Cuba x Estados Unidos: Isso não é uma partida de futebol, por Camila Koenigstein

Vivemos em um continente que carrega o medo da igualdade social, e poucas tentativas de diminuição da disparidade entre cidadãos, portanto, dizer algo sobre o país ultrapassa a materialidade histórica e entra no âmbito da fantasia, do que desestrutura.

Cuba x USA

Cuba x Estados Unidos: Isso não é uma partida de futebol

por Camila Koenigstein*

Falar de Cuba é suscitar imaginários sociais. A ilha é capaz de gerar medo, despertar fúria e polêmicas desde 1959. “Mandar” alguém para Cuba é quase um insulto, algo como desejar o inferno para o outro, mas o inferno para quem?

Vivemos em um continente que carrega o medo da igualdade social, e poucas tentativas de diminuição da disparidade entre cidadãos, portanto, dizer algo sobre o país ultrapassa a materialidade histórica e entra no âmbito da fantasia, do que desestrutura. É imaginar que a pobreza exista somente lá, portanto, abominam, mas Deus me livre que não exista, é necessário manter a distinção, e essa diferença quase sempre ocorre dentro da maquinaria neoliberal vigente em quase todo o mundo. Assim, Cuba gera pavor e curiosidade, é o excêntrico país que está parado no tempo.

A pequena ilha mostra que a “solidariedade humana” tem limites e que o desejo de certo bem estar social para a maioria não passa de um arroubo daqueles que só conseguem entender a democracia desde um único viés, rechaçando distintos contextos e realidades. Quem só enxerga este horizonte está fadado a defender uma “democracia” tipo exportação norte- americana que, em termos reais, nunca gerou nada positivo nos países que ocuparam, sempre tentando inserir o eterno, mas  falido american way of life.  

This is American, diriam os gringos, pois então vamos falar dos gringos e sua obsessão por Cuba.  

Não é uma partida de futebol

O vínculo entre Cuba e Estados Unidos é tratado por muitos como uma partida de futebol, e como sabemos, falar de futebol todo mundo fala, compreender o jogo é outra coisa. Entender o passado da nação cubana e porque a soberania nacional é algo tão valiosa para o povo – embora pouco conhecido pelo público em geral – é fundamental para uma análise crítica e principalmente uma maior compreensão sobre os embargos, sanções e razões de tanto desejo em interferir na pequena ilha.   

A relação complexa entre os dois países não começou em 1959 com o triunfo da revolução, tampouco durante o regime de Fulgencio Batista,  marcado pela corrupção e os acordos que beneficiavam  somente as elites e a classe empresarial tanto cubana como norte-americana. Já sabemos que Batista abriu as portas do país para o vizinho, no entanto, a tensão entre as duas nações e principalmente o interesse dos Estados Unidos começou muito antes.   

O coronel fez diversos acordos, entre eles com o embaixador de Washington em manter a “política de boa vizinhança” buscada pelo governo Roosevelt na América Latina. Ou seja, tratamento preferencial nas exportações de açúcar, privilégios nos setores agrícola, energético e bancário, e respeito às bases marítimas regionais […] A brutal repressão a qualquer dissidência, a corrupção em todo o tecido administrativo, a influência grotesca dos Estados Unidos, a presença da máfia e também algumas reformas positivas caracterizaram este período sombrio camuflado por alegres luzes de néon.

Anterior a essa construção histórica fragmentada em basicamente três momentos: a ditadura de Fulgêncio Batista, o triunfo da revolução em 1959, e período especial, existiu um passado que marcou os dois países.

Como começou?

O  final do século XVIII e início do século XIX foram marcados por grandes mudanças políticas, sociológicas e ideológicas em todo o mundo. Com a Guerra da Independência Americana (1775-1783), seguida pela Revolução Francesa (1789-1799), a Revolução Haitiana (1791-1804) e depois a eclosão da Guerra Civil (1861-1865), temos mudanças nos valores morais que exigiram alterações comportamentais nas classes dominantes. A escravidão era vista como algo retrógrado, fora dos valores, ainda que duvidosos da Revolução Americana e Francesa. 

Enquanto os demais países do continente conquistavam sua independência, Cuba, que tinha uma elite crioula com características muito particulares, mantinha certa subordinação aos espanhóis, ainda que praticamente simbólica. Os sacarocratas, denominação utilizada em decorrência das somas astronômicas que os criollos ganhavam por meio da exportação de açúcar e do sistema escravocrata,  não viam como favorável a implantação dos ideais modernos saídos dos processos independentistas já em curso no continente.

Ao olharem para a experiência do Haiti (Revolução haitiana) perceberam que a independência poderia desestabilizar o sistema econômico e as ganâncias, portanto,  era conveniente manter a estrutura colonial. 

Segundo Moreno Franginals (1995) Cuba tinha uma altíssima população escrava, quase toda africana (os negros criollos eram minorias) ao perceberem a possibilidade de perda de privilegios os setores “progressistas” recuaram, assim os primeiros movimentos insurgentes sairam das regiões agrárias mais empobrecidas, com a grande participação de escravos e escravos libertos, que não tinham muito o que perder, com isso surgiu algo novo na sociedade cubana: a integração do negro a partir de uma luta por rompimentos de paradigmas e estruturas racistas presentes em seus mais variados espaços, porém, o negro que a princípio foi integrado por necessidade de contingente, logo buscou os seus direitos.

A participação de Antonio Maceo (1845-1896) foi fundamental no largo processo de independência cubana. Maceo, assim como José Martí (1853-1895) foram os dois grandes próceres da nação cubana.

O negro em Cuba lutou para deixar de ser um sujeito objetificado e se tornar parte integrante, não só do movimento independentista, mas pelo reconhecimento como cidadão cubano.

Essa atitude durou até a última guerra de independência (1895-1898) e seguiu posteriormente, durante a insurreição de 1912.

O recorrido sobre a participação dos negros no processo de independencia e posteriormente a luta pelos direitos civis, marcou a sociedade cubana, gerando a busca pela total soberania nacional; esse fator é importantíssimo quando pensamos na integração nacional, ao sentimento de nação presente até os dias de hoje no país. Ser cubano tem uma conotação muito distinta que ser, por exemplo, brasileiro. Ser cubano é carregar uma “luta geracional” contra as diversas opressões e tentativas de intervenções.

E os Estados Unidos?

Desde o início do século XIX os Estados Unidos já tinham interesse em expandir sua influência na região do Caribe.

Quando em 1823 foi anunciada a chamada Doutrina Monroe no congresso, pelo então presidente norte americano James Monroe (1817-1825) ficou clara a intenção expansionista dos Estados Unidos por toda a América.

Já por volta de 1895, a Espanha já estava praticamente solitária na região caribenha. França e Inglaterra já tinham os olhos direcionados à África, sendo assim, os Estados Unidos perceberam a real possibilidade de implantar seu plano de formar a Grande Antilha.

Segundo Zuninga:

O equilíbrio de forças entre potências se manteve a duras penas no Caribe, mas Estados Unidos ganhava pouco a pouco espaço nos mercados, além de se converter em um exemplo de democracia para as colônias oprimidas pela monarquia espanhola. Se vislumbrava como o país onde a tecnologia favoreceu o crescimento industrial. Era uma amostra do que se podia alcançar com a modernidade, enquanto isso, a metrópole espanhola parecia tradicional e retrógrada.   

Após décadas de tentativa de independência, a última guerra teve a forte participação norte-americana. O território estadunidense serviu de base para as organizações independentistas organizadas por exilados cubanos. Foi em Nova York que  José Martí criou o Partido Revolucionário Cubano (PRC). 

A Espanha, com o resto de forças que sobravam, rebateu os diversos levantamentos que ocorriam na sua última colônia na América latina. Por sua vez, os Estados Unidos observando toda a situação tentou primeiramente negociar a compra da ilha usando como argumento a solução por uma “via pacífica”. A tentativa de uma “intervenção” informal já estava em curso e seguiu até o fim do conflito que culminou na independência.. A anexação de Cuba não ocorreu como desejada, o povo que lutou bravamente por longos 30 anos contra o domínio espanhol  rechaçou a intervenção estadunidense.

Mesmo após as tropas espanholas e norte-americanas se renderem frente aos revolucionários cubanos, em 20 de outubro de 1899, o governo interventor de  Leonardo Wood, chefe do Estado maior do exército dos Estados Unidos, chegou em Havana[1].

Em 1901, a Emenda Platt (o direito de intervenção em Cuba sempre que os interesses estadunidenses estivessem em risco) sacramentou a posição do país em relação à pequena ilha, no entanto, de forma forçada, o que seguiu durante décadas.

O início dos enormes fracassos dos Estados Unidos no que tange às políticas intervencionistas começou no Mar do Caribe, e seguiu por todo o século XX com a instauração de  ditaduras sanguinárias,  mortes e pobreza em diversas sociedades.

O preço da soberania nacional custou caro para muitos países, e Cuba não ficou fora, um embargo que asfixia a ilha desde 1960 e segue vigente até os dias de hoje. 

O que o homem honesto deve observar é justamente que os Estados Unidos não foram capazes de fundir-se, em três séculos de vida comum, mas acentuar suas diferenças primárias e converter a federação em um estado áspero de conquista violenta.[.. .] “(Martí, 2008: 173).

“[…] Em vez de resolver os problemas da humanidade, eles reproduzem; em vez de as localidades serem amalgamadas na política nacional, eles a dividem e apodrecem; em vez de fortalecer a democracia, e se salvar do ódio e da miséria das monarquias, a democracia se corrompe e diminui, e o ódio e a miséria renascem, ameaçadores […] ”(Martí, 2008: 173-174).

Já no fim do século XIX , José Martí, embora exilado na América do Norte, não perdeu de vista alguns aspectos que até os dias de hoje são característicos dessa sociedade que vende uma imagem da democracia plena, assim como,  guardiã dos valores sociais primordiais, no entanto, perpétua o violento e o belicoso por onde passa. Enquanto  Cuba, com seus inúmeros problemas, segue dando lições ao mundo, exportando princípios verdadeiramente valiosos para a humanidade, mostrando que a dignidade não tem preço.  Então nos perguntamos: Cuba é um inferno para quem? 

ibliografia

http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1992-82382020000100037

Zuninga, Olga Portuondo. Caribe: Raza e identidad. Edicion UNION, 2014.

Fraginals, Manuel Moreno. Cuba/Espana y Espana/Cuba. Historia comun. Primera edicion en Mitos Bolsillo, 1998.

Camila Koenigstein – Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica – SP e pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA). É membro da Agência Latinoamericana de Información (ALAI). Colunista do jornal GGN. Colunista do portal de notícias Pragmatismo Político. Colunista do canal de notícias jornalistas online. Apresenta o Programa Radar Latinoamérica (pelo canal no YouTube  jornalistas online)

*Recentemente  publicado em ALAI.


[1] Os Estados Unidos aproveitaram a profunda impotência e a fraqueza essencial da sociedade espanhola para arrebatar quase tudo o que restou de seu império.  Eles foram além do que a própria Inglaterra poderia ter permitido.  As conversas em Paris foram o epílogo da grande farsa, do que já havia sido preparado.Porto Rico ficou como colônia e Cuba ainda não havia definido seu status.No início de 1899, o governo interventor de Leonardo Wood passou para Havana.  O controle de ambas as ilhas estava ganhando terreno enorme para os Estados Unidos no Mar do Caribe.  Desde os primeiros momentos, as bases militares foram concebidas sob o domínio americano.  Não é por acaso que os fuzileiros navais desembarcaram na Praia Leste da Baía de Guantánamo para ficar por lá. (Zuninga, p.47)

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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