Poços de Caldas e o prefeito que destruía árvores

Quando Carlos Mosconi, do PSDB, lançou como candidato o funcionário da prefeitura, Sérgio Azevedo, não se imaginava o desastre que viria

Prefeito de Poços de Caldas de 1922 a 1925 João Benedicto de Araújo sumiu na história. Seu único feito foi cortar todas as árvores da rua Paraná, futura Assis Figueiredo. E Poços teve inúmeros grandes prefeitos, a começar de Francisco Escobar, que chegou a montar um jardim botânico e a estimular para que as casas tivessem espaços e jardins. Coube a ele o desenho da nova cidade, inclusive os espaços que depois viraram os mais belos jardins do país.

Assis Figueiredo comandou a fase áurea de Poços, com eventos que tornaram a cidade conhecida nacionalmente.

Os Ottoni deram dois prefeitos excepcionais, o segundo dos quais David Benedito Ottoni. Mesmo os Junqueira deram um prefeito, Haroldo Genofre Junqueira, que preparou um plano diretor campeão. Sem contar médicos ilustres, como dr. Martinho, Sebastião Pinheiro Chagas, José Augusto Villela.

Todos respeitavam a história, os símbolos de Poços. Quando o deputado Carlos Mosconi, do PSDB, lançou como candidato o funcionário da prefeitura, Sérgio Azevedo, não se imaginava o desastre que viria a seguir.

Desde os anos 70 há um trambolho na entrada da cidade, um trem sobre pilastras que jamais funcionou. Aí o prefeito revelou que seu sonho de toda a vida seria fazer o trenzinho funcionar. Poderia ser apenas um capricho, não fosse o fato de que significaria o corte de dezenas de árvores centenárias, ao longo da avenida João Pinheiro.

Contando com um promotor ausente, endossando todos seus abusos, Azevedo conseguiu cortar as árvores. Só foi interrompido quando representantes da sociedade civil recorreram ao Ministério Público Federal em Pouso Alegre. No meio de crimes ambientais, levantaram-se também licitações viciadas. E um juiz proibiu mais corte de árvores.

Agora, um vídeo que circula na cidade mostra os efeitos dos cortes de árvores.

Leia também:

Luis Nassif

121 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Índaí, ãinda num eram quatro hóras da manhãna quando Catarina acordou Jairirí.
    – Levanta lógo, Jarirí. A jienti tem una longa caminhada a vencer, mais de duas hóras e meia andando depressa e sem pará, indo o mais rápido possível. Vamos iguar cavalo brabo, deitando o cabelo de tanta velocidade.
    – Mas a jiente num vai tomar café da manhãna? Precisamos forrar o istômago, comer arguma coisa, senão nósis vai demorá maisi.
    Eu já preparei tudo, é só irmos pá cuzina e comer e sair.
    Entoncis, adispois de comerem e tumarem um café bem ajeitado, eiles partiram apressados. Adipois de andarem uns vinte minutos, perceram que arguma coisa tava siguindo eiles.
    – Vamos parar pra ver. Vamos esperar um pouquinho, pra discubrir quem nos segue, eu acho que sei quem é. Acho que é Cascatim.
    – Ieu tumém achano que é ele. Vou gritar e esperar pra que ele apareça.
    Maisi Cascatim num apareceu. Surgiu outra cousa.

  2. Índaí, ãinda num eram quatro hóras da manhãna quando Catarina acordou Jairirí.
    – Levanta lógo, Jarirí. A jienti tem una longa caminhada a vencer, mais de duas hóras e meia andando depressa e sem pará, indo o mais rápido possível. Vamos iguar cavalo brabo, deitando o cabelo de tanta velocidade.
    – Mas a jiente num vai tomar café da manhãna? Precisamos forrar o istômago, comer arguma coisa, senão nósis vai demorá maisi.
    Eu já preparei tudo, é só irmos pá cuzina e comer e sair.
    Entoncis, adispois de comerem e tumarem um café bem ajeitado, eiles partiram apressados. Adipois de andarem uns vinte minutos, perceram que arguma coisa tava siguindo eiles.
    – Vamos parar pra ver. Vamos esperar um pouquinho, pra discubrir quem nos segue, eu acho que sei quem é. Acho que é Cascatim.
    – Ieu tumém achano que é ele. Vou gritar e esperar pra que ele apareça.
    Maisi Cascatim num apareceu. Surgiu outra cousa.

    1. Eram quatro carroças grandes e uma gente muntada em cavalos grandes e mui bonitos.
      Ao nos verem, pararam e, de drentu da grande carroça, surgiu um homem grande e queimado do sol, que foi lógo priguntano:
      – Quem são ucêis? Didadonde é que ucêis estão vindo e praondi é que ucêis vão?

    2. Eram quatro carroças grandes e uma gente muntadas em cavalos grandes e mui bonitos.
      Ao nos verem, pararam e, de drentu da grande carroça, surgiu um homem grande e queimado do sol, que foi lógo priguntano:
      – Quem são ucêis? Didadonde é que ucêis estão vindo e a

    1. – Quem são ucêis? Didadonde é que ucêis estão vindo e pra donde ucêis vão?
      – Nózis istamos a caminho da ciudadi, temos arguns assuntos pra resolver lá.
      – E ucêis, se encaminham praonde?
      – Nózis tumẽm istamos indo pra ciudadi pra apresentar nuóssa arte lá. A gente apresenta nuóssas péças de teatro, de circo e outras cousas maisi. Se ucêis quiserem nózis pudemos dar carona prucêis. Aqui drentu das carroças tem dois lugares vagos.
      – Nózis queremos sim, a gente está cum muita pressa pra chegá lá.
      – Por favor, entoncis, entrem na nuóssa casa.
      Anssim qui entraram, Catarina e Jarirí ficaram encantados, tinha muita gente e cada um deles paricia vindo de um lugar diferente. Dava pra percebê qui tinham índios, ciganos e gente vinda de outros países, como um rapaz vermelho e louro qui, certamiente, num éra brasileiro, poisi priguntou argumas cousa preles qui não davam pra entender corrietamente. A única cousa qui compreendram é que ele era dinamarquês.

      1. Entoncis, Catarina e Jarirí ficaram mui contentes. E logo estariam falando com Rosarva, já qui o comboio estava galgando muito rápido. E foi indaí que Catarina cumesou um prosa interessante sobre a vida daquela gente:
        – Se não for intromissão na vida ducêis,, eu gustaria de sabê cumu ucêis se reuniram para essa aventura de corrê o mundo brasilero.
        Entoncis, um rapaz qui paricia num ter mais do que dezoito anos, cumessô a contar a história deles:
        – Nósis aqui, moça, arresorvemo abandoná a loucura pelo dinheiro. De tudo nózis cansamos, principarmente da vidinha muitio dura de trabaiá pra enricar os patrôes e viver feito cachorro amarrado na coleira. Nósis arresorvemo viver só pra nósis e para o povo explorado.

  3. – Sim, eu entendo e achu qui ucêis estão certos. Nózis aqui, eu, Catarina; e eile, Jarirí, temos una história paricida coa ducêis. Deixamos nuóssas vidas na ciudadi, adondi nósis íamos nos casá, e viemos morar aqui neste paraíso, de mãos dadas cum a bela natureza, vivendo nóssos dias cum aligria e ajudando-nos in tudo qui nósis precisamos. Jamais tivemos una briga, sequer una rusga. A jiente se intende e sentimos as mãos da natureza a acariciar a nuóssa alma.
    – Eu digo a ucêis qui o tudo e o todo deveriam ser anssim. Nas nuóssas viagens, nós passemos por lugaris quase exatamente cumu ucê descreveu. É isso qui nos mantém unidos. Sobre eisse lugar qui ucê falô, tem um senhor por nome Mestre Bódim?
    – Sim, e eile é o nuósso elo cum eise lugar. Que bom saber qui ucêis o conhecem!
    – Eile é um mestre mesmo. Curou dois di nózis qui istavam doentes. Nósis tínhamos compromissos e não pudemos ficar maisi qui dois dias, que foi o tempo nécessário para ele levantar os nossos acamados.

  4. Entoncis, o comboio ia cada vez mais ŕááṕíído e fazendo um barulhão cada veiz mais forte. De drentu de uma das carróças, Catarina e Jarirí chacoalhavam feito pedra bruta,,,,
    – Jarirí, eu num seio como eiles consegue viajar anssim, parecendu um trem destrambelhado.
    – Fica calma, Catarina. O importante é que, nesta rapidez, nózis vamo conseguir encontrar Rosarva antis que éla saia pro trabalhu. Eu tô muito ansioso pra conversá cum éila prá falar sobre a situação di Tuxo e o quanto ele se arrependeu pur tê-la traído.
    – Maisi, cuando a gente se encontrá cum éila, Jarirí, deixa qui eu falo, poisi uma mulher pressente o qui se passa no coração de outra.
    – Ié cérto o qui ucê falô. O que me preocupa é éla ter arranjado outro namorado.
    – Sim, isso pódi contar in desfavor di Tuxo.
    Indéstoncis, o comboio, enfim, chegô na ciudadi. E o líder do grupo, um homem alto, muito fórti, queimado do Sol e chamado Ranzé falou:
    – Nózis vamu levar ucêis inté o lugar em que queiram.
    – Nósis te agardecemos muito Ranzé, precisamos chegar depressa inté uma casa qui fica próxima do centro da ciudadi.
    – Entoncis, vamos lá!
    Quando chegaram, Catarina saiu depressa da carróça e foi correndo bater na porta

  5. A porta num abria, entoncis Catarina cumessô a gritar: ROSARVA! ROSARVA!, vem aqui, nósis istamos querendo falar com você.

    Mas não havia nenhum ruído vindo de drentu.

    – Acho qui éila tá durmino ãinda.
    – Maisi a mãe deila dévil di tá acordada. Continua gritando, Catarina. Ieu vou bater na porta cum força.
    Qual nada, ninguém aparecia. Tava tudo debaixo di um quiéto, o qui levou Catarina a ter uma ideia.
    – Eu já sei, Jarirí. Eu vou gritar cum tudas as mias fuórça que Tuxo acabou de morrer. Vamu ver o qui vai acontecer.

    – ROSARVA! TUXO MORREU! VAI SER INTERRADO DAQUI HÁ POUCO! NÓZIS VIEMOS TE DAR A NUTÍCIA.

    Entoncis, a porta se abriu cumu se fosse mágica, rangendo bem divagarinho, e Rosarva foi a p a r e c e n d o aos pouco, com olhos arregalados e com as pérnas tremendo feito vara verde.

  6. – Calma, Rosarva! Si sigura, muié! Eu mentí! Tuxo não morreu, maisi passô bém pérto. Eile foi barbaramente torturado, não morreu pur causa do tratamento de Mestre Bódim. Quando eile cunsiguia falá, só falava e gritava o teu nome, pedindo prucê ir lá porque quiria te ver pela úrtima veiz.
    – Maisi por quar mutivo ucêis num vieram antes?
    – A gente tava com receio de que ucê num iria, porque ucê trabaia e pudia ser qui ucê tivesse arranjado outro namorado.
    – Noncis, eu saí do sélviço e não tive mais namoro adispois de Tuxo.
    – Ucê pódi dizer o motivo?
    – É porque esse safado não me sai da cabeça. Às vezes eu não cunsigo dormir e nem comer dereito, de tanto pensar nele. Eu vou lá agóra mesmo! Entrem aqui, vou me trocar e fazer as malas.

  7. Entoncis, encuanto a mãe di Rosarva, dona Cremilda, passava um café, Rosarva chorava di tanta aligria e falava qui tinha di fazê as mala bem rápido, poisi num via a hóra di ver Tuxo. Eu vou tirá eile da cadeira de róódas num instante! Vou fazê muita massajem neile. E vai mesmo – brincou Jarirí! E todos caíram na risada, menos dona Cremilda.
    Índaí, adispois de pouco tempo, eiles já istavam prontos pá sair. Maisi Catarina estava preocupada: E se alguém maligno vêr a jienti!? Óia bem, nózis vamo corrê pirigo!
    – Ié verdadi, disse Jarirí. Nós vamos ter qui andá nos isgueirando pelas ruas. O qui ucê acha, Rosarva?
    – Ieu cunheço muitos becos daqui inté a mata. Tenhu cérteza qui ninguém vai inxergá a jiente.

  8. Entoncis, Jarirí ficou pensativo e teve uma ideia muito boa qui resórveria tudos os póbrema deiles, tanto di sigurança como também di tiempo di viagem.
    – Porque ucê tá tão pensativo, Jarirí? O qui ucê tá pranejando?
    – É simples, Catarina. Anssim qui a jiente chegá no cumeço da mata, nózis vamos depressa inté a margem do rio. Ali piérto, amarrada cum uma córda numa árvore grandi (um pé di jacarandá), tem uma canoa muito boa qui pertence a Tuxo. É a canoa qui eile usa pra péscá de veiz in quando e fica lá escondida.
    – Mutio bem, gritou Catarina! Nósis sai daqui i vamos pelos becos inté a mata e adispois pégamos a canoa e chegamos próximos da casa di Mestre Bódim em grande estilo.
    – Tua ideia é genial, Jarirí!
    – Me parece boa mesmo.

  9. Indaí, adispois di tudo pronto, eiles cumeçaram a aventura. Rosarva guiava o grupo, dizendo exatamente por onde eiles iriam entrar e sair. E anssim foi durante cerca de meia-hora, até que eles desembocaram na cara da mata.
    – Agora a jiente descansa um pouco – disse Catarina.
    – Sim – respondeu Jarirí – o perigo maior já passou. A árvore da canoa está perto. Tomara qui arguma chuva fórti não a tenha levado daqui. Faz uns trinta dias qui a vi, ela estava em muitio boas condições. Vamos próseguir.
    Entoncis, não demorô pra eiles encontrarem o jacarandá. Jarirí correu rápido e gritou:

    – ÉILA ESTÁ BEM, FORTE E BONITA.

    Maisi falta um detalhi importante: não estou conseguinto encontrar os remos. Vou subir no jacarandá, Tuxo déve tê-los escondido bem acima, nos cabelos altos e floridos deile.

    – ENCONTREI-OS. ESTÃO TRANÇADOS NOS GALHOS BEM ACIMA.

  10. Entoncis, cum os remos nas mãos di Jarirí, o sélviço tava pronto.

    – Agóra nózis vamo entrá na pele do rio e séguir navégano inté a casa de mestre Bódim. Tudos eiles de lá dévil di está préócupados cajiente, principarmiente Tuxo, qui num vê a hóra di reencontrá Rosarva.
    – E eu, Jarirí, num vejo a hóra di reencontrá eile, o amô di minha vida. Ieu tenhu célteza di qui eile tumém dévil di está nérvoso me ésperano, e cuando ele está anssim, cuméssa a falá sem pará.

    – Ié vérdadi, Rosarva. Faz tempo qui eile num pará di falá no teu nome. Ele acustumou a dizê qui o teu nome é o maisi bunito qui eile já ouviu na vida deile. Noutro dia dia, ele si deitou nu capim, ôiô pru céu e ficou répetindo: Rosarva, Rosarva, Rosarva… Cumu siria bão se ucê tivésse aqui du meu lado, oiandu o céu e vendo a passarinhada colorida passá.

  11. Entoncis, adispois di poco tiempo, Jarirí aportou nu caminho que conduzia inté a casa di mestre bódim. Adispois di puxá a canoa e amarrá éila num pé de cedro, qui é uma das arve sagrada dos escultores, eile quase caiu pá trás di susto, Jurema tava lá em cima i pulou pro chão fazendo um baiurão qui deixou todos eiles assustados.
    – O que ucê tava fazendo aí, Jurema? Ucê paréci qui tá grávida di novo? Deixa eu passar a mão na tua barriga. Ah, sim! Ucê, parideira destrambelhada, tá grávida mesmo. Não posso isquecer de avisar mestre Bódim.
    Indaí, eiles pegaru o caminho e logo avistaram a casa. Quanto mais eiles se aproximavam, mais gente saía pra fora pra recebê-los. Tuxo surgiu, viu Rosarva e saiu córrendo feito loco pra incontrar com éila.

  12. Cuandu, finalmente, Tuxo pôde abraçar Rosarva, paricia qui una fugueira tinha cido acessa naqueli instante, incendiando tudos eiles cum o intenso calor qui exalava daquele encontro tão aguardado. Tudos eiles ficaram oiando adimirados, incrusive Jurema, qui ficô bem próxima deiles, óbservando arguma cousa qui éila já cunhece muitio bem.
    Entoncis, mestre Bódim falou:
    – Vamo indo de vólta pá casa prepará a festança di hoji à noite. A jiente tem muitio a fazê pá ficá una festa inésquecível. Tuxo, junto di Rosarva, vão ir péscá. Tenho célteza di qui eiles vão trazê peixe di primeira. Anssim espero. Incuanto uilsso, eu i Clódiu vamo inté a casa di Divino buscá três galão di cinco litros di cachaça cada um. O rancho deile fica longe, a gente tem de sair bem rápido.

  13. Indéstoncis, mestre Bódim foi distribuíndu os sélviços de cada um, de maneira a que, no conjunto, todos trabalhassem pouco, mas somado o trabaio de todos, tudo sairia melhor e muitio mais rápido. Inté cego Vardí ganhou uma função, eile ficaria na cozinha e, com os todos os sentidos aguçados que eile tem, saberia dizer o que faltava ou o que sobrava di ingridientes na comida sendo feita. No finar das contas, disse eile, quem cuzinhou fui eu e ucêis foram as mias escravas ajudantes.
    – Ié vérdadi, Vardí. Tudo o qui ucê nos instruiu, tá dando cértinho. Todos vão inté estourá de tanto comer.
    – Eu num vejo a hora de cumê éissa cumida, Vardí. O aroma tá inté saindo pra fora da cusina. Óia lá fora, tem quatro gatas deitadas logo ali. Na certa, éilas istão isperando pra ver se vão deixar um pouco pra éilas.
    – É uilsso mesmo, Néja. Os istomagos déilas estão roncando, eu istou iscuitano daqui.

  14. Índaí, adispois di una hóra di caminhada, mestre Bódim e Clódiu chegaram à casa di Divino, maisi paricia qui num tinha ninguém na casa. Nem adispois di gritarem o nome de Divino bem alto, eile apareceu.

    – Dévil di ter dado uma saída, mestre. Tarvez ele esteja córtando cana. Vamu adentrar nu canavial a ver se gritando lá de dentru eile iscuita.

    – Boa ideia, Clódiu. Eile dévil di tá lá drentu sim. É um mar di cana, vamos adentrar e chamá pur eile bem alto, mas vamos cum todo o cuidado, tem muita cóbra lá nu meio.

    Entoncis, eiles entraram nu canavial bem divagarinho, gritando alto por Divino. Qual nada, era só o ruído alto dos pé de cana sendo tocado pelo vento, parecendo uma sanfonia.

    – Mestre, ucê dévil di sabê qui Divino, encuanto faz a cachaça, vai tumando gólinhos a ver se tá ficando boa. Eile pódi tá caído aqui drentu complemiente bêbado. Se for anssim, num vai ter cumu encontrá-lo, eile num vai respondê di jeito ninhum. Acho qui a gente tem di voltá pá casa deile, pegar os garrafões di cachaça e deixá o dinheiro du pagamento lá.

    – Sim. Acho qui ucê teve uma boa ideia, a gente péga um papel e uma caneta, deixa escrito qui levamos os garrafões e deixamos o dinheiro do pagamento em cima da mesa.

    – Sim, isso resolve tudo.

    – Eu me lembrei agóra, Clódiu, qui, ao invés de cachorro, Divino tem uma capivara qui eile criou desde qui ela nasceu. Ela é iguarzinha um cachorro, acho até qui éila até chega a ser melhor qui um. Eu estou tentando me lembrar o nome déila. Se num istou inganado, o nome déila é Cangibrina. Vamos fazer uma última tentativa, gritar o nome déila. Se éila aparecê, éila nos leva até o paradeiro do Divino:

    – CANGIBRINA! CANGIBRINA! CANGIBRINA!

  15. Adispois di gritarem por Cangibrina sem pará, Mestre Bódim falô qui não havia salução. Entoncis cumessô a escrever o bilhete para Divino, convidando eile a ir na festa lá em casa e contando qui eles levaram três galões di cachaça e deixaram o pagamento em cima da mesa.

    – Sabe, Clódiu, eu não vou ficar tranquilo inquanto não descobrirmos o paradeiro deile. Não se deixa um amigo sumido.

    E foi, então, qui ouviram guinchos lá fora. Era Cangibrina se rodopiando e guinchando sem pará.

    Cuando eiles se aproximaram déila, ela cumessou a andar e olhar pá trás, como que querendo que eiles a seguissem. Entrô nu canavial com muita pressa e foi seguindo um caminho, mas sempre parando pra que eiles não se perdessem. Adispois de vinte muinutos, éila encontrou Divino dormindo e babando sem pará.

    – Eu acertei, mestre. Ele está inconsciente de tanto que bebeu.

    – Vamos ver se conseguimos despertá-lo, ele parece estar tendo uma crise epilética, mas acho que é só o efeito da cachaça.

    – Si alevanta, Divino, ucê precisa caminhar e depois dormir na cama, daqui a sete quatro horas, ucê irá si sentir melhor.

    Eu vo contá prucêis o qui me aconteceu. Eu sempre quis fazer uma cachaça especiar, com teor alcoolico forte e que, apesar disso, fosse deliciosa. E eu conseguí, mas foi uma bomba. Eu vou jogar éila fora. Eu usei mel di jataí. É uma pena.

    – Nósis pegamos três garrafão, Divino, deixamos o pagamento em cima da mesa. Esses três galões estão cheios dessa ispecial?

    – Sim, mas eu tenho cachaça normal tumém.

  16. Adispois di gritarem por Cangibrina sem pará, Mestre Bódim falô qui não havia salução. Entoncis cumessô a escrever o bilhete para Divino, convidando eile a ir na festa lá em casa e contando qui eles levaram três galões di cachaça e deixaram o pagamento em cima da mesa.

    – Sabe, Clódiu, eu não vou ficar tranquilo inquanto não descobrirmos o paradeiro deile. Não se deixa um amigo sumido.

    E foi, então, qui ouviram guinchos lá fora. Era Cangibrina se rodopiando e guinchando sem pará.

    Cuando eiles se aproximaram déila, ela cumessou a andar e olhar pá trás, como que querendo que eiles a seguissem. Entrô nu canavial com muita pressa e foi seguindo um caminho, mas sempre parando pra que eiles não se perdessem. Adispois de vinte muinutos, éila encontrou Divino dormindo e babando sem pará.

    – Eu acertei, mestre. Ele está inconsciente de tanto que bebeu.

    – Vamos ver se conseguimos despertá-lo, ele parece estar tendo uma crise epilética, mas acho que é só o efeito da cachaça.

    – Si alevanta, Divino, ucê precisa caminhar e depois dormir na cama, daqui a sete quatro horas, ucê irá si sentir melhor.

    Eu vo contá prucêis o qui me aconteceu. Eu sempre quis fazer uma cachaça especiar, com teor alcoolico forte e que, apesar disso, fosse deliciosa. E eu conseguí, mas foi uma bomba. Eu vou jogar éila fora. Eu usei mel di jataí. É uma pena.

    – Nósis pegamos três garrafão, Divino, deixamos o pagamento em cima da mesa. Esses três galões estão cheios dessa ispecial a qual uce falou?

    – Sim, mas eu tenho cachaça normal tumém.

  17. Pricisamos levar eile pra cama, Clódiu, ucê péga pelos subacos e eu pego pelos tornozelos. Vai ser um caminho penoso, mas a gente vai parando durante o rebocamento.

    Entoncis, adispois de uma hora e meia, eiles consiguiram por Divino na cama. Tiveram qui parar onze vezes até o fim do pércursso, eile éra magro, mais muito cumprido. Adispois de ajeitá-lo na cama, Divino cumessou a falar sem parar, maisi misturava as frasis, não dizia coisa cum coisa:

    – Eu não divia ter feito a especiar. Foi uma boa besteira minha. Digo boa porque acertei em tudo, as doses das coisas qui usei encaixaram cum pérfeição na mistura, masisi o resurtado ficou fórti dimais, do jeito qui o diabo quiria, maisi agóra num quéro nunca mais.

    Sem querê, criei uma bomba qui num dévil ser detonada. Eu jamais vou dar a receita déila, poisi tem gente qui aprecia e pódi ficar viciado só néla. Maisi o resurtadu é du jeito qui ucêis viram. Eu nu meio do canavial, pérdido e mais mole du qui uma lesma, sonhando qui eu tava no céu, cum uma porção de anjas resandu por mim e me dizendo: Vê se te emenda Divino, ucê tem um nome bonito: Divino, aquele que vive no céu e fala cum Deuso. Ucê, mestre Bódim, que é uma pessoa instruída, sabe me dizê se o nome cérto do criadô é Deuso, De uso, ou só Deus? Pra mim, o nome cérto deile é De uso, o que pódi ser usado à vontade.

    – Eu não sei lhe dizer, Divino. O que impórta numa pépéssoa é qui éila reze pur Deus, maisi, no finar das contas, é tudo iguar.

    – Ucê reza, Mestre?

    – Noncis, mais eu sempre fiquei muito atento à Humanidade, procurando curar as doenças déila.

    – Viva mestre Bódim! Ucê sabi o qui fala e adondi vai bater as tuas palavras!

  18. Passado poco tiempo adispois di ser posto na cama, Divino quis dormí novamiente, pórém mestre Bódim o impediu:

    – Antis di dormí, Divino, fala pá nózis adondi tão os galão di cachaça normal qui a gente vai levá.

    – Istão na paredi do fundo. Na paredi do canto isquerdo, tá a maravilhosa ispeciar. Eu peço a ucêis qui me façam o favor di despejar o delicioso conteúdo dela no quintal. Despejem tudo fóra, uilsso vai me fazer bem, porque sem éila à mão, o desejo qui éila me dispertou vai passar devagarinho, e uilsso vai me livrar du pirigoso vício em que eu puderia ser lançado.

    – Pérfeito, Divino. Ucê é um rapaz di boa consciência. Néissa nuóssa vida, muitas vezes trágica, nózis pricisamos saber jogar fóra o peso qui carregamos sobre a nuóssa cabeça, poisi, caso contrário, afundamos com tudo num poço di lama mal cheirosa.

    – Quer sabê, mestre, eu vou lhi contá o qui me acunteceu. Eu tava andandu na praça cum a minha namórada Dióvânia, e tinha bebido muitio. Éila ôlhô pra mim e disse qui num mais me quiria porque tava cansada di andar abraçada cum uma garrafa di cachaça.

  19. – Sim, mestre, éila me deixou, nunca maisi quis saber dimim. Eu fiz argumas tentativas di arrétomá-la, só faltou eu pedir di joelhos e me deitá nu chão. Maisi éila foi muito dura cumigo, não acriditou nas mias proméssas de dar outru rumo à mia vida mia, parando di beber álcool e viver cumu um rapaz nórmal, que é o qui éila desejava e qui eu diviria desejar tumém.

    E foi anssim qui, sem éila, eu cumessei a imaginar a criação di uma cachaça especiar, mélhor di todas qui eu cunhecia. Iniciei a trabalhar nilsso sem pará, eu tinha qui descobrir o segredo de uma mistura qui ninguém jamais conseguiria copiar, nem mesmo os grandes laboratórios de todas as fabricantes di cachaça. Está me entendendo, mestre?

    – Estou sim. Maisi ucê tem de perceber, Divino, qui, desfeito o teu namoro, ucê cumeçou a entrar num processo muitio perigoso de iniciar um trabalho qui acabaria sendo o reverso daquilo qui você deveria fazer, e até prometeu, para a sua ex-namorada. Ucê estava bem intencionado mas, no fundo da sua mente, ucê não quiria parar de beber.

  20. Entoncis, Clódiu e mestre Bódim foram pegar os galões de cachaça ispeciar pá serem despejados na terra do quintal.
    – Quantos galeões são, mestre?
    – São sete, maisi será rápido. Ucê vai me trazendo os galão, e eu vou despejando o conteúdo na tierra, a quar vai sendo impregnada de cachaça espiciar. O meu medo é qui Divino vá, adispois qui a jiente for embora, colocar torrões de tierra na boca, mastigando e sugando em busca do gosto de um tantinho di álcool ispeciar.
    – Será pussíví!?
    – Penso que sim, Clódiu.
    – Ucê num acha qui a jienti deveria levar Divino conosco? Lá na tua casa, eile vai se divértí um poco, iscuitá boa músíca e, quem sabe, inté arranjá arguma namorada e tirá éissas idéias di doido da cabessa. Aminhã cedo eile vórta pá cá.
    – Eu tava pensanu nilsso cuandu ucê me feiz éssa prigunta. Tumém to pensanu num chá qui vai curá eile. Eu pósso fazê eisse remédio usanu, cumu um dos ingrediente, a própria cachaça ispiciar deile. Cuantuas espiciar ãinda tem?
    – Só um galão.
    – Basta! Vamu dá um xéque-mati na duença deile.

  21. Entoncis, adispois qui Divino ficô sóbrio, eiles partiru pá casa di mestre Bódim. Cuando lá chegaru, a festa já tinha cumessado.

    -Nózis já tava preocupadu cum ucêis e a jiente já ia se preparar pá ir à casa de Divino na caça ducêis.

    – Foi uma aventura, Jarirí. Ucê falô em caça e acertou, a jienti teve arguns mar mómento di caça mesmo. Óia os braço da jiente, tão tudos vremeios.

    – Maisi pur que? Eisses córte tá parecendo qui ucêis ficaru muito tiempo drentu di um canaviá, u qui ucêis tavam prócurandu?

    – Éira eu, Jarirí. Eu fiquei pérdido, disisperadu. Na véudadi, foru mestre Bódim i Clódiu qui me salvaram. Eu tava acabadim, pérdido; cum risco di sê murdido pur cóbra, todo troncho e sem cunsiguí levantá um dedo siquér.

    -Só di ucê me contá uilsso, eu já sei o qui te acunteceu: Foi a catiaça qui te derrubô.

    – Foi sim, ieu tenhu inté vérgonha di ti contá. Maisi a vérdadi é a vérdadi. Vamu apruveita a fésta, nózis temu muitio tempo pá cunversá.

    – Eu tô vendo qui ucêis truxéru quatro galão da marvada, eu já pósso abrí um?

    – Noncis, deixa qui eu abro, drentu deiles tem una cousa pirigósa.

    1. – O banquete está pronto, mestre Bódim. Eu acho qui a cumida vai ser daqueli tipo di cumida inesquecível. Mesmo que a gente fique vivendo por mais cinquenta anos, ainda vamu nos lembrá déila. Cégo Vardí foi impressionante. Só pelo aroma, eile ia nos guiando ao céu e dizia:

      – O peixe tá bom, ou mió, eile pricisa di meio copo de limão neste exato mómento, daí vai um tantinho di foia nova di alecrim, um pouco di casca di parreira ralada, um pedaço di meia banana verdi com casca, um bocatim di cinco semente di pimenta cumarí, doze foias de aracirana e outras cousas que eu digo adispois.

      – Indaí, tudos nózis corríamos pra encontrá rápido os ingrediente qui eile ia listando. Foi impressionante. Tudos nózis, numa correria danada, pra trazê os pididos deile.

      Agóra vamos pensá no féijão. Eile tem di ficar cuzido e vai estar na hóra qui eu pidí pra ucêis tirá eile du fogo, maisi adispois eile vai vortá pu fogo. E eile priguntô: as gata tão lá fora?

      – Sim, disse Néja. Tem oito gatas e seis filhotes deitados lá fóra.

      – Ótimo. As energias déilas vão impregnar os alimentos. Ucêis, qui cunhéci bem as gatas, vão lá e oferecem, a cada uma déilas, um pequenino bucadim do peixe e adispois venham aqui me contar o qui éilas acharum.

  22. – O banquete está pronto, mestre Bódim. Eu acho qui a cumida vai ser daqueli tipo di cumida inesquecível. Mesmo que a gente fique vivendo por mais cinquenta anos, ainda vamu nos lembrá déila. Cégo Vardí foi impressionante. Só pelo aroma, eile ia nos guiando ao céu e dizia:

    – O peixe tá bom, ou mió, eile pricisa di meio copo de limão neste exato mómento, daí vai um tantinho di foia nova di alecrim, um pouco di casca di parreira ralada, um pedaço di meia banana verdi com casca, um bocatim di cinco semente di pimenta cumarí, doze foias de aracirana e outras cousas que eu digo adispois.

    – Indaí, tudos nózis corríamos pra encontrá rápido os ingrediente qui eile ia listando. Foi impressionante. Tudos nózis, numa correria danada, pra trazê os pididos deile.

    Agóra vamos pensá no féijão. Eile tem di ficar cuzido e vai estar na hóra qui eu pidí pra ucêis tirá eile du fogo, maisi adispois eile vai vortá pu fogo. E eile priguntô: as gata tão lá fora?

    – Sim, disse Néja. Tem oito gatas e seis filhotes deitados lá fóra.

    – Ótimo. As energias déilas vão impregnar os alimentos. Ucêis, qui cunhéci bem as gatas, vão lá e oferecem, a cada uma déilas, um pequenino bucadim do peixe e adispois venham aqui me contar o qui éilas acharum.

  23. Entoncis, Jarirí pegô um bacio e colocô uns bão pedaçu di peixe e disse:

    – Vamu lá jienti pra ver o qui vai acuntecê, maisi vamu cum cuidadu, se éilas gostarem muito du cherô, vai sê pirigoso purqui pódem ficá disisperadas e nos machucarem. Vamu bem divagarim.
    Dito e feito. Cuandu se apruximaru déilas, só ouviram urros, parecerenu qui éilas ficaru num disisperu sem fim. Indestoncis eiles foru péganu pedacim i jogando pra éilas, maisi tumavam uma boa distância. Jurema cumeçô a dar pulos altos, parécenu qui tava pussuída por argum isprítu maliguinu.
    Jarirí, entoncis, cumessô a gritá cum éilas:
    – Carma! carma! carma! Senão nózis num vamu dá peixe prucêis isprimentá. Jurema, a maisi disisperada, cumessô a rodopiá e pulá cumu si fossi um peão. E, adispois qui cunsiguiru dá um bucadim pá cada uma déilas, éilas se deitaru nu chão i puseru as patas prá cima cumu si istivéssem orando pá Deuso.
    – E foi cum muitu cuidado qui eiles vórtaru pá drentu e ficaru oiando pá Cégo Vardí, que disse.
    – Ucêis num pricisam dizê nada, eu iscuitei tudo. Arguém saiu machucadu?
    – Não. Maisi foi por poco.

  24. Incuantu istavam se arrécupevam du susto, Cégo Vardí cumessô a falá pá eiles se acalmarem, qui u pirigo foi grandi, maisi tinha dado tudo cérto, cunfórmi eile já tinha imajinado. Ieu cunheço muitio bem as gata di mestre Bódim, éilas só atacam péssoas discunhecidas deile e sómienti se perceberem qui é jienti do Mal.

    – Vardí, priguntô Clódiu, cumu ucê cunségue fazê uma cumida tão ispiciar? Eu seio qui pelo aroma i pelo gôsto num pódi ixistí cumida miór nu mundu, ieu tenho célteza dilsso. Ieu fico aqui matutando em cumu ucê cunsiguiu aprendê eisses segredos.

    – Foi na mia vida infeliz, Clódiu, di minino cégo. Cuandu eu incontrava arvóres e prantas i floris, eu cumessava a cherá, a passa a língua i comê pedaçinhos das foias i dos troncos i das floris e tudos os gôsto e cheros iam ficanu na mia memória, ieu virei uma bibliótéca di tudo uilsso. Abaixo di mim, só mestre Bódim cunhece arguma cousa sobri.

    Entoncis, Cégo Vardí falô pá eiles irem lá prá fora pá ver cumu istavam as gatas.

    Éilas cuntinuam du mesmo jeito, Vardí, deitadas di cósta e cum as pérna pra cima, incrusive as fiótas.

  25. E foi entoncis que mestre Bódim, Divino, Tuxo e Catarina, chegaru du rio.
    – Ucêis cunsiguiram pégá muitos peixes – priguntô Clódiu. Eu pósso agarantí qui aqui tem jeinti doida pá cumê maisi peixe prépadadu pur Cégo Vardí.
    – E ucêis viru o estranhu estado das gatas, qui parécem istar pussuídas pur arguma cousa doutro mundo? U qui é uilsso, mestre Bódim? Ucê, qui é tão versado nas mágicas da vida, pódi nos dá una luz pá jienti tentá cumpreendê éissa istranheza?
    – Sim. Num é tão difícir di entendê. Os félino são carnívoros qui si esbaldam cumendo mamíferos e qui nunca comem peixi. Candu Cégo Vardí, cum sua énórmi capacidaudi di cuzinhá, preparô os tempero, eile cunsiguiu cortá temporiamiente éissa caraí-cterística, préparanu as gata pápá exprimentá aquilo qui jamais éilas cumeriam. E u résurtadu dilsso foi o qui causou éisse ispantantu nucêis.
    – Ah bão! – disse Tuxo. Nu fundo é tudo mutio simplis.
    – Célto, Tuxo. Daqui há poco, éilas vórtam ao nórmá déilas, qui é dispertarem e andá sobri quatro patas.
    Indaí, Cégo Vardí cumessô a dá muitas gargaiadas. Eu sabia, tumém, qui o qui eu fiz próvócaria tudos éisses monstrusoso ispanto núceis. E agóra, eu só posso dizê qui mi divertí mutio, mutio e mutio.

  26. Adispois de poco tiempo, as gatas despertarum no mesmo mómento e entrarum na cusina. Tudos eiles correru pá acariciar éilas. Ficô parecenu uma énórme féstança de abraços i lambidas.
    Cégo Vardí consiguiu péga uma fióta no colo e disse:

    – Óia qui belezura, jienti! Ieu tava préócupado cum éilas, se arguma coisa désse errado, uilsso acunteceria cum as fiótas, maisi noncis, éilas istão mélhoris qui as adultas, maisi alégrinhas cumu se tivésem vortado du céu.

    – Ié vérdadi, óia éstas fiótas aqui! Éilas parécem qui nasceram di nóvos.

  27. Entoncis, mestre Bódim ôlhô pra Divino e lembrôu-se di algo impórtanti:

    – Divino, ucê vai cumigo pru matagal buscar as érvas pra gente fazê o chá qui vai te livrá da cachaça especiar qui ucê inventô. Tá lembrado dilsso?

    – Eu já ia te dizê uilsso, mestre. Eu não isquecí não.

    – Maisi ispéra um poco por qui eu tenho di trocá umas ideías cum Vardí.

    – Eu tô ao seu dispor, mestre.

    Indaí, mestre Bódim e Cégo Vardí saíru pra fóra e foram andanu e cunversano. Adispois di uns quinze minutos, retórnarum e pariciam contentes cum as conclusões a que chegaru. Intoncis, mestre Bódim oiô fixamente pá Divino e falô:

    – Vem cumigo, Divino, maisi antis, vá buscar o garrafão da pinga especiar pur qui eile vai cum a jienti. I eu já vou avisandu ucêis aqui di casa qui nózis vamu demorá. E, diante do ólhar curioso di todos, sairam os dois.

  28. – Nózis temo qui entrá fundo na mata, Divino. Vamos incontrá as planta qui a jienti nécessita muito próchimas umas das outras e bem camufladas entre as arves. Ié muito intéressanti. É cumu se éilas si escondessem de todos os animar, principarmiente dos homens. Cum paciência, eu vou encontrá éilas, qui serão num totar di quatro: a casquinha, a quatro cores, a oliva crespa e a dente de boi.

    E cuando já istavam muito cançados di tanto andar e olhar pru chão, mestre Bódim gritô:

    – Aqui, Divino! Eu encontrei! Tem um agrupamiento déilas bem aqui.

    – Mutio interesssante mesmo, mestre. Éilas são mutio bunitinhas, paréci qui istão prontas pá danççá.

    – Ufa! Eu já tava quasi disistino. Agóra, eu vou tirá sete fôias di cada uma déilas e ucê vai cumê-las.

    – Cumu anssim, mestre? E o chá?

    – Sinto mutio, Divino. Eu num ti falei a véudadi. Daqui há poco ucê vai intendê.

  29. Intoncis fala, mestre. U qui eu vou têr di intendê?

    – Néisse nuósso mundo, Divino, têm muitas cousas mui gostosas, maisi nem tudo o qui paréci tão delicioso siguinifica qui será anssim para sempre. O caso déissa tua pinga ispeciar móstra uilsso muito bem. Eu e Vardí tumamos um bom gole déila sem qui ucê visse, nózis quasi caímos di cóstas.
    Cégo Vardí cumessô a rodópiar u cuórpo todo e eu tive di sigurá-lo pá qui num caísse. E num parava di falar:

    “É impréssionanti, Mestre, lembra a fase da infância, em qui tudo qui a gente tomava de bom paricia ser a melhór cousa du mundu!”

    Eu concórdei rapidamenti e falei qui éra um misto di ardência mesclado cum uma doçura sem igual e outros finos saboris . Maisi o único mau que ela traz é vício quasi imediato. Não chega o momento de querer parar di tomá-la.

    Agóra, Divino, vamus continuá com a tua cura. Eu sei qui ucê vai sofrê, maisi num tem outro modo di ser diférente.

  30. – Ucê vai ter de mastigá sete foias di cada planta e, adispois de cada mastigação, tumá um bão gólo da especiar. Eu já adianto prucê qui vai ser mutio amargo, maisi dá pá aguentá.

    – Eu ódeio coisa amarga, mestre, maisi eu vo fazê o que ucê tá me pidino, eu tenho di aguentá e vou aguentá. Maisi e se eu vumitar, mestre?

    – Se uilsso acontecê, não vai fazê diferença.. U resurtadu será o mesmu, maisi tente aguentá o mássimu pussível, seja fórti, se sigure. Ucê se sente preparadu?
    – Sim, mestre. Pódi cumeçá.

    Entoncis, mestre Bódim pôs nas mãos de Divino as foias da planta oliva crespa. Divino enfiou-as na boca e, parecendo um boi, cumessô a mastigação cumu se istivésse térrivelmente sedento por cumida. Dava pra iscuitá u baruio dos dentes e ver a baba iscórrendu pelo canto da boca deile. Adispois caiu di juelhos, pôs as mãos na boca, aguentou por uns três minutos, tomou um gólão da especiar e soltou.

  31. O procedimiento todo dévil ter duradu uns trinta minutos. Ao finar, Divino paricia um trapo sujo todo esburacado. Sentou-se no chão e pôs as mãos no rosto, cumu quem desejava querer chorá muito.

    – Mestre, eu nunca passei pur algo tão médonho. Istou me sentindo cumu si tivesse currido trêis dias sem pará. Cuidado! Não fica muito piérto di mim, eu pósso expludí a quarquer mómento, tar quar um grandi balão ou uma câmera di pneu qui num céssa di ser enchida.

    – Eu ti entendo, Divino, e fico muito condoído, maisi ucê tem de perceber que o teu vício pela especiar acabou. Ucê foi o gênio criador déila, e hoji você foi o destruídor.

  32. Entoncis, mestre Bódim e Divino chegaram em casa cuando a festa tava cumessanu.

    – Caramba, mestre. Nósis istava isperando uceis, principarmiente ucê, mestre. Nósis já pegamu os teus intrumientos di música, tua vióla e o teu viólão, e istavámos aqui tórceno pra qui ucêis chegassem luógo. O xurrasco tá assanu e num démóra pra jienti cumessá a atacá as carne, maisi tá faltanu a música e a dançça pá alégrá os nuóssos córação e os nóssos zuvido, afinar num existe ninguém qui tóca maisi bunitu qui ucê.

    Indaí, mestre Bódim assentou-se numa cadeira sem braço e falô:

    – Eu vou cumessá tócandu na vióla argumas das valsas de Strauss. Ieu tenhu célteza di qui ucêis vão gósta mutio, são todas mui bélas e aquecem os córações e ucêis vão parecê qui istão numa linda canoa navéganu nu meio du mar e seguindo nu pulsar das onda.

  33. Indaí, adispois deiles terem danççado várias valsass, mestre Bódim comentô qui eiles tinham danççado muitio bem e falô qui ia descanççá um poco antis da próxima tocata. Adispois de uns vinte minutos, tomô bastanti água, pegô o viólão e priguntô preles quar estilo di música eiles quiriam qui eile tocassi. E cumessô uma gritaria entre tudos eiles, cada um quérendu um estilo di música diférente:

    – Eu quéro o samba! Eu fico cum o incrível rasquiado di vióla qui só mestre Bódim cunségue tócá! Eu quéro uma nóva rodada di valsa! Eu quéro uma ródada di música bréga! Eu quéro música qui dá pá dança agarrado cum a cumpanheira! Eu quéro … Eu quéro …

    Clódiu, entoncis, arrésorveu dá um basta:

    – Parem cum uilsso! Quem decide é mestre Bódim! E ponto finar.

  34. Cum aquéla confusão toda, em que cada um deiles quiria um éstilo di música diférenti, e qui tava quasi próvocando una grandi briga, mestre Bódim tumô uma décisão pá acalmá tudos eiles di uma veiz pur todas:

    – Cumu ucêis tão quasi briganu fisicamiente pur causa di una tólice, eu vo falá qui uilsso pódi sê arrésorvido di um jeito muitio simples. Eu vou cumessá tócandu una música qui eu e Néja compomos faizi muitio tempo. Eu tenhu célteza di qui ucêis vão gósta mutio. Eu vou tóca e éila vai interpretá. Mudéstia a parti, ucêis vão ficá surpresos cum a béleza dessa música e o interpretá déla. Adispois, pra contentá todos ucêis, passo a tócá um estilo di música pur veiz, o qui vai sê mutio bom purque desse geito eu contento a todos.

    Indaí, Néja si aproximô calmamente di mestre Bódim, pôs a mão nu ombro deile e se preparô pá cumessá o canto.

  35. Mestre Bódim cumeçô cum uma intródução bélíssima, parecenu estar sólando o canto de um pássaro voando bem alto. Néja, pur sua vez, cuando soltou as premeras notas, dava ares de qui siguia o pássaro nas alturas, maisi tumém trazia o rumor dass cópas das árvóres tócadas pelo vento. A voz déila era algo di muito especiar, cum agudos pérfeitos e variassões di veludo quando a altura e o ritmo dos acordes diminuíam. A letra era outra cousa sem igual e se unia à melodia cum uma cólagem inquebrantável, tamanha pérféição. Cuando términarum a exibição, fez-se um silêncio di arguns sigundos, adispois cumessaram as palmas qui teimavam em não parar.

    Jarirí, entoncis, foi o premero a falá:

    – Adispois déssa énórmi maravilha, eu num quéro ouví maisi nada, pra num isquecê éissa exibição extraórdinária.

    – Catarina discordô e falô prele: Noncis, Jarirí, agóra nózis vamu cuntinua cum as dançças.

  36. E o baile cumeçô e só términô adispois qui mestre Bódim se mostrou muito cançado. Tudos eiles se sentiram tão félizes qui se sentaram nu chão e ficaram em silêncio, admirando as arves e o céu.

    Entoncis, Vardí sentou-se pérto di mestre Bódim e falô:

    – Mesmo eu sendo cégo, mestre, eu sentí a felicidade dos danççantes e, inclusivi, dancei cum Rosarva, qui me guiou os passos. Eu nunca tive una expériência tão intensa, capaz di me deixá tão orgulhoso de mim, poisi eu pensava qui num seria capaz disso e sempre recusei, pensando qui eu puderia perder o equilíbrio e acabar derrubando a parceira.

    – Qui coisa boa, Vardí! Eu fico muito feliz de ouví isso. Eu queria te priguntá, já qui ucê tem ouvidos tão bão, si ucê iscuitou arguns barulhos istranhos na mata hoji di madrugada.

  37. – Ieu iscuitei tumém, mestre. Eisses baruios pariciam cum os sons di uma grandi carróça puxada pur um tropel di cavalos.

    – Ah! Entoncis eu sei quem são eiles! Não é priciso se préócupá, são um grupo mambembe qui córrem o brasir tudo e tumém outros países. São meus amigo. Cuando eiles istão pur pérto e cum póbrema di duenças nu grupo, aparécem aqui buscando meus socórros. Ou, entoncis, surgem du nada pá fazê visita pra mim. As gata já se afeiçoaram a eiles, pur isso eiles têm as pórta abértas daqui. Eu penso qui surgirão lógo, maisi eu tô pensando em ir ao encontro deiles, afinar já éra pra terem chegado, já qui ucê cunsiguiu ouvir os sons qui eiles istavando sóltando barulhos na madrugada.

    – Eu apreciaria muito em ir cum ucê, mestre, maisi eu iria acabá atrasando o encontro.

    – Num se préócupe, Vardí. Eu vo pedir pra Jarirí e Tuxo irem cumigo. Eu acho qui não vai ser difícir a gente topar cum eiles

  38. Adispois de chamar Jarirí e Tuxo, os três partiram em busca do carroção dos mambembes. Maisi, antis disso, mestre Bódim tinha se aproximadu da zorelha da gata Jurema, dando um abraçu néla, dizendo:

    – Ucê vai cum a gente, Jurema, nózis vamu precisá do teu faro pra encontrá os nuóssos amigos.

    Entoncis, cum Jurema à frente, cumessaru a caminhada, qui num durou muito purque, após passarem pur várias arves enórmes di Jatobá, conseguiru avistar quatro cavalos pastando.

    – Uilsso é sinar de qui eiles tão pur pérto.

    – Sim, Jarirí, eu já estou vendo. Olha aqui à esquerda, ali istão eiles.

    – Indaí, o encontro aconteceu.

  39. Ranzé, o líder do grupo, quandu os avistou, foi o premero a correr em direção a eiles e dar um grande abraço em mestre Bódim e nos demais.

    – A gente tava cum sodade ducê, mestre. Faizi tiempo que a gente não aparece pur aqui e, maisi uma vez, nózis vinhemos em busca de cura para os nóssos doentes. Além dilsso, a róda isquerda traseira da nuóssa carroça tá trincada, pur uilsso nózis istamos andandu muito divagar pra num québra o resto déila. Os nuóssos doentes não istão nada bem. Arguns cum diarréia e fébre, outros cum muita tóssi e dor di cabessa. Nózis istivemos muito lonje daqui, acho qui tivemo contato cum muita virose.

    – Eu vou tentar de tudo pra curá os doentes. Tarvez dê certo. Sobre o conserto da róda da carróça, nózis temos Jarirí aqui do meu lado, qui é um mestre montador e esculpidor de pórtas de igreja. Estou cérto, Jarirí? Ucê consegue fazê eisse cunserto?

    – Sim, mestre. Com facilidade.

  40. Entoncis, eiles chegaru à casa de mestre Bódim, e os mambembes foram logo armandu as suas tendas. Em seguida, retiraram os adoentados cum muito cuidado e os acomodarum drentu déilas. O estado deiles num era nada bom. Muitos tossiam sem pará e pareciam muitio debilidados. Mestre Bódim, adispois di examinar tudos eiles, foi logo dizenu qui a cura deiles seria muitio delicada.

    Eiles correm risco de morte, perguntou Ranzé a mestre Bódim.

    – Sim, Ranzé. Istão muito fracos, ucêis demoraram muito a chegarem, mais eu tenho éspérança di qui cunsiguirei curá-los.

    Indaí, mestre Bódim pediu a Tuxo, Catarina e Clódiu pra eiles irem depressa à mina e trazerem o máximo di água qui fossi pussível. Encuanto isso, eu vou atrás das ervas e raízes pra preparar os médicamentos.

    Adispois, mestre Bódim pidiu a opinião de cégo Vardí sobre o qui eile tava pensando acerca do estado geral dos acamados.

  41. Entoncis, Vardí pôs as mãos demoradamente sobri as cabessas e os pescoços di cada um dos doentes e disse:

    – Óia, Eiles istão muitio afétados por infecções virais. Tomara qui os rémédios di mestre Bódim façam efeitos bem rápidos, caso contrário, eiles mórrerão em argumas hóras.

    Indaí, adispois di duas hóras, mestre Bódim retornô da mata cum um feixe di várias raízes e plantas e cumessô o cozimento déilas.

    Adispois dos remédios prontos, eile jogou água da mina sobri os cuórpos deiles e foi despejando o remédio na boca de cada um.

    Agóra, disse mestre Bódim, só nos résta esperar pra ver se vai fazer o éfeito desejado.

    E foi uma longa espéra. Primeiro, os doentes cumessarum a se sacolejar, paréceno qui istavam tomados por espíritos malignos. Adispois ficaram vermelhos feito brasas e passaru a tossir sem parar. Inté qui se acalmaram aos pocos. Maisi um deiles, chamado Pablo, num teve ninhuma reação, purque havia morrido.

  42. – Eile era uma pessoa muito especiar, o mélhór ator que a gente tinha e uma das pessoas maisi bondosas qui conhecemos. Vai ser muitio difícil aceitar que não estará maisi entre nós. O luto vai ser demorado, cum muita tristesa e consternação.

    – Tinha apenas dezoito anos, disse Ranzé. E será insubstituível, nunca maisi encontraremos um ator como eile. Eu me lembro do dia em que Pablo implorou pra qui fossi aceito por nós. Eu, entoncis, pedi pra eile fazê arguma apresentação pra nós. Eile representou partes de diversos papéis das tragédias gregas.

    – Nósis quase caímos de cóstas. A apresentação foi perfeita e mostrava o quanto eile, além de grande ator, tumém éira muito culto.

  43. – Adondi a gente vai enterrá-lo, mestre?

    – Se ucêis concordarem, estou pensanu qui o mélhor lugar será embaixo daquela frondosa Paineira qui num fica muito lonji daqui. É um lugar muitio bonito e calmo. Além dilsso, os grandes espinhos que ela solta, e qui forram o chão embaixo déila, impedem qui argum animar venha a cavucar a cóva.

    – Eu acho uma boa ideia, mestre. Ali, o corpo de Pablo repousará cum toda tranquilidade e segurança.

    Adispois de enrolarem o corpo de Pablo em dois lençóis, eiles partiram em direção a Paineira. E foi entoncis qui uma tristeza maior pairou profundamente sobre todos. E fez-se um silêncio tão intenso como se uma nuvem escura tivesse baixado para envolvê-los de forma a deixá-los completamente perdidos e sem direção.

  44. Após Pablo ser descido à cova, Ranzé cumessô a discursar sobre a morte dele.

    – A perda de um grandi companheiro nos traz muita tristeza. Principarmente quando esse companheiro era muito especiar. Quando rememoramos sua vida em nossa companhia, isso inunda nossa mente com as imagens deile ao nosso lado e nos sentimos perdidos com sua falta definitiva. Como esquecer sua alegria e energia que sempre nos contagiava? Sem dúvida alguma, foi o nosso melhor ator. Aquele que, com apenas dezoito anos de vida, entregava-se de corpo e alma às atuações, deixando o público boquiaberto e completamente concentrado durante seu trabalho teatral. Sempre dizíamos-lhe que ele seria aceito para trabalhar em qualquer companhia teatral importante e famosa, mas respondia que não, pois gostava de atuar junto ao povo nas praças.

    Entoncis, Ranzé desatou a chorar, o que contagiou a todos. Tudo estava terminado, menos a dor da perda, que demoraria por muito tempo.

  45. Após rétórnarem em silêncio à casa de mestre Bódim, todos estavam exaustos. O almoço estava pronto, maisi ninguém quis almoçar. Jarirí voltou ao trabalho de consertar a róda da carroça e logo terminou o sélviço.

    – A róda da carróça ficou muitio boa, Ranzé, e não vai dar póbremas por uns vinte anos.

    – Eu não sei cumu lhe agradécer, Jarirí. Cuanto custou o sélviço?

    – Nada. Eu góstei muito de fazer o conserto. O importante é que ucêis vão podê viajar cum toda segurança.

    Entoncis, Ranzé olhô pra mestre Bódim e notou qui eile tava muito triste, muito maisi do que os demais. E priguntô pra ele:

    – Eu percebo a sua dor, mestre Bódim, Eu penso qui no seu trabaio de curar adoentados, ucê nunca perdeu nenhum.

    – Sim, Ranzé, é vérdadi.

  46. Sim, Ranzé. Eu jamais passei pur isso e não estou me setindo bem, mesmo sabendo que fiz tudo o qui podia para salvá os adoentados. Ieu tava confiante de que salvaria os trêis, mais a virose qui tomou conta di Pablo éira maisi fórte. Não havia cumu eu sabê dilsso. Mas não se préocupe, eu lógo me recupero, afinar eu num tive ninhuma culpa. É uma quéstão di poco tiempo e, em breve, eu volto ao meu nórmal. A mente humana é anssim mesmo, a culpa provém do nuósso inconsciente, o qual afeta nóssa consciência de uma maneira muito fórte e faz com que nos sintamos arrasados e, por vezes, deprimidos por algum tempo.

    – Eu compreendo, mestre Bódim. Afinar, sem ucê, que de fato é um mestre, tarvez tudos nózis do meu grupo não sobreveriam, poisi a virose tumaria conta de nós todos.

    Entoncis, Catarina e Néja surgiram e foram dizendo bem alto:

    – Nózis num aceitamos que ninguém queira almoçar. Levantem-se todos agora mesmo e venham apreciar a boa comida que fizemos.

  47. Entoncis, após o chamado di Néja e Catarina, quasi todos se levantarum e cumesaru a deliciar-se cum a cumida muitio bem preparada. Mestre Bódim e Ranzé, apesar du pidido insistente das duas, reafirmaram qui estavam completamente sem fome e qui num queriam almoçá de jeito nenhum, poisi istavam completamiente impossibilitados de apreciar a comida déilas.

    Entoncis, Ranzé disse a mestre Bódim que, se acaso num tivesse acuntecido a tragédia, o plano deiles era fazê uma apresentação especiar dos últimos trabalhos de teatro e circo do grupo a todos os que ali estavam. Maisi, com a morte de Pablo, eiles ficarm completamiente impossibilitados psicologicamente de mostrar quarqué coisa nesse sentido.

    – Sim, Ranzé, eu compreendo, até porque, nózis daqui tumém estamos sem condições de prestar atenção à atuação de vocês. Maisi nózis esperamos qui ucêis retornarão aqui em breve.

    – Tenha a certeza qui anssim será,mestre. Aguardem, nózis retornaremos anssim qui pudermos.

  48. Após o armoço, Ranzé cumessô a chamar seu grupo para que se preparassem para a partida:

    – Nózis temos qui pégá o nosso trecho, retomá a nuóssa jórnada rumo ao Sul. Eu seio qui nózis vamô sentí muita falta du nuósso grandi companheiro Pablo. O espaço deile na carróça vai ficá vago, o qui vai fazer com que sintamos sua falta pur vários dias. A ausência de Pablo tumém fará cum que saibamos o quanto é difícil aceitá qui o destino impiedoso nos privou deile. E a tristeza nos acompanhará por um bom tempo, principamiente quando nóssos olhares não enxergarem as maravilhosas atuações deile quando de nóssas apresentações.

    Entoncis, mestre Bódim, e todos de sua casa, abraçaram cada um dos que partiriam e lhes desejaram boas viagens. E foi quando Divino tomou a palavra e disse:

    – Eu gostaria di ir cum ucêis. Eu num sei fazer nada do que ucêis fazem, maisi eu pósso aprender. Eu quero muitio viajar pelo mundo. Eu tenho vinte anos e num quéro maisi ficar aqui.

  49. – Ucê tem cérteza do qui tá falando, Divino? Nuóssa vida num é um mar de rosas.

    – Sim, Ranzé, maisi eu imagino o quanto a vida ducêis é cheia di aventuras e por quantos lugares maravilhosos ucêis passam. Eu quero, no mínimo, conhecê lugaris qui eu nunca vi. Maisi num é só uilsso, eu tenho a intenção de que ucêis possam me ensinar a arte de vôceis. Eu aprendo rápido. Até hoji, eu dediquei minha vida a criar cachaças que ninguém jamais conseguiria imitar. Eu bebia mutio, maisi mestre Bódim e Vardí me livraram do vício. Entoncis, eu estou muito bem e preparado para enfrentar as aventuras pelas quais ucêi estão acustumados,

    Índaí, Ranzé olhô pá mestre Bódim e priguntô:

    – O qui ucê tá pensando sobre uilsso, mestre?

  50. – Eu penso, Ranzé, qui ucêis só têm a ganhar se aceitarem a propósta di Divino. O qui eile disse é verdadeiro. Eile está livre du vício do álcool e, além dilsso, é muito trabalhadô e responsável. Adispois du falecimento du pai deile, passou a cuidá sózinho do alambique e da prantação de cana. Consiguia fabricá tipos di cachaça qui ninguém cunseguiria, móstrando o quanto é inteligente e criativo. Eu tenho célteza di qui tudos os ensinamentos qui ucêis passarem, eile saberá aproveitá-los mutio bem.

    – Muito bão, mestre. Ucê nos convenceu. Nózis temos dois lugaris na carroça, o qui éira do nosso querido Pablo e maisi um, que agóra passa a ser di Divino.

    – Entoncis, Divino cumessô a chorá di tanta aligria e correu pra buscá suas coisas. Tudos eiles o abraçaram e mutios inté choraram. Nózis vamu sentí a tua falta, Divino.

  51. Entoncis, Ranzé abraçô mestre Bódim e disse:

    – Ucê num imagina, Mestre, o quanto nózis somos gratos a ucê. Se demorássemos um poco mais pra chegá aqui, as viroses teriam matado todos nózis. A vérdadi é qui devemos nóssas vidas a ucê. Por arguma força doutros mundos, chegamos aqui a tempo de sermos salvos. E agora que estamo partindo, nuóssos córações estão repletos di gratidão. Nózis num vamu demorá a retórnar.

    Entoncis, adispois de atrelarem os cavalos, tudos eiles entraram e se acomadaram. Divino éra o mais féliz, pôs a cabeça pra fora e cumessou a gritá que ficaria cum saudade de tudos eiles.

    E, enquantu a carróça partia, ficaram olhando pra ela até qui sumisse por entre as árvores.

  52. Entoncis, a vida passou a transcorrer com tranquilidade na casa de mestre Bódim. Éra primavera, e um grandi espetáculo de floris, folhas, galhos, pássaros, aromas e frutos surjiu cum toda suntuosidade no entorno da paisagem. A beleza era tanta que todos se sentavam no chão e ficavam observando a multiplicidade de coris e formas, como que hipnotizados diante daquele impressionante universo.

    Arguns deiles saíam para colher frutas, que eram devoradas por todos, a ponto de dispensarem o almoço.

    Indaí, Jarirí levantou-se rapidamente e gritou que tinha uma boa notícia a comunicar:

    – Catarina está grávida!

  53. Entoncis, tudos eiles se alevantaru pra abraçá Catarina e Jarirí. Mestre Bódim ficô tão encantadu pela nutícia que cumeçô a chorá di aligria.

    – Infélizmente, eu num tive filhos. Se Catarina e Jarirí aceitarém, eu quéro ser o padrinho e, maisi du qui uilsso, tumém quéro ser o premero professor déila.

    – Pódi estar cérto dilsso, mestre. Não há ninguém nu mundo melhor du qui ucê pra cumprir cum eisse papel, disse Catarina. Eu só tô preocupada cum o pré-natal. Nózis vamu tê di ir à ciudadi pra eu fazê exames e, cumu nózis sabemu, tem muita jienti lá qui nos detesta e teremos qui tumá muitios cuidados.

  54. Entoncis, no dia seguinte, Catarina e Jarirí se alevantaru cedinho, tumaru o café da manhã e cumessaru a longa caminhada inté a ciudadi. Cascatim, anssim que percebeu a saída deiles, correu atráz para acompanhá-los.

    – Muito bem, Cascatim, a sua ida cum a jiente vai ser de muitia valia. Quarqué póbrema qui a jiente tenha, teremos ucê para sérvir di nuósso companheiro e mensageiro.

    Indaí, Cascatim ficô contenti, balançanu o rabo e latindo féliz. Adispois, cumessô a pular em torno di Catarina, pondo as patas na barriga déila cumu se soubésse qui estava grávida.

    – Num há dúvida, Catarina. Eile já sabe qui ucê tá grávida, poisi consegue iscuitá o coração do bebê.

    – Sim, é véudadi. Cuando eile se aproximô di mim, eu percebi qui o coraçãozinho do bebê cumessô a bater maisi fórti. Acho qui uilsso é sinal de qui eiles serão bons amigos.

  55. Entoncis, Catarina, Jarirí e Cascatim, para evitarem quarqué tipo de infortúnio, não utilizaru o caminho principar pra entrar na ciudadi. Ao invés dilsso, entraru pela périferia, pois ansim não seriam vistos por pessoas marvadas, inimigas de mestre Bódim, e de todos que istavam sob a proteção deile.

    – Eu quéro, Jarirí, passá na casa da minha família, tô morrendo de saudade da mia mãe, du meo pai e dos meus irmãos. E tumém quéro qui eiles saibam qui estou grávida e qui lógo a família terá maisi um membro.

    – Tá certo, Catarina. Maisi a gente num pódi demorá lá, poisi quanto maisi rápido nózis chegarmos no hospitar, melhor será.

    – Entoncis, Jarirí, vamos primero ao hospitar, adispois a gente passá lá, anssim será maisi seguro.

    E anssim eiles fizeru, e tiveram sorte, poisi lógo qui chegaram no hospidar, Catarina já foi atendida por um médico qui, prontamente, a encaminhou para os éxames. Adispois de feito o exame de ultrassom, o médico olhô fixamente pra ela e disse:

    – Moça, ucê num vai ter um, nem dois filhos, ucê vai ter trigêmeos.

  56. Entoncis, com a nutícia dada pelo médico, Catarina e Jarirí ficaram boquiabertos. Enquanto siguiam para a casa dos familiares di Catarina, ficaram em silêncio pur um bom tempo.

    – Jarirí, disse Catrina, eu tô aqui pensano qui nózis vamu ter uma família compreta. Três filhos de uma só vez é mutia cousa. Será qui eu vou tê leite suficiente pá alimentá tudos os três?

    – Eu penso que sim, Catrina. Conforme dizem, a Natureza é sábia. Maisi, se ucê não tivé, nósis vamu tê de arrumá uma boa vaca leiteira. Se eu não tô enganado, o teu pai cria gado, pode ser qui eile tenha uma boa vaca pra emprestá pá nósis.

    – Sim, é véudade.

    Indaí, logo qui chegaru à casa da família de Catarina. Os familiares tudos vinheru abraçá-la, e alrguns cumeçaru a chorá di aligria.

  57. Entoncis, Catarina priguntô pro pai déila, senhor Rodrigues, se eile teria uma vaca leiteira para emprestar pá eila quando os bebês nascerem, o que vai acuntecê adispois de sete meses.

    Nósis estamos preocupados, afinar eu vou tê de alimentar três bebês e não sei se o leite qui vou ter será capaz de tudo isso.

    – Eu terei sim, filha. Ucêis podem contar cumigo. Eu não vou emprestá, eu vou dá a vaca de presente pra ucêis.

    Indaí, Catarina e Jarirí, que estavam com muitia pressa, se despediram de todos e tornaram a péga o caminho pra casa de mestre Bódim. Quando istavam perto de saírem da ciudadi, ouviram arguém gritando atrás deiles.

    – Ucêis aí! Parem! Eu quero falá argumas coisas prucêis.

  58. – O que é que o senhor quer falá? Nósis estamos cum muita préssa.

    – Ucêis são gente de Bódim, num é mesmo?

    – Sim, é vérdade. Nósis moramos na casa deile.

    – Eu quéro qui ucêis falem pra Bódim que eu tô interessado em comprá as térras deile e que, antes de comprá, eu quero que eile acabe cum todas aquelas onças que vivem por lá. Meu nome é Haroldo. Eile vai se lembrá di mim.

    – Veja bem, meu senhor, pelo que eu sei, mestre Bódim não tem ninhum interesse em vendê aquelas terras. Faz mais de quarenta anos que eile mora ali e jamais pensô sair de lá. De quarqué forma, eu vou passá o seu recado pra eile.

  59. Entoncis, cuando Catarina e Jarirí chegaram, todos correram pra recebê-los, curiosos que estavam em saber nutícias sobre como tinha sido a consulta médica de Catarina.

    – O que o médico disse, Catarina, ucê tá grávida mesmo?

    – Sim, Néja, eu estou grávida mesmo e tenho outra grande nóvidade. Eu vou ter trigêmeos.

    Indaí, tudos eiles ficaram boquiabertos e, adispois, cumessaru a bater palmas e a abraçar Catarina.

    – Meu Deus, disse Clódiu, essas crianças vão ter muito carinho de todos nósis! Ainda bem que somos em muitos e vamos todos ajudar na criação déilas. Ucêis já sabem o sexo que elas terão?

    – Noncis, ãinda num dá pra saber.

  60. Entoncis, Jarirí chamou mestre Bódim de lado e contou sobre o encontro deiles com o tar de Haroldo.

    – Eu cunheço eile desde criança, Jarirí. Eile eira de uma família muitio póbre e sempre dizia que um dia iria ficá muito rico e, de fato, enriqueceu muitio. Primero montou um supermercado, agóra tem vários. É uma péssoa marvada, capaz di quarqué cousa pra enriquecê maisi. Mesmo com todo dinheiro que ganhou, jamais deu um centavo sequer pra família da quar eile veio e que ãinda hoje vive na maior pobreza. Esse recado qui eile te deu é um primero aviso. Na certa, virão outros. Eile num é o primero e nem será o úrtimo a nos importuná. Poisi que venha, nósis estamos preparados.

  61. Entoncis, a vida retornou a transcorrê calmamente na casa de mestre Bódim. O verão tinha cumessado, e o calor intenso fazia com que, todos os dias, eiles fossem ao rio se refrescarem. Tuxo levava suas varas de péscá e sempre conseguia apanhá vários peixes, que eram preparados por Néja e Catarina. Em alguns dias, arrebentava fortes tempestades, com muitos trovões e raios. Cuando isso acontecia, o véu d’água surgia tão forte que quase chegava a doer na pele.
    Cégo Vardí era o que mais se divertia:

    – Eu não enxergo a chuva, maisi sinto o quanto éila é deliciosa. Meu cuórpo todo é massajeado por éila, como se as mãos de uma mulhér estivesse me acaricianu.

    – É véudadi, Vardí, Eu tumém me sinto anssim. A chuva cai sobri meu corpo e escorre por ele cumu se estivesse desenhando a minha péle.

    – Sim, Clódiu. É isso mesmo.

  62. Indaí, passados três meses, o ventre de Catarina já havia ficado muito saliente, mas eila sentia-se bem. Mestre Bódim a examinava todos os dias e dizia que a gravidez estava seguindo seu rumo normal. Pórem, todo cuidado será necessário, afinal de contas, três bebês disputam o mesmo útero e se remexem constantemente em busca de espaço.

    – Sabe, mestre, estou com muita vontade de ir à cachoeira. Eu sei que fica um pouco distante, mas, caminhando devagar, penso que o esforço não será muito forçado, o que você pensa disso?

    – Se tomarmos todos os cuidados, creio que não haverá problemas.

    Entoncis, Jarirí concordou com Catarina:

    – Já que você está disposta, podemos ir todos todos juntos. Desse modo, seremos muitos a amparar você.

  63. No dia seguinte, pur vórta das cinco da manhã, tudos eiles já istavam de pé para começarem os preparativos para o passeio até a cachuuueira. O almuoço já estava pronto e dentru das sacólas. Cascatim, já sabedor di que iria acumpanhá-los, pulava e curria sem pará, disisperado para sair logo.
    Entoncis, mestre Bódim chamou tudos eiles e disse:

    – Nósis temos de tumá argumas importantes precauções em rélação a Catarina. Enquanto estivermos caminhando, quatro homens devem ficá circundando éila cum muitia atenção, principarmiente cuando estivermos descendo as pedras no caminho já próchimo a Catarata, poisi ali as pédras são molhadas e escorregadias, exigindo muitos cuidados.

  64. Entoncis, tudo correu cérto, o caminho éira difícil, maisi eiles cunsiguiru chégá cum certa facilidade. Catarina nem paricia qui istava grávida, tão boa era sua destreza em descer pelas pédras.

    Cuando istavam próchimos da cachoeira, já dava pá iscuitá o impressionante baruio déila. O chuá qui éila produzia éra muitio grande, poisi era muito alta, e a água despencava fórte, batendo nas róchas cum estrondos que pariciam vários trovões explodindo ao mesmo tempo.

    – Uilsso é cousa de Deus, dizia Jarirí. Cuando eile criou essa belezura, foi pá móstrá o quanto eile é bondoso para com os bichos humanos e não humanos.

    – Sim, Jarirí. Eu concórdo cum ucê.

  65. Indaí, arguns deiles se adiantaru e foram se esgueirando, com todo cuidado, no espaço entre a parede de rocha e a enorme cortina d´água que caía lá do alto.

    – É a cousa maisi deliciosa do mundo, gritou Clódiu. Daqui detrás da cortina, não dá ver nada além do grosso jorro de aguá que desaba do alto.

    – É véudadi, Clódiu. Ucê tumém tá vendo os peixes caindo lá de cima? Eles caem dessa altura toda e não se machucam, dá até pá pégá-los cum as mãos quando eiles passam. Eu, que sou Tuxo pescadô, me sinto engrandecido com isso, maisi, ao mesmo tempo, apequenado. Daqui eu não preciso de varas, basta estender os braços e apanhá-los.

  66. Entoncis, Catarina, que não se atrevia a entrar no vão da cachuuueira, ficava admirando o espetáculo, encantada com a impressionante visão provocada pelo desabar das águas.

    – É interessante, mestre Bódim. Os meus bebês estão se remexendo sem parar, como que desejando estarem lá embaixo. Sem dúvida, conseguem sentir o vigor das águas e a energia no entorno da cachuuuueira.

    – Sim, Catarina, conseguem mesmu. E isso será muitio bão pra eiles. Adispois do nascimento, vamos trazê-los pra cá novamente. Tenho certeza de qui se sentirão muito bem aqui, poisi a lembrança da energia desse lugar sempre estará presente na mente deiles.

  67. Entoncis, chegou a hora em que a fome bateu em tudos eiles no mesmo instante.

    – Vamo armuçá, jiente, as nuóssas barrigas tão roncando, implorando desesperadamiente pur cumida. Eisse paraíso despertou mesmo a nuóssa vontadi di comer.

    – É véudadi, mestre. Ãinda bem qui nósis truxemos duas panélas de alumínio bem grande. Além de pratos de alumínio e talheres. Eu vou caçá galhos secos pá fazê uma boa fugueira, lógo o nuósso armoço, feito pur Néja e Catarina, vai tá quentinho. Afinar, Néja, quar é o cardápio?

    – Bão, Jarirí. Tem arroz, tutú de féijão, frango frito, torresmo, salada de almeirão cum tomate, canjiquinha, abóbora cum quiabo, e, de sobremesa, doce de batata doce e doce de mamão em calda.

    – É um bélo cardápio, Néja.

  68. Entoncis, chegou a hora em que a fome bateu em tudos eiles no mesmo instante.

    – Vamo armuçá, jiente, as nuóssas barrigas tão roncando, implorando desesperadamiente pur cumida. Eisse paraíso despertou mesmo a nuóssa vontadi di comer.

    – É véudadi, mestre. Ãinda bem qui nósis truxemos duas panélas de alumínio bem grande. Além de pratos de alumínio e talheres. Eu vou caçá galhos secos pá fazê uma boa fugueira, lógo o nuósso armoço, feito pur Néja e Catarina, vai tá quentinho. Afinar, Néja, quar é o cardápio?

    – Bão, Jarirí. Tem arroz, tutú de féijão, frango frito, torresmo, salada de almeirão cum tomate, canjiquinha, abóbora cum quiabo, e, de sobremesa, doce de batata doce e doce de mamão em calda.

    – É um bélo cardápio, Néja

  69. Entoncis, a comida estava boa demais, e eiles cumeram a não mais poder, a ponto de não sobrar um grão de arroiz sequer.

    – Ouçam bem, Catarina e Néja. Foi a cumida maisis gostoza qui eu já cumí na mia vida. No cumeço, e anssim que eu dei as premeiras colheradas, me senti como que transportado pá minha infância. Quando minha mãe me gritava: “Clódiu, entra pá dentro agóra, o armoço tá na mesa e, se ucê não entrá já, teus irmão vão cumê tudo caso ucê num esteja aqui sentado.” Eu, entoncis, curria depressa, doido pá saboreá as delícias qui mia mãe preparava. Maisi éila faleceu cedo demais e, a partir dessa trajédia, eu jamais experimentei outra cumida igual. Agóra, retrocedi no tempo, e a lembrança déila tá tão forte, que eu não estou conseguindo segurá as lágrimas.

    Indaí, mestre Bódim acariciou a cabeça de Clódiu e falou:

    – Eu entendo o que ucê tá sentindo, Clódiu. Não segure o choro. Eisse paraíso no quar nózis estamos nos conduz a muitios sentimentos e, cum certeza, essa energia provinda de tanta águas chega ao fundo de nóssas mentes, despertando sensibilidades profundas. Eu tumém istou me lembrando de minha infância.

  70. Entoncis, após Clódiu ter se recuperado da torrente de emoções que o afetara tanto, passou a falar sem pará, contando fatos sobre sua infância. Sua irmã maisi velha, que éra muito inteligente e sempre foi a mélhor aluna de todas as classes pelas quais passou, conseguiu se formá em medicina e, a partir de então, colaborou decisivamente para o sustento da família. Seu pai, que trabaiava no corte de cana, tumém havia falicido dois anos após sua mãe, vitimado por meningite.
    E Clódiu continuou contando sem pará sobre a história de sua infância.

    Todos o ouviam, sem interrompê-lo, cum muita atenção e deixaram que ele contasse tudo que desejava. Indaí, após o desabafo, Clódiu passou a se sentir bem e retornou ao seu normal.

    Indaí, Néja tomou a palavra e iniciou a contar sobre sua vida. Entoncis, todos perceberam que o desejo de desabafo interior provinha das impressionantes águas da cachoeira, cujos sons despertavam a vontade de falar sobre suas respectivas infâncias. Que assim seja – disse mestre Bódim.

  71. – Entoncis, Néja contou que sua família é composta por seu pai, sua mãe, éila e maisi três irmãs. O póbrema é que ela e suas irmãs sempre ouviam elogios sobre a beleza déilas, principarmiente a déila. Quando ainda adolescentes, surgiam todo tipo de homens, sobretudo os ricos, pedindo a mão de uma déilas em casamento. O assédio era tanto que o pai déilas não teve outra alternativa a não ser andar armado. Quando surgia argum homem batento palmas no pórtão, o pai déilas os recebia cum a arma em punho, pronto para espantá-los.

    – Minhas filhas não estão a venda e, se ucêis cuntinuarem insistindo, eu vou mandá chumbo.

    Quando éilas iam pra escóla, eram seguidas por arguns desses pretendentes, que queriam presenteá-las cum todo tipo de mimo. Éilas recusavam atorndoadas e saíam correndo. A véudadi é que a vida déilas se tornou um inferno.

  72. Meu pai, entoncis, cumeçou a pensar em mudarmos pra outra ciudadi distante, maisi minha mãe dizia que uilsso de nada adantaria, poisi haveria outros homens tar quais os que existiam ali. Meu pai cansou-se de ir à delegacia pedir socorro ao delegado, maisi sempre em vão, purqui eile respondia qui não podia se indispor contra os ricaços da ciudadi e completava dizendo qui éra muito pirigoso.

    Indaí, minha mãe pensou que nósis pudíamos usar uma espécie de burca que cobrisse nuóssos córpos e rostos. E, cumu éila éira costureira, tratou de fazer uilsso. E foi anssim qui eu e minhas irmãs passamos nossa adolescência. Sentíamos muito calor debaixo daquelas roupas, maisi, pelo menos, o assédio diminuiu bastante adispois de um tempo.

    E agora digo a vocêis que isso tudo foi muito traumatizante para mim e minhas irmãs. Eu creio que dá pra vocês imaginarem.

  73. Sim, Néja, dá pra sentí o drama – disse Jarirí. No meu caso, minha infância foi tronquila. Meu pai era marceneiro e um dia me perguntou se eu tumém quiria ser, já qui eu não saía do lado dele enquanto eile trabaiava. Eu ficava prestando muita atenssão em tudo qui eile fazia. No fundo, eile já tinha pércebido que eu seguiria a carreira deile, entoncis cumessou a me ensiná-la.

    – A primera cousa qui ucê tem de aprender é que o trabaio em marcenaria é muito perigoso e éxije muita atenção. Um único momento de descuido pódi ser fatal e provocar a perda de dedos, mãos e até braços. As serras elétricas, pur exempro, exigem muita concentração. Éilas são perigóssimas e, se ucê percebê qui não está num dia bão, melhór será nem chegá perto déilas. Eu vou começar ensinando você a esculpir em madeira.

    Entoncis, eile um pegô um pedaço de madeira boa pra ser esculpida e me deu ferramentas talhadeiras dizendo:
    – Eu quero que ucê esculpa um cavalo nesta madeira. Não importa se vai ficar bom, eu quero que ucê comece a lidar com essas ferramentas.

  74. Fiquei muito curioso, Jarirí. Cumu ficô o seu cavalo adispois de pronto?

    – Bão, Clódiu, ficou parecenu quarqué cousa, menos um cavalo. As pernas, pur exempro, ficaram maisi paricidas cum as de um elefante. Mesmo meu pai tendo dito qui num importava o résurtado, eu quiria impresioná-lo, mas vi que fiz o contrário, passei muito longe do que imaginava que poderia conseguir. Eu nem quiria móstrá pra ele o que eu tinha feito, tão decepcionado eu estava. Pensei em sair correndo da oficina, levando comigo o mostrengo que eu tinha feito. Maisi, de repente, um pensamento luminoso raspou minha mente me trazendo uma visão oposta: Eu não vou ser um covarde, enfrentarei a situação, meu pai perceberá isso e saberá que eu assumo os meus erros.

    Observe bem, Clódiu, a grandeza de caráter do meu pai. Certamente, ele sabia que seu filho faria tudo para impressioná-lo, pois já tinha percebido o quanto eu o admirava, e que o resultado do primeiro teste que tinha me passado, mostraria diversas circunstâncias acerca da minha relação com ele e, certamente, mostrou.

    – Quando eu, bastante constrangido, entreguei-lhe o meu trabalho, passou a examiná-lo com todo cuidado, depois olhou-me com muita atenção e disse:
    – Veja bem, meu filho. Para um menino de sete anos, o seu trabalho não foi ruim. Dá para observar que sua tentativa em se aproximar da imagem do que seria um cavalo foi bastante proveitosa. Não se parece com um cavalo, mas sua primeira tentativa foi muito válida. Imagine quanto tempo você tem pela vida afora para esculpir todas as imagens que desejar. Amanhã, eu vou cortar vinte retângulos de madeira e, em cada um deles, você irá esculpir apenas uma perna de cavalo. No final, você irá notar o quanto melhorou.

  75. – Muitio bem, Jarirí, continue contando. Você, afinal, conseguiu esculpir boas pernas de cavalo?

    – Sim, Clódiu. Conforme eu ia tentando, meu trabalho melhorava, e as quatro pernas finais ficaram quase perfeitas. Eu me senti muito orgulhoso. Antes de entregá-las para a avaliação do meu pai, eu me senti como se estivesse nas nuvens e arrebatado por muito orgulho. Naquele momento, eu soube que havia descoberto o caminho para minha profissão, que era a que eu realmente desejava.

    Entoncis, chamei meu pai e passei-lhe o meu trabalho. Ele abriu um grande sorriso, me deu um grande abraço e me disse: Marque bem este dia, Jarirí. De hoje em diante, eu terei um sério concorrente. Agora, vá brincar com seus amigos, jogar bola e se divertir. Depois de amanhã, você continuará com as lições.

    E foi assim que me tornei um marceneiro e escultor.

  76. Entoncis, mestre Bódim avisou que a conversa estava boa, mas estava ficando tarde e seria mélhor eiles voltarem pra casa antes de começar a anoitecer.

    – As gatas estão guardando a casa, maisi estou préócupado poisi, cuandu cuméssa a cair a noite, póde surgir argum inimigo nosso. O tar de Haroldo, que avisou Jarirí, alguns dias atrás, que quer comprar minhas térras, é capaz de tudo e há o risco dele invadir nossas terras cum os capangas deile. Eu o conheço muitio bem. É um demônio endinheirado vindo diretamente do Inferno e que baba pelo canto direito da boca e sente prazer em matar. Estou muito preocupado.

    – É certo que ucê treinou suas gatas a tocaiar demônios, maisi, mesmo anssim, nósis temos que nos apressar. Vamos embora, gente!

  77. Entoncis, eiles cumessaru a tomar o caminho de casa, que durava cerca de duas horas e meia. Quando faltava perto de meia hora para chegarem, Cascatim passou a latir sem pará, correndo na frente e retornando desesperado, cumu que avisando que tinha arguma cousa estranha acontecendo na casa de mestre Bódim,

    – Vamos pará um pouco, gente, disse mestre Bódim. Eu tô iscuitando um barulho esquisito à frente, que me parece provindo de um aviãozinho, o chamado teco-teco. Ucêis tumém tão cunsiguinu ouvir?

    – Eu tumém estou iscuitano bem de lonje, mestre. Uilsso é muitio estranho. Ólhem para Cascatim desesperado, é maisi du que cérto qui eile captou perigo à frente.

    – Sim, Jarirí – disse Néja. Agóra eu tô iscuitando e enxergando Jurema e maisi três gatas se aproximando de nózis. O que vamu fazê?

    Indaí, quando as gatas toparam cum eiles, logo notaram qui éilas estavam muito nervósas e se rodopiando sem pará.

  78. Indaí, Cego Vardí disse qui eiles deveriam caminhar divagar e usarem o caminho em qui tinha arves maisi grandis e frondosas, poisi, desse módo, o aviãozinho não os enxergariam.

    – Boa idéia, Vardí. Eu agóra me lembrei qui tarvez eiles tenham dinamite pá jogá em cima da jiente. E outra coisa, me lembrei neste instante qui eisse demônio do Haroldo possui uma pedreira adondi os empregados deile usam dinamite para extrair as pedras. É bem pussível qui eisse seja o plano deile: Nos matar usando eisses explosivos.

    – Se for anssim, mestre, nósis estamo pérdidos. É bem pussível qui sua casa já tenha cido destruída.

    – Sim, Vardí, é verdadi, Uilsso é pussível mesmo.

    Entoncis, cuando eiles estavam maisi próximos da casa, notaram algumas papeletas caídas no chão e que, certamente, tinham sido lançadas pelo aviãozinho teco-teco. Mestre Bódim pegô uma déilas e a leu:

    “Bódim, eu te dou uma sumana pá ucê ir na minha casa cunversá cumigo para a gente entrar num acordo. Eu quero muito comprar suas terras, maisi, se ucê recusar, eu vou deixá esse teu lugar comprétamente destruído. Não vai sobrá nada, tudo se transformará em buraco e cinzas. Assinado: Haroldo.”

  79. Entoncis, eiles foram caminhandu divagá inté cunsiguirem enxergá a casa di lonje, qui istava inteira.

    – Graças a Deuso, mestre. Eiles não jogaru dinamites, tá tudo do jeito qui nósis deixamu. Maisi agóra, mestre, como faremos pá resorvê eisse imbróglio? O demonho vai cumprir o plano deile? Só temos uma sumana pá arresorvê eisse grave póbrema, qui me parece sem salução. Todos nósis istamo no bico do corvo, maisi pérdidos du qui agulha nu mei do capinzal.

    Indaí, mestre Bódim ficou muitio pensativo. Sentou-se numa cadeira da varanda e ficou estático e cum o ólhar pérdido . Sua concentração era tanta que nem escuitava o que diziam pra eile. Clódiu, entoncis, o chacoalhou e disse a ele bem devagar.

    – Mestre, eu só cunsigo encontrá uma salução: A jiente matá o demonho antes qui ele nos matem. Eu me ofereço pá fazê eisse sélviço.

    – Não, Clódiu – disse Jarirí. Nósis não semos assassinos, uilsso tá compretamente fóra de questão. Eu tenho cérteza de qui mestre Bódim irá encontrá a saída.

    – Tomara qui sim, Jarirí.

  80. Adispois de uma hora e meia, mestre Bódim se levantou da cadeira com um sorriso no rosto e falô: Eu encontrei a salução do póbrema. Nósis vamu fazê uma troca com o demonho.

    – Como assim, Bódim? Nósis não temos nada pá trocá cum eile. É impossívéu!

    – Temos sim, Vardí. Eu vou te contá a história: Eu vim pra cá faz mais de cinquenta anos. Eu e meu irmão Pedro gostávamos de passear pela mata dessa região, inté qui um dia nósis encontramo um morro que fica a cerca de seis quilômetro da cachueira em qui nósis estavámos. Entoncis, nósis resorvemu explorá-lo. Subimos até o pico e ficamos sentados apreciando a Natureza. Indaí, Pedro, que trabaiva numa joalheria, arresorveu andá pelo morro porque eile gostava de colecionar pedras bunitas e lá havia muitas delas. De repente eile cumessô a gritar por mim. “Bódim, córre inté aqui depressa, eisse morro tá chei de diamantes! Nósis vamu ficá ricos!”
    Eu achei qui eile tava brincando cumigo.
    – Deixa de brincadeira, Pedro!
    – Eu não tô brincando não! Desce rápido, eu vou te mostrá.

  81. Entoncis, eu descí inté adondi eile istava. Eile olhô pra mim cum o olhar arregalado, mostrou as duas mão fechadas e me disse:

    – Óia éssas pédras qui eu tenho aqui, elas são diamantes legítimos. Eu num tenhu nenhuma dúvida dilsso. Ná jualheria em qui eu trabaio eu lido cum diamantes, maisi são tudos piquininhos. Óia o tamanho di cada uma dessas pedras, são enórmes e valem milhões! E o melhor é que tem muitias outras aqui neisse morro. Nósis num pudemo falar sobri uilsso pá ninguém. Tá me entendeno? Nósis temos de ir embora agóra e voltarmos cum enxadadas e picaretas amanhã bem cedinho.

    – Adonde nósis vamu vender éilas? Não póde ser néssa cidade porque aqui tem jiente endinheirada, maisi são tudos jiente marvada e é pirigoso qui até matem a jiente. E outra cousa, vão querê sabê adondi nósis encontramos eisses diamantes.

    – Não se préocupe cum uilsso, nósis vamu vendê-las na capital do estado.

  82. – Entoncis, mestre, ucê é rico, maisi a jiente não sabia.

    – Na véudadi, Vardí, eu jamais quis ter dinheru. Ucêis não sabiam purque eisse assunto nunca me preocupô, poisi tendo dinheru ou não, minha vida sempre seria a mesma, a de viver aqui em contatu com a natureza. Viver aqui neisse paraíso me basta, eu não nécessito de maisi nada além disso. Adispois que eu e Pedro fomos pra capital vendê as pedras, toda a empressionante quantia que recebemos, pusemos no banco. Mesmo anssim, Pedro achou que nósis não deveríamos vendê todas as pedras, poisi seria mélhor guardá algumas para as emergências, como a de crises ecônomicas que sempre acontecem neste nósso país. Além do dineru no banco, eu tenho uma parti déilas guardadas aqui. Eu vou lá drentu buscá-las.

    Indaí, mestre Bódim retornô cum uma caixa azul. Abriu-a e mostrô qui havia trinta e três pedras de diamantes enrolados num feltro branco.

    – Essas pedras foram lapidadas por Pedro. Pra ucêis terem uma ideia, três delas ultrapassam todo o valor déissas minhas terras. Aliás, todas éissas terras são minhas de verdade. Quando eu retornei da capital, procurei Sô Candelário, o dono déilas, que era muito amigo do meu pai e a quem eu conhecia e estimava muito. Ele quis me vendê-las e fizemos as negociações. Eu tenho a escritura de todas éissas terras. O demonho qui baba… pelo lado direito da boca vai se dar muito mal, nosis vamu pra ciudadi comprá tudas as autoridades cum um bom dinheiro e é claro qui eiles vão adorá a négóciação. Vamu virá o jogo.

  83. Entoncis, na madrugada do mesmo dia, mestre Bódim, Jarirí e Cascatim tomaru o caminho da ciudade faltando uma hora e meia para o sol nascer. As únicas cousas qui eiles levavam eram um cantil cum aguá e uma sacola de couro.

    – Por onde nósis vamu cumessar, mestre? Qual vai ser a primeira autoridadi qui nósis vamu abordar?

    – Vai ser o delegado. Eu cunheço eile e a família dele desde muito tempo atraiz. Antes de se torná delegado, era uma boa pessoa, maisi, hoje em dia, deixou de ser. Eu penso qui não vai ser difícil negociar cum eile.

    – Tomara que sim. Quem sabe a jiente venha a resolvê o póbrema apenas por meio deile.

    Indaí, adispois da exaustiva caminhada, eiles chegaram na ciudadi por volta das oito horas e foram diretos para a delegacia. Cuando entraram havia um investigadô sentado numa poltrona, que disse que o delegado não demoraria a chegá. E, de fato, lógo o delegado chegô. Olhô pá mestre Bódim e disse:

    – Como vai ucê. Bódim? Faizi muitos anos qui a jiente num se vê. O qui te traz aqui? Em em que eu posso te ajudá?

  84. Entoncis, o delegado, cujo nome era doutor José, chamou mestre Bódim, mas somente eile, para entrar em sua sala privativa. O rapaz e o cachorro, se quisessem, poderiam ficar esperando na padaria da esquina. Ao ouvir ser chamado de cachorro, Cascatim deu uma rosnada e se deitou no chão. Anssim que entraram na sala privativa, doutor Jairo surpreendeu, dizendo:

    – Bódim, eu sei o que te traz aqui. É o entrevero qui ucê tem tido cum Haroldo. Mas me conta sobre uilsso, o qui ucê tem a dizer?

    – Não é um simples entrevero, doutor. Eu tenho sido severamente ameaçado por Haroldo. Ele quer comprá as minhas terras não o importa como. Ele tem usado de meios criminosos para me forçar a vendê-las.

    Indaí, o delegado interrompeu mestre Bódim e passou a contar tudo o que sabia sobre o assunto. Falou sobre o aviãozinho, as papeletas ameaçadoras que foram jogadas nas terras de mestre Bódim, o encontro de Haroldo com Jarirí. Enfim, eile conhecia tudos os detalhes sobre os acontecimentos.

    – Foi Haroldo quem contou isso ao senhor? Sendo assim, o senhor está sabendo de tudo.

    – Sim, Bódim. Eu sou um homem muito bem informado. Foi o próprio Haroldo quem me contou, mas eu quero que você saiba que meu relacionamento cum eile é muito ruim. Eu posso até dizer que o odeio muito.

  85. – Entoncis, doutor, eu lhe pergunto o que a lei pode fazer por mim. O senhor, realmente, sabe de tudo, mas há um detalhi qui o senhor desconhece.

    – Não Bódim, eu sei de tudo, a não ser que ele tenha novamente se insurgido contra você nos últimos dias.

    – O senhor desconhece que eu sou o proprietário legítimo daquelas terras. Eu vou lhe mostrar a prova disso.

    Indaí, mestre Bódim abriu a bolsa de couro, retirou o documento, o colocou sobre a mesa, e disse: Veja bem, doutor, eu sou o legítimo proprietário daquelas terras. Eis a escritura registrada, examine-a à vontade, e depois me diga em quais outros crimes Haroldo tem incorrido.

    – Ora veja! Estou pasmo! Eu e Haroldo pensávamos que você fosse apenas um mero invasor de terras e que, portanto, poderia facilmente ser retirado de lá, não importando os métodos utilizados para tanto.

    – Sendo assim, o senhor me desculpe, pois agora percebo que o senhor está, de certa forma, mancomunado com Haroldo.

  86. – Mancomunado com Haroldo? Que história é essa? Você está ofendendo uma autoridade constituída, portanto posso prendê-lo agora mesmo.

    – Sinto muito, doutor. Peço desculpas ao senhor pela minha desastrada e inconsequente conclusão. Ocorre que eu estava sob enorme pressão. Afinal, na situação em que me encontrava, quem não estaria? A possibilidade de que eu viesse a perder as minhas terras estava me levando ao desespero. Releve o que eu disse, foram palavras de um indivíduo desesperado. Felizmente, agora que o senhor tem ciência, através de legítima escritura, de que sou o verdadeiro proprietário daquelas terras, creio que o assunto está encerrado.

    – Não! Não está encerrado. Haroldo não desiste nunca. Se eu fosse você, entregaria as minhas terras a ele e pouparia a minha vida e a dos que moram comigo.

    – Então estamos falando de um homicida em potencial? Não cabe ao senhor se empenhar para que isso não ocorra?

    – Talvez. Na verdade, eu não me meto na vida de Haroldo.

  87. – Entoncis, o senhor me coloca num beco sem saída. Pois, mesmo ciente da prova cabal de que sou o verdadeiro dono daquelas terras, mantém o desejo de me expulsar de lá juntamente com meus amigos. Mesmo que para isso tenha que nos matar.

    – Não foi isso que eu disse, Bódim. Conforme mencionei, Haroldo, quando deseja atingir seus objetivos, não mede esforços para tanto, mesmo que tenha de tomar atitudes extremas

    – Estando assim encurralado, eu pretendo propor uma negociação aos senhores. Eu disponho de um valor advindo de uma herança que recebi de meus bisavós. São doze minhões de reais, valor que, aliás, ultrapassa em muito o valor das minhas terras. Repasso ao senhor seis minhões e, a Haroldo, mais seis minhões. O que me diz? Podemos fechar a negociação agora, bastando irmos ao banco e fazermos a transferência às suas respectivas contas.

    Logo que mestre Bódim disse isso, os olhos do delegado brilharam, depois abriu um grande sorriso de satisfação e disse:

    – Estou emocionado! É dessa forma que se negocia com quem tem bom senso.

  88. – Pois bem, delegado, o banco em que tenho conta fica a trezentos metros depois da padaria.

    – Ótimo. Vá lá na padaria encontrar seu amigo e me aguardem. Enquanto isso, vou telefonar a Haroldo para contar-lhe sobre os detalhes da nossa feliz negociação. Mas não precisa se preocupar, Bódim, tenho certeza absoluta de que ele dará pulos de alegria.

    – Não tenho dúvidas disso. Creio que ele também irá babar muito pelo lado direito da boca, tamanha alegria que sentirá.

    – Ah, sim! É verdade! Muito engraçado! Ele tem esse estranho cacoete de verter saliva pela boca, que se torna mais abundante a depender da quantia de dinheiro que embolsa. Vou levar-lhe mais quatro lenços, ele vai empapar muitos.

    Entoncis, mestre Bódim saiu, chegou a padaria e notou que Jarirí estava muito ansioso. O que você me conta, Mestre? Pela sua expressão, noto que está contente. Conte-me tudo em detalhes. Vou pedir mais uma cerveja.

  89. Entoncis, mestre Bódim, sem esquecer um detalhe sequer, contou a Jarirí tudo o que se passou na sala privativa do delegado. Jarirí ficou pasmo.

    – Meu Deus, mestre, esses homens não valem um piruá de pipoca queimada! Nós estamos lidando com verdadeiros achincalhadores. Você está certo de que cumprirão com o acordo? Afinal, não lhe deram garantia alguma.

    – É verdade. Porém, após a transferência do meu dinheiro para as contas deles, teremos uma prova de que receberam valores provenientes da minha conta pessoal. Como conseguirão explicar a origem desse valor? Além disso, eu tenho a escritura registrada comprovando que sou o proprietário daquelas terras. Creio que nos deixarão em paz. O interesse maior deles se refere ao impressionante montante de dinheiro que receberão. Neste momento, o demonho que baba pelo lado direito da boca deve estar vertendo saliva aos borbotões. Não demora, logo estarão aqui.

    – Eu me sinto revoltado com tudo isso. É certo que você, mestre, não dá importância ao dinheiro, mas, mesmo assim, a raiva aflora. Estamos lidando com bandidos achacadores perigosíssimos.

  90. Entoncis, o delegado e Haroldo surgiram na porta da padaria muito sorridentes, como tivessem aportado no céu. O delegado foi o primeiro a estender a mão para os cumprimentos. Começou por mestre Bódim, que manteve uma expressão estática, demonstrando uma certa ojeriza, o que não abalou o delegado, que se manteve muito calmo e manso como um burro bem adestrado. Logo após, ao estender a mão a Jarirí, este não se moveu e fixou o olhar nos olhos do delegado com tanto desprezo que causou um visível constrangimento, o que também manteve o delegado inalterável. Após um instante de silêncio, Haroldo retirou um lenço do bolso, limpou a boca e as mãos e tocou nos ombros de mestre Bódim e Jarirí, que tentaram se esquivar, mas não conseguiram.

    – Vejo que vocês estão muito descontentes conosco. O mundo em que vivemos não é nada, a não ser um grande balcão de negócios. Alguns lucram muito, outros muito pouco ou nada. Bódim deveria estar exultante por ter conseguido manter suas terras. Soube negociar e curvou-se valentemente diante das circunstâncias.

  91. – Ouça bem, delegado, mestre Bódim não se curva nunca! As circunstâncias sobre as quais o senhor se referiu nada mais são do que uma mescla de enorme desonestidade aliada ao crime e, o que causa espanto, é o fato de o senhor estar investido na qualidade de autoridade. Afinal, que tipo de autoridade o senhor exerce? A quem ela serve? Certamente, serve àqueles que, no balcão de negócios ao qual o senhor se referiu, estão no topo dos que lucram muito à custa daqueles que nada lucram por culpa de pessoas como o senhor. O balcão não existe por puro acaso. Foi criado por pessoas como o senhor e outros de sua mesma laia.

    – Pare e acalme-se, Jarirí, desse modo você irá por tudo a perder.

    – Sim. É verdade, Bódim – disse o delegado. Se ele continuar, o acordo será desfeito.

    Enquanto Jarirí falava, Haroldo tinha parado de babar, talvez antevendo que o acordo estava indo por água abaixo.

  92. Entoncis, um homem parecendo idoso e visivelmente alcoolizado, que estava do outro lado do balcão, quebrou o silêncio, dizendo:

    – Óia bem prucêis vê a mia vida mia. Eu trabaiei pur dizoito anos na fábrica de mantega e quejo aqui désta ciudadi e só tive armento de saulário quatro veiz. Éra um saulário di fome e o sélviço era térrivéu, eu carregava os caminhões cum grandis caxas pesadas de pródutos. As hóra extra qui eu sempre tive di fazê éram pagas pela métadi e eu só tinha férias a cada dois anos. Maisi tem um outro lado da mia história. Eu e a mia querida mulhé criamos nóssos filhos cum carinho e muitia atenção. Os nóssos quatro filho góstam muitio de nós doisi. Nóssa filha maisi vélha, que tá cum vinte e um anos, entrô numa boa universidade púbrica de medicina da capitar. Meu filho de dezenove tá fazenu o primero ano de engenharia eletrónica, tumém numa universidade púbrica. Os otro dois, um menino e uma minina, istão fazenu o segundo grau e istão entre os mióris alunos da classe. Ucêis pódi istar si priguntanu o purquê di eu está aqui tumano cachaça, já qui eu tenhu una família tão boa. E eu, entoncis, me adianto e respondo: É pra aplacar as doris da mia vida de trabaio. Eu fui um escravu durante toda a mia vida e uilsso me deixo marcas prófundas. Eu fico cá, me lembranu dos meus amigo di trabaio e do tanto qui a gente sofria. Vários deiles si tornaru cachaceiros. Maisi num si préocupem, eu só bebo no dia em qui recebo mia minguada apusentadoria. Mestre Bódim e Jarirí não istão me recunhecenu, maisi me lembro duceis.

  93. – Sim. É claro! Você é o Valdo! Agora o reconheci. Não o estava reconhecendo porque você envelheceu muito. Você era grande amigo do meu pai.

    – Uilsso memo, Jarirí. Eu góstava muitio du seu pai. Eu ia a marcenaria deile batê papo sobre futibór e otros assunto. Você éira o minino filho deile o quar eile ensinava a prófissão de marcenaria.

    Entoncis, mestre Bódim chamou Jarirí de lado e falou baixinho no ouvido dele: Vamos dar uma canseira nos dois bandidos. Chama o Valdo aqui para perto de nós. Vamos conversar muito e deixar o tempo passar.

    Logo depois, mestre Bódim aproximou-se do delegado e de haroldo e disse-lhes para esperarem na mesinha de duas cadeiras que estava no canto da parede. Eu e Jarirí vamos conversar um pouco com o nosso amigo. Logo em seguida, nós iremos ao banco fazer as transferências do dinheiro. E foi então que, ao ouvir isso, Haroldo passou a não se sentir bem, começou a golfar baba em profusão e ficou engasgado. O delegado ficou atônito e passou a dar tapas nas costas dele para que o engasgo terminasse, mas não terminava. Faça alguma coisa, Bódim! – gritou o delegado.

  94. Entoncis, Jarirí chegou depressa e disse:

    – Não, mestre, não faça nada! Em troca de dinheiro, este homem é capaz de matar a própria mãe. Ouça o que eu lhe disse, não há nenhuma garantia de que ele não nos matará. As provas da escritura e da transferência do dinheiro poderão ser adulteradas. Ele têm poder para tanto, pois convive com gente ainda mais poderosa do que ele e pode facilmente conseguir uma “ajudazinha”. Ele é tão obcecado por dinheiro que sofre de alguma doença mental por causa disso.

    – Pare com isso, Jarirí! – gritou o desesperado delegado. Não é hora para discutirmos sobre essas questões. Trata-se de salvar a vida de um ser humano. Bódim é uma boa pessoa e cuidará de salvá-lo.

    – É verdade que sou uma boa pessoa, mas não sou burro. As preocupações de Jarirí têm fundamento. Vou auscultar os pulmões dele para saber quanto tempo ainda lhe resta.

    Entoncis, após pôr o ouvido nas costas do agonizante, mestre Bódim declarou:

    – De dez a quinze minutos. Está respirando fracamente e o nível de oxigênio, portanto, está muito baixo.

  95. Entoncis, o delegado, completamente desolado, pôs as mãos no rosto e começou a chorar.

    – Não sei o que fazer. O hospital municipal fica longe daqui e, além disso, mais parece uma pocilga, de tão imundo que é. Levá-lo a algum médico também não é uma opção, pois todos os desta cidade são péssimos e não passam de “filhinhos de papai”.

    – Ele não pode ser transportado. Se for chocalhado, delegado, o líquido irá impregnar os pulmões dele ainda mais.

    Indaí, o delegado enxugou as lágrimas. Aprumou-se e disse a mestre Bódim:

    – Quer saber, Bódim. Haroldo é meu melhor amigo. Sou o único com quem ele se abre para contar suas peripécias e outros fatos de sua vida. Ele me ouve e jamais deixou de acatar minhas ideias. Estou certo de que posso demovê-lo de qualquer plano que ele tenha imaginado para prejudicar vocês, especialmente o de dinamitar suas terras e matá-los. Você não mais precisará nos dar dinheiro. Eu mesmo darei a ele os seis milhões. Peço-lhe humildemente que você aceite minha proposta e o traga de volta à vida.

    – Ora, veja! Não foi o senhor mesmo que me disse que o odiava?

  96. – Erros incontáveis, eu diria.

    – Mas nem sempre fui assim. Você, Bódim, sabe que eu, quando ainda jovem, era um rapaz de boa índole. Mas, infelizmente, resolvi ingressar na função de delegado. Não foram poucas as vezes em que me arrependi disso, pois eu era feliz e vivia em paz com minha consciência, embora fosse muito pobre. O tempo de vida de Haroldo está quase no fim.

    – Faltam cerca de sete minutos. Aguarde-me. Vou conversar com Jarirí e logo retorno.

    Entoncis, mestre Bódim chamou Jarirí para conversarem em particular:

    – Na conversa que tive com o delegado, surgiu-me a clara percepção de que ele estava sendo sincero comigo. Você bem sabe, Jarirí, que não consigo deixar um ser humano agonizando e a caminho da morte. Isso vai contra todos os meus princípios.

    – Sim, mestre, eu percebo a delicada situação em que você se encontra. Aceito a sua decisão pois confio plenamente na sua capacidade de discernimento e, além disso, na sua poderosa intuição.

  97. Entoncis, mestre Bódim, enquanto voltava correndo para dentro da padaria, gritou para o delegado:

    – Peça aos quatro balconistas da padaria para virem ajudar a levantar Haroldo.

    – Os funcionários pularam o balcão rapidamente e se puseram à disposição.

    Agora – disse mestre Bódim – segurem bem firmemente nos tornozelos dele e o ergam para que fique de cabeça para baixo a um metro do chão. Posto, com certa facilidade, exatamente na posição em que mestre Bódim pedira, Haroldo começou a soltar pela boca um fio de baba fina e um pouco amarelada.

    – Muito bem! Agora chegamos na parte final e mais importante: Jarirí, assim que eu disser “Já!”, irá desferir um soco bem forte no centro do estômago de Haroldo. Após apontar para Jarirí o local exato em que deveria desferir o golpe, mestre Bódim olhou-o fixamente. E, Jarirí, já preparado, gritou para mestre Bódim: Estou pronto, mestre!

    – Entoncis: JÁ!

    E foi como se uma torneira tivesse sido aberta totalmente. Jorrou, pela boca de Haroldo, um um grosso e forte jato de líquido.

  98. Entoncis, Haroldo começou a se debater sem parar como se fosse um galo segurado pelas pernas, mostrando que havia retornado da perigosa situação em que se encontrava. E todos começaram a aplaudir e a dar vivas pela proeza de mestre Bódim, que recebeu muitos abraços e palavras de carinho, especialmente por parte do delegado, cujas lágrimas não cessavam.

    – Você é um gênio, Bódim! A minha gratidão por você é tão grande que não consigo encontrar palavras para agradecer-lhe. Saiba, de uma vez por todas, que Haroldo nunca mais irá molestá-lo. Cuidarei para que ocorra o contrário, fazendo com que ele lhe peça desculpas de joelhos.

    Indaí, Haroldo, que já estava quase lúcido, mas falando com dificuldades, começou a dizer baixinho que queria conversar com mestre Bódim.

    – Pois não, Haroldo. O que você tem a me dizer?

    – Vovocê mi salvô do inférnu. Eu istatatava quasi lá e e e … inxérguei a cacara do do dedemônho.

  99. O delegado, com uma expressão de intensa felicidade e já refeito do desespero em que estava, gritou alto:

    – Tomem as bebidas e comam as guloseimas que quiserem, pagarei a conta de todos. Agora é festa!

    Entoncis, mestre Bódim e Jarirí pediram cerveja e alguns salgadinhos, depois sentaram-se numa mesinha afastada para conversarem à vontade

    – Que aventura, mestre! Agora creio que Haroldo irá nos deixar em paz. Diga-me, mestre, ele irá continuar com o estranho cacoete de babar pelo lado direito da boca? Depois da aflição pela qual passou, talvez tenha sido curado e nunca mais volte a babar.

    Indaí, mestre Bódim deu muitas risadas e respondeu:

    – Talvez o cacoete tenha mudado de lado e passe a babar pelo lado esquerdo.

    Depois de rir muito, Jarirí disse:

    – Você não está querendo dizer que ele passará a ter ideais de esquerda?

  100. Entoncis, depois de rir muito, mestre Bódim respondeu a Jarirí:

    – Se acontecesse de Haroldo mudar tanto, a humanidade ficaria um grãozinho mais feliz, mas não acredito que haverá uma transformação radical. É sexagenário e as ideias dele, portanto, estão muito consolidadas.

    – Compreendo, mestre. E o fato dele ter dito, quando ainda retornando do estado mórbido, que estava indo para o inferno e que tinha visto a cara do demônio? Não é algo que pesa na balança da personalidade de uma pessoa? Ele, aliás, pediu para conversar com você, certamente ansiando desesperadamente por socorro diante do terrível medo que estava sentindo.

    – Exatamente. E é justamente o medo que poderá ocasionar algum tipo de mudança de caráter. A lembrança de algo tão terrível poderá cruzar os caminhos pelos quais estava acostumado, de modo a que venha tomar rumos honestos e, portanto, sem a malvadez que o caracterizava.

  101. Entoncis, mestre Bódim lembrou-se de Valdo.

    – Em que lugar está Valdo? Não estou conseguindo vê-lo. Terá ido embora?

    – Não, mestre, agora está na frente do balcão. Vou até lá buscá-lo.

    – Num fui embóra não, Bódim. Eu fiquei acumpanhanu tudo o qui se passô aqui e, óia bem, eu jamais imajinei qui um homi pudiria salvá outro qui tava na beira da mórti e já tótarmiente desenganadu. Tudos os réligiósos diriam, se vissem o qui acunteceu aqui, qui téstemunharu um milagre. Ieu não, poisi cunheçu ucê desde criancinha e sei du qui ucê é capáis. Eu mi lembru qui una veiz eu vi ucê sarvá um cavalu tão doente qui deitou-se e ficô estendido nu chão esperanu a hóra da mórti. Ucê feiz um composto de érvas, pegô uma mangueira, pôs na boca deile, despejô o líquido na garganta e adispois de duas hóra o cavalo cumeçô a dar sinar de qui queria si alevantá e si alevantou mesmu. E sobreviveu pur muitio tempo ainda. Num é vérdadi, Bódim?

    – Sim, Valdo. É verdadi.

    – E agóra eu vi ucê alevantá um otro animar. O animar Haroldo qui, ucê vai me desculpar, eu deixaria morrer cum muito gosto. Eisse bicho asqueroso jamais prestô ajuda a alguém. Eu sei di muitias história térriveis sobre eile, tudas éilas verdadeiras. Entoncis, eu repito: Porque sarvá-lo?

  102. – Pois bem, Valdo. O póbrema é qui eu me préocupo cum a vida e não cum o animar em si, poisi tenhu pur princípio que quarqué criatura qui isteja em pirigo de vida mérece ser salva, não impórtanu o que seja ou quem seja. A mim só intéressa trazê-la di vórta à vida, desdi qui eu saiba um módo di fazê-lo. Pra ucê ter una idéia, eu já sarvei inté cobra cascavé muito duente. Estando ainda cum vida, lá estarei eu a tentá preservá-la, poisi esse é meu destino, mia sina.

    – Eu tô compreendenu, Bódim. Ah! Maisi o animar Haroldo nunca teve vida drentu deile, sempre teve o désejo di mórti.

    – Muitu bem lembradu, Valdo. E esse désejo o contaminô pur inteiro.

    Entoncis, Jarirí olhô para o rélógio e disse:

    – Mestre, tá ficanu tarde e nósis temos um grandi trajéto a percorrê.

    – Sim, Jarirí, Maisi antes de irmos embóra, nósis temos de passá em um lugar.

  103. Entoncis, mestre Bódim e Jarirí se despediram de Valdo e tentaru sair da padaria sem serem notados. Pórém, o delegado percebeu e saiu córrendo atraz deiles.

    – Ucê, Bódim, num vai sair daqui sem um abraço meu.

    Dado o abraço, o delegado voltou a chorá:

    – De hoji em dianti, ucê pódi contar cumigo pra tudo que precisar. Eis aqui o meu cartão cum tudos os meus telefones. Pode me ligar a quarqué hora da noite ou du dia.

    Indaí, após conseguir se desvencilhar do delegado, mestre Bódim chamou Jarirí e saíram apressados.

    – Adondi nósis vamo, mestre? O que ucê tem em mente?

    – Vamos passá no banco para pegarmos um talão di chéques. Em siguida, vamu na lója de venda de carros comprá duas camionéte féchada, pois tarvez nósis vamu pricisá déilas para arguma émergência. Avançaremos cum éilas na mata até o mais perto pussivél da nóssa casa. Déssa forma, teremos um módo di lócomoção muitio maisi rápido e eficienti.

    – Com que tipo di émérgência ucê tá préocupado, mestre? Será cum Catarina?

  104. Entoncis, mestre Bódim e Jarirí, após chegarem no banco, onde foram atendidos por um gerente disconfiado diante da alta quantia que mestre Bódim possuía em conta e do modo como estava vestido, o que fez com que impusesse uma extensa e estafante burocracia antes de liberá os talões. Mas teve de ouvir de Jarirí una boa descompustura:

    – Ucê, siô gerente, enfie as suas desconfianças e burocracias no rabo. Se eu e mestre Bódim estivéssemos de terninho novo, cabelo cortadinho e cum gravata, o siô não teria démorado nem déiz minutos pra fazê us seus sélviços. O siô está me intendendo?

    – Vamos embóra, Jarirí, num adianta discutir cum eisse tipo de gente, poisi o impórtante é que agóra temos os talões. Vamos depressa inté a loja de carros.

    Indaí, ao chegarem na loja de carros, foram atendidos pelo dono e, embóra tendo de suportar o demorado telefonema dele ao gerente do banco, saíram contentis cum as camionetes.

  105. Entoncis, mestre Bódim e Jarirí, após estacionari as camionétes no milhór lugá pussível, chegaru em casa muito cansados em razão das fatigantes circunstâncias pelas quais passaru na ciudadi.

    – Ucêis istão móstranu em suas caras qui istão muito e muito cansados, parecenu qui ucêis istiveram numa guerra térrivel contra bichos violentos.

    – Sim, Néja. Ié véudadi, disse Jarirí. Não foi fácil résorvê os póbremas pelos quais passamos, principarmente pelo lado de mestre Bódim, qui passô pur situações muito délicadas diante di um agonizanti na beira da mórti. Maisi, nu finar, tudo deu cérto.

    – E sobri aquele monstro chamado Haroldo, qui quer explodí as nuóssas terras? Ucêis cunsiguram négociá cum eile?

    – Se salvá-lo da morte não bastou para que mudasse di ideia, nada maisi será capaz de mudá-lo. Mas eu e mestre Bódim estamo cunvencidos de que cunsiguimos resolvê eisse póbrema.

    – Entoncis agóra eu entendí, é eile o agonizante ao quar ucê se referiu. Eu fiz uma comida muitio boa prucêis. Almocem e adispois se deitem para relaxar e, quando ucêis istiverem descansados, nos contem tudo sobre o que acunteceu.

  106. Adispois de três hóras, mestre Bódim e Jarirí acordaram do profundo sono em que istavam, Néja e Catarina tinham feito café fórti e broas di milho para eiles. Entoncis, todos se reuniram em torno dos dois, curiósos pra saberem em detalhis tudo o que tinha ocorrido na ciudadi. Ao final, todos ficaru em silêncio, espantados diante dos impressionantes acontecimentos. Cégo Vardí foi o primero a comentar:

    – Eu num tenho ninhuma dúvida de que o bicho Haroldo foi domado e, purtanto, nunca maisi nos importunará. Quem passa pela trajédia qui eile passô, sai transfórmado e jamais repetirá os mesmos erros. O medo colóca freios nos modos cumu a pessoa age dianti da vida. O pavor qui sente endireita os caminhos tortuosos pelos quais istava costumado a trilhar. É cumu uma criança qui colóca a mão no fogo pela primera veiz e aprende a nunca maisi repetir o mesmo erro.

    – Eu, Vardí, num tenhu tanta certeza disso. Penso que só o tempo dirá.

  107. – Eu acho, Clódiu, que Vardí está cum a razão, o nósso conflito cum Haroldo é página virada.

    – Anssim, seja – falô Tuxo. Pra comemorarmos, eu vou pro rio pescá arguns bãos peixes para assarmos hoje à noite. O que ucêis acham? Todos concórdam?

    Diante da concórdância de todos, Tuxo pegou seus apetrechos e saiu apressado.

    – Mestre, tudos nósis sabemos sobri a sua impressionante capacidade de curar quarqué cousa viva, seja ser humano, animar ou planta. Eu sei qui ucê não gósta di falá sobre uilsso, maisi eu tenho énórmi curiosidadi em saber cumu ucê adquiriu tantos cunhecimentos. Afinar, didadonte vem tudas essas suas habilidadis?

    – É una longa história, Catarina. Eu vou ter de resumi-la.

    – Fique à vontadi, mestre. Eu sei qui ucê e Jarirí tiveru um dia muito cansativo. Se ucê achar mélhor, fale sobre uilsso durante o churrasco da noite.

  108. A tarde, muito agradavéu, transcorria tranquilamente, anuncianu que o véu da noite cobriria o dia em breve. A lua estaria cheia e o prateado das istrelas cintilariam cum todo vigor. As folhas e as floris num si moveriam e as árvores semelhariam a esculturas em pedra. À luz da lua, tão pérfeitas istariam qui despertariam a vontadi di abraçá-las.

    E foi, entoncis, qui deram pur falta di Tuxo quando a noite chegô.

    – Tuxo já diveria di está aqui. Pur qui será qui está demoranu tanto? Eile pésca cum muitia rapidez e não démora mais de trêis hóras pra pésca muitios pexes. Estou ficandu muito préocupadu, uilsso num é nórmal.

    – Tarvez, Clódiu, os peixes estejam ariscos pur causa da noite clara.

    – Noncis, acontece o contráriu, em noites claras fica maisi fácil pescá-los.

    – Vamos atrás deile. Essa demóra istá ficando muito istranha.

  109. Entoncis, eiles saíram apressadamente, certos de que lógo encontrarium Tuxo na beira do rio, poisi Jarirí cunhecia tudos os lugaris em que Tuxo se posicionava para a pésca. Lá chégandu, cumessaru a procurá-lo e num demôrô muito pra avistá-lo sentado em cima di una pedra

    – O que tá acuntecenu, Tuxo? Pur que ucê num tá péscanu? Nósis istávamos muito preocupados cum ucê.

    Indaí, Tuxo pôs as mãos no rosto e desatou a chorar muito.

    – Eu num consegui pescar sequer um peixe, nem mesmu quando criancinha eu deixei de pescá ao menos um. Eu istou pensanu qui, por pescá um grandi número de peixes, eiles ficaru tão descontentes cumigo qui resorveru fugir de mim.

    – Tarvez, Tuxo, tenha sido o próprio rio que tenha si cansado ducê. É cumu aquéla cunhicida frase: A natureza é sábia. O rio cuida do qui é deile. Os peixes pertencem ao rio, anssim cumu o rio pertence aos peixes. Penso qui será mélhór ucê pará di pescá por algum tempo e esperar pelo perdão do rio e dos peixes.

    – Sim, mestre. Eu compreendi.

  110. Encuantu voltavam para casa, Néja lembrô de qui não haveria churrasco, entoncis tudos eiles teriam di aguardá pelo preparo do jantar. Cunforme eiles iam caminhando, a claridade da noite era tanta qui dava pra enxergarem os frutos de muitias árvores pelo caminho. E tumém dava pra sentirem os aromas das frutas, que se misturavam de tal forma qui, em pocos segundos, ao aroma de manga vinha o di mamão; ao de abacate o de banana; ao de abacaxi o de caju; ao de goiaba o de maracujá; ao de jaca o de laranja; ao de maçã o de morango… e anssim sucessivamente.

    – Eisses aromas todos despertam na gente o desejo di comê frutas. O que ucê acha, Néja? E se colhermos várias déilas para o nósso jantar?

    – Ótima ideia, Clódiu! Será um jantar de frutas muito saudavéu e delicioso. Maisi, adispois di colhê-las, adondi nósis vamu colocá-las? Não dá pra levar muitas nas mãos.

    – Eu tenhu aqui, Néja, trêis sacolas grandis qui eu uso pra carregá peixes. Dá pra por muitas frutas drentu déilas.

  111. Entoncis, eiles chegaru em casa cum as trêis sacolas grandis cheias di frutas mais as qui truxeram nas mãos.

    – O qui é isso, gente, ucêis vão montá barracas na feira? São tantas qui nem dá pra contar. E cadê os peixes?

    – Não haverá peixes, Catarina. O churrasco tá cancelado. Infelizmente, Tuxo não cunseguiu pescá, os peixes o abandonaru. Adispois a gente eile conta pra ucêis os detalhis sobre uilsso.

    Indaí, tudos eiles ficaru como qui hipnotizados pelos aromas de tantas fruitas e, aos poucos, cumessaru a escolhê as qui mais desejavam. E acabou sendo um grandi ataque às fruitas, a ponto se lambuzarem tanto qui, a todo instante, iam até a torneira do tanque e lavavam o rosto, já qui todas as toalhas se tornaram imprestáveis.

    – Vejam qui interessanti, gente! Os meus trêis bebês estão saltandu dentro do meu ventre e eu consigo sentir qui istão muito alégres.

    – As fruitas istão fazendo muito bem a eles, Catarina. Isso é sinal de qui gostaram muito e serão exímios comedores de frutas.

    – No meu caso, o fato de eu ser cego me deixa muitio curioso. Eu sinto o delicioso gosto, mas nem sempre sei as cores delas. Estas uvas qui estão em mias mãos eu sei qui são verdes por causa do tipo de frescor que sinto na minha pele. Estou certo?

    – Sim, Vardí, são verdes mesmo.

  112. Adispois do maravilhoso banquete de fruitas, mestre Bódim sentou-se num banquinho e ficou admirando a lua cheia. Entoncis, todos se aproximaru deile e passaram a imitá-lo.

    – A lua cheia numa noite anssim, em qui num há nenhuma nuvem, é realmente um espetáculo impressionante.

    – É verdadi, Jarirí. Ela nos magnetiza cum sua doce luz prateada.

    – Ela parece estar acessa por dentro, maisi nósis sabemos qui essa luz é provocada pela incidência dos raios do sol sobre ela.

    – Realmente, mestre. Muitas pessoas desconhecem esse fato, o que é lamentável.

    Indaí, a conversa entre eles foi quebrada por um estrondo muito alto vindo de dentro da mata, o que provocou um susto enorme em todos eiles.

    – Que diabo é isso!

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador