séculos de latifúndio, as desigualdades brasileiras só fizeram aumentar. A urbanização do país foi rápida e os problemas do mundo rural cresceram na escala do agronegócio. Ao invés de reforma agrária, a nova república de 1988 continuou aumentando a concentração da propriedade da terra, expulsando índios, sem-terra e quilombolas de seus territórios, num processo voraz, como sempre foi e é cada vez mais marcado por atos violentos. Constituindo-se em um dos principais sustentáculos do modelo capitalista que nos aprisiona em sua tentativa de impor a “jaula de ferro”, ao lado do capital financeiro, o agronegócio foi alavancado, manteve e ampliou sua influencia em toda a sociedade, inclusive no Congresso Nacional, onde a bancada ruralista e seu poder vem sendo reiteradamente ressoado pelos meios hegemônicos criando a cena racista da assunção dos grandes proprietários sobre todos os sujeitos não-brancos, magistralmente mostrada em filmes exibidos no Cachoeira DOC, como Martírio, de Vincent Carelli. Castas reacionárias ocupam posições estratégicas em todos os negócios. No caso de Quilombo Rio dos Macacos o conflito se dá no interior do próprio Estado, entre setores privilegiados e setores excluídos. Com uma particularidade.
O registro audiovisual dos conflitos e negociações da luta quilombola ocorrida entre 2011 e 2017 revela como o movimento em favor de Rio dos Macacos se deu pela articulação de táticas e estratégias políticas insurgentes relacionadas ao múltiplo, ao diverso, tendo sido este movimento alimentado por extensa rede de solidariedade reunindo atores sociais das mais variadas procedências. Neste sentido, Rio dos Macacos prenuncia uma tática política eficiente, na medida em que logrou transcender as diferenças entre estudantes, movimentos sociais, profissionais, artistas, intelectuais, em torno do objetivo comum de garantir a terra e outros direitos básicos em favor dos quilombolas e, no limite, para todos os excluídos. A luta de Rio dos Macacos aponta para esta necessidade dramática de avançarmos respeitando as diferenças e apostando no sentido aglutinador contido nos princípios da luta pela Igualdade e pela Liberdade (por Josias Pires).
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Quilombo Rio dos Macacos
São movimentos como esses que poderão fazer mover-se alguma coisa neste momento. Alias a questão é: por quê as pessoas não estão protestando nas ruas contra “tudo isso que esta ai ?”