Carta aberta a um sociólogo de má-fé, por Tâmara de Oliveira

Não vou discutir aqui os temas diretamente políticos da entrevista. Concentrei-me na maior questão social do planeta, surgida no final de 2019, qual seja o tema da COVID-19.

Carta aberta a um sociólogo de má-fé

por Tâmara de Oliveira

Em 06 de Fevereiro de 2021, foi publicada uma longa matéria e entrevista com um sociólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFS (mesmo departamento ao qual a autora destas linhas é vinculada). Entrevista com caráter político, são inúmeros os temas complexos e questões sociais ali presentes. Os conteúdos das respostas do entrevistado são exemplares puros da ideologia, dos valores, do ethos olavista que faz parte dos piores dentre os aliados do pior governo da história republicana do nosso desgraçado país (só comparável, penso, aos primeiros governos da Velha República, também nas mãos de militares, sobretudo o de Floriano Peixoto). Não vou discutir aqui os temas diretamente políticos da entrevista. Concentrei-me na maior questão social do planeta, surgida no final de 2019, qual seja o tema da COVID-19. Em suma: por responsabilidade cientítico-universitária, sociológica e social, minha indignação com as respostas do professor José Rodorval Ramalho às questões sobre a pandemia da Covid-19 demandou que eu redigisse uma Carta aberta a um sociólogo de má-fé – que ofereço à sociedade brasileira. Abaixo, depois da carta aberta, repito o link com a matéria e a entrevista que a motivaram – que já consta em nota de pé de página na própria Carta.

Carta aberta a um sociólogo de má-fé

Senhor José Rodorval Ramalho,

Li com atenção toda a matéria e entrevista[1] em que o senhor aparece em fotos com sua família. Notei sobretudo que o senhor é ali apresentado como sociólogo católico, polêmico, marcado pela honestidade intelectual, conservador e liberal – palavras que parecem uma contradição em termos, mas que, de fato, representam alianças bem-sucedidas nos dias desgraçados de hoje, entre um liberalismo econômico desenfreado (do “cada um por si”) e um conservadorismo moral, religiosamente obscurantista (“Deus por todos”).

Lembro que também sou socióloga, membro do mesmo departamento de Vossa Senhoria e ex-colega de graduação. Pois, lendo aquela entrevista, não tenho palavras para dizer a intensidade de minha indignação, diante da absoluta falta de limites de seu percurso, desde extremista de esquerda (aparelhador dogmático de movimentos estudantis e sociais), até sua condição atual de extremista de direita (manipulador perverso de fatos e enganador de eleitores conservadores). Na verdade, já fomos até bons amigos e sempre foi em nome dessa antiga amizade, assim como de uma ética profissional defensora da convivência civilizada entre colegas com valores diferentes, que sempre evitei reagir às absurdidades que o senhor já publicou regularmente, durante anos, num jornal local.

Mas tudo tem limites! Estamos num momento de desgraça cotidiana devido a uma pandemia virótica que se agrava no mundo inteiro e que, no Brasil, tem sido sistemática e estrategicamente alimentada por um governo federal que tem o dever constitucional de cuidar da população de seu país. A maioria dos governos estaduais e municipais também vêm sendo progressivamente irresponsáveis ou mesmo criminosos. Mas muitos, ou porque seguem o perverso exemplo federal ou porque são constrangidos a isso.

Parte significativa da sociedade brasileira demonstra escancaradamente estar num processo de negação da realidade. Historicamente, isso é comum em situações pandêmicas (todo mundo cansa!), como podemos verificar em parte importante dos países que não conseguem controlar suas epidemias, sobretudo em países desiguais como o nosso, nos quais a maioria da população está mais do que habituada a não ter acesso regular a assistência médica e hospitalar. Mas não parece haver outro país no mundo em que o governo central continue a sabotar tão alegremente as principais medidas de proteção contra a disseminação do vírus e a protelar voluntariamente um programa massivo de vacinação – que já está sendo difícil, mesmo em países mais ricos e bem menos desiguais, tendo em vista o caráter meio oligopólico e meio geo-estratégico com o qual os grandes laboratórios e Estados-nação produtores de vacinas estão se movimentando.

Mas em sua argumentação chula sobre a pandemia, espantoso professor, todos esses fatos são desprezados em favor de respostas rápidas e arrogantes, sempre aproveitando para destilar seu desprezo irracional e grotesco por quem não delira sobre a realidade como o senhor. Assim, todos os que se preocupam seriamente com a pandemia, são instantaneamente classificados como ideológicos, “pandeminions”. E ousa apresentar dados falsos, comparação sem justificativas e dedução insana, sem fontes nem período de aferição, que só podem estarrecer sociólogos verdadeiramente honestos: o Brasil seria “o 26% no ranking mundial de mortes por milhão de habitantes”, como também seria “a melhor experiência de combate ao vírus em toda a América Latina, com exceção do Peru”. Ora, uma clicada no google permite fáceis verificações atualizadas de dados da Universidade norte-americana Johns Hopkins[2] (principal referência mundial de coleta de dados sobre número de casos e de óbitos de Covid-19), revelando que o Brasil é o nono país em número de mortes por milhão de habitantes – por enquanto. O Peru não aparece na lista do documento consultado, que conta com 26 países, dois dos quais apenas (Austrália e China), com zero mortes por Covid-19 nos últimos 28 dias. Mas a “honestidade intelectual” de Vossa Senhoria parece ser daquelas compostas com mentiras tão deslavadas que emudecem quem as escuta ou lê…

Gostaria de ver sua reação, professor, diante de jovem com a idade de seu enteado, chorando entre a dor e a amargura, porque perdeu a mãe por Covid-19, mais do que provavelmente infectada por um pai convicto de que a doença “é uma gripezinha” e por isso se expunha imbecilmente, como um bom “macho brasileiro corajoso”, influenciado pela verborragia do Presidente do Brasil – que o senhor identifica como “líder carismático”. Depois da morte da esposa, esse homem mudou completamente seu olhar sobre a pandemia, embora a mulher infelizmente não tenha ressuscitado…Foi isso que ouvi, sofrendo com ela, de uma jovem universitária. Mas isso deve ser coisa de ideologia esquerdista, não é mesmo? Do tal “circuito fechado cultural das esquerdas”. Desde que não aconteça em sua casa, provavelmente um caso como esses lhe parece normal, dramas pessoais tristes mas que não mudam o delírio segundo o qual o Brasil seria a segunda melhor experiência latino-americana no combate ao vírus.

Foi por causa de argumentos tão desprezadores e violentamente falaciosos sobre o que vivemos na realidade que assumi a responsabilidade científica, sociológica e social de alertar a sociedade sergipana: as suas informações sobre a pandemia na entrevista não são verdadeiras e seus argumentos têm qualidade intelectual indigente. Talvez sejam argumentos honestos consigo mesmo, tendo em vista que a dívida eterna que o senhor afirma ter para com aquele astrólogo violento que mora nos Estados Unidos indica ser possível que o senhor acredite realmente no misto de sandices e perversidades que emite. Mas não é honesto nem sobre as ciências nem sobre as religiões, muito menos em relação ao governo federal que Vossa Senhoria apresenta como compatível com a sustentação de uma democracia e com as necessidades urgentes que a população brasileira precisa suprir, para controlar a pandemia e as demais crises causadas ou agravadas por ela – inclusive a econômica. Crise econômica, aliás, que só tem melhorado em países que levam a pandemia a sério.

 E, de fato, são poucos os países que o fazem regularmente com o grau de seriedade necessária. Mas onde encontrar algum país onde o governo exiba cotidianamente tamanha irresponsabilidade e indiferença por seu povo diante da pandemia? Havia, nos Estados Unidos, com o grande “ídolo” de Bolsonaro, Donald Trump – que o senhor parece lamentar ter perdido as eleições. Para mim, que escolhi me endividar eternamente com responsabilidade sociológica e social, declaro que felizmente o povo norte-americano conseguiu se livrar daquele outro ser nefasto.

Diante de uma pandemia com consequências sociais ainda incomensuráveis, pois continua não controlada, não há porque se discutir opinião política, ideologia ou moral de cada um. Todo mundo tem direito à sua opinião, ideologia ou moral; mas deve também assumir as consequências delas. No seu caso, senhor professor, as consequências podem ser muito mais graves, posto que tenha usado seus diplomas científico-sociais e seu cargo de professor universitário para mentir publicamente sobre a pandemia mais grave do planeta em 100 anos, participando assim voluntariamente com a persistência do alto número de mortes diárias que o governo federal brasileiro vem deixando correr solto entre seu povo, povo este que qualquer presidente de República tem o dever de cuidar – ou, pelo menos, tentar, mas ele só finge tentar se ocupar seriamente da pandemia quando ocorre diminuição de apoio ao seu governo na opinião pública. Fingindo agir efetivamente contra a pandemia (quando baixa sua popularidade) ou exibindo despudoradamente sua irresponsabilidade (quando sua popularidade aumenta), ele passa seu tempo a se divertir, enganando seus seguidores e partes desorientadas da população. Assim como o senhor nunca perde seu célebre senso de humor quando vomita absurdidades perversas sobre a pandemia.

Eu disse que seus argumentos são intelectualmente indigentes, mas não quis dizer com isso que eles são burros. Pelo contrário, são politicamente inteligentes, porque são estrategicamente construídos para confortar parte significativa da população em seus preconceitos, medos e angústias, manipulando afetos e valores para convencê-la a seguir e servir a interesses políticos, econômicos, religiosos e morais aos quais o senhor foi aderindo ao longo de sua sofrível trajetória ideológica e acadêmica. Neste sentido, não é difícil nem original se apresentar um discurso que imita e se apropria do modo regular de se falar cientificamente, objetivando na verdade atacar quaisquer abordagens científicas que não se submetam a um obscurantismo religioso, por vezes dissimulando interesses insaciáveis por proveitos econômicos. Este é o núcleo da estratégia discursiva de seu eterno credor intelectual, o indescritível astrólogo Olavo de Carvalho, não é mesmo, caro colega?

Enquanto socióloga firmemente ancorada no princípio da responsabilidade científica, sempre sustentei o compromisso com os princípios da dúvida, da controvérsia (debate entre pares controlado por fundamentação empírica ou racional) e da aceitação de que a história e a dinâmica do conhecimento científico são processos descontínuos (Morin, 2020). E tenho consciência de que as ciências, assim como quaisquer empreendimentos humanos, inclusive as religiões, são mediadas também por relações de poder, erros, falácias, violências e charlatães. Seguindo este raciocínio, lembro a Vossa Senhoria que, em reunião do Conselho Departamento de Ciências Sociais no dia 27 de Janeiro de 2021, do qual ambos somos membros e na qual ambos estávamos presentes, o DCS aprovou unanimemente uma proposta sobre o tipo de ensino que a UFS deve oferecer no próximo semestre letivo (remoto emergencial), tendo em vista a situação pandêmica em que vivemos. Como me parece muito estranho que um defensor irrestrito das liberdades de expressão tenha entrado mudo e saído calado daquela reunião, tendo em vista suas declarações divergentes da decisão departamental na entrevista aqui discutida, citarei trechos fundamentais de nossa decisão departamental, como preâmbulo da conclusão desta carta aberta a um sociólogo de má-fé:   

Devemos ser conscientes também de que controvérsias permeiam a comunidade científica até se chegar a consensos empiricamente confirmados sobre os melhores meios de tratar, controlar e superar a pandemia por Covid-19 que tem mergulhado a humanidade inteira em uma espécie de “crise social total” – parafraseando o grande sobrinho de Durkheim, Marcel Mauss.

Mas estamos num contexto mundial, e também nacional, em que os mais diversos tipos de ciências têm sido furiosamente atacados por “um empreendimento levado adiante por indivíduos e grupos que buscam semear a dúvida e o dissenso com fins puramente políticos e/ou econômicos. Ao fazê-lo, a contestação e a controvérsia não aparecem mais como uma busca cooperativa por ideais como a verdade, a justiça ou a liberdade, mas como sua própria impossibilidade” (Hamlin, 2020). No caso da pandemia, esses ataques têm contribuído muito para a aceleração de casos, de óbitos e de colapso dos sistemas de saúde, pois milhões e milhões de pessoas vulneráveis a esses discursos mentirosos ou falaciosos sobre o vírus e a doença, tornam-se avessas a vacinas, desprezadoras de máscaras e distanciamento físico, opositoras radicais, às vezes fanatizadas, de medidas de confinamento – nos momentos em que estas se tornam a única maneira de se evitar colapso dos sistemas de saúde, mundo afora e adentro. Diante disso, ao refletirmos sobre o melhor tipo de ensino – remoto emergencial ou presencial – que a UFS pode oferecer nesta catástrofe sanitária que não dá sinais de arrefecimento, muito pelo contrário, temos o dever científico de nos orientar pelos consensos científicos já empiricamente válidos, pois esta é a melhor maneira de combater responsavelmente a disseminação de mentiras virtuais sobre causas, remédios e vacinas que têm se espalhado como mais uma praga, aliada ao vírus, às mortes e às mais variadas dimensões da crise social total em que estamos.[3]

Concluo então esta missiva, caro colega, afirmando que o senhor é portador de má-fé científica, sendo ativo representante do que cientistas sociais sérios definem como empreendimento de indivíduos e grupos contra as ciências, com objetivos meramente políticos e/ou econômicos, tendo como consequência a impossibilidade da busca sincera por verdade, justiça e liberdade. Que cientistas sociais de boa-fé possam proteger sua família, tendo em vista que seu empreendimento político e obscurantista a coloca constantemente em risco de vida.

Atenciosamente,

Profª Tâmara de Oliveira

(socióloga e professora associada da Universidade Federal de Sergipe – UFS)

Matéria e entrevista com o professor José Rodorval Ramalho disponível em:https://jlpolitica.com.br/entrevista/rodorval-ramalho-e-um-equivoco-criminalizar-a-politica-como-muitas-vezes-fez-bolsonaro


[1] Publicada no Portal JL POLÍTICA. Em 06 de Fevereiro de 2021. Disponível em: https://jlpolitica.com.br/entrevista/rodorval-ramalho-e-um-equivoco-criminalizar-a-politica-como-muitas-vezes-fez-bolsonaro

[2] Dados reproduzidos por Banque Nationale du Canadá – Marchés Financiers, em 19.02.2021. Para que o leitor tenha certeza de que são dados de uma instituição orientada pelos princípios do liberalismo econômico, tão caros ao não caro professor. Fonte: FBN Économie et Stratégie (données de Bloomberg et Refinitiv).

[3] Esta citação reproduz trechos de um documento institucional do Departamento de Ciências Sociais (DCS/UFS). É parte de deliberação unânime do seu Conselho, na reunião acima colocada. Ela não engaja o DCS/UFS em nenhuma declaração desta carta aberta, posto que seja uma decisão a respeito do tipo de ensino que a UFS deverá oferecer no próximo semestre. Ou seja, assumo inteira e unicamente todos os argumentos que coloco nesta carta.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

11 Comentários

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  1. Não vou entrar no mérito sobre a triste figura descrita nesta carta aberta.
    Contudo,estranha-me muito que exista um professor com este tipo de pensamento em um curso de sociologia. Estranho porquê,em idos passados,uma figura dessa jamais seria admitida pelos alunos deste curso.
    Será que,mesmo nas Ciências Sociais,tão ampla e tão diversa em suas discussões,o poder das fake news e do raciocínio pobre encontram espaço para existir?

  2. Obrigada pelo comentário, Vladimir. Mas a verdade é que as fake news e a extrema direita contemporânea não poupam nenhuma área de conhecimento. Veja o Conselho Federal de Medicina e seu papel na desgraça pandêmica brasileira. Mas nossos estudantes de ciências sociais da UFS, em sua esmagadora maioria, não se enganam, não; sabem muito bem distinguir o que é válido e inválido cientificamente. A conversão ideológica a esse extremismo de direita, de profissionais das mais diversas áreas, é uma realidade. Às vezes por fanatismo, às vezes por puro oportunismo, às vezes combinando as duas coisas.

  3. Poderia dizer muita coisa, mas a professora me deixou muda. Então vou para um ditado português: “…e quem fala assim não é gago!”

  4. O GGN não publicou esse artigo, é uma fake news. A Professora Tâmara de Oliveira não existe, é outra fake news. Fui ler a entrevista do Professor e me deparei com a terceira fake news, e essa foi tenebrosa, vomitei sem parar mesmo sendo uma fake news. E que ninguém venha me dizer que estou delirando, que é tudo verdade, que esse professor existe, que a professora Tamara existe e tem estômago para questionar o professor, porque não acredito em fake news. Estou atordoado, verdade verdadeira, não é uma fake news.

  5. Pois existo, Eduardo, e o GGN publicou. Nossos estômagos precisam ser bem tratados porque a realidade desgraçada onde estamos assim exige. Obrigada por seu comentário
    criativo.

  6. Professora Tâmara, é a primeira vez que tenho contato com algo de sua lavra. Lamento, culpa só minha. A senhora não imagina o grau de admiração que me causou. Professoras como a senhora é que resistem à destruição de nossa Educação, particularmente tentada repetidamente contra as Universidades Públicas. Não esmoreça.

  7. Obrigada, Eduardo. Mas existimos. Pense em Márcia Tiburi que teve coragem até de se candidatar ao governo do Rio, só para resistir. Teve que sair do Brasil, ameaçada de morte, mas continua firme e forte. Um abraço.

  8. Ouvir Tâmara, nesse momento de tanta dor, indignação, medo cotidiano, é sentir-se abraçado e certo daquilo que devemos nos inspirar e também combater. Parabéns!

  9. Uma verdadeira obra prima essa carta! Fiquei “de peito lavado” depois de ler essa carta, pois já tinha conhecimento da entrevista do “professor”, e minha ojeriza foi tanta que fiquei nauseada durante uma semana, quando lembrava do conteúdo da entrevista. Por sinal lembrei-me muito de você quando a li, por ter a infelicidade de ser colega de departamento desse indivíduo, e por tentar imaginar seu sofrimento por ter sido, em décadas passadas (lembro bem porque somos contemporâneas do curso, além de grandes amigas) sua amiga íntima. Parabéns socióloga de boa fé!

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