O retrocesso com as mulheres no governo Temer

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Palácio do Planalto - Crédito: Thiago Melo
 
Jornal GGN – “A total inexistência de mulheres nos Ministérios do governo transitório e de uma única mulher em uma pequena secretaria evidencia a divisão sexual do trabalho”, afirmou a Rede Feminista de Juristas, em artigo para o JOTA.
 
Para o grupo formado pela advogada trabalhista, Lúcia Midori Kajino, e pela doutora em psicologia pela USP, Daniela Rozados, “a indignação e a revolta” são os sentimentos traduzidos neste cenário de política atual.
 
“Após 27 anos de eleições diretas e 37 anos com representações femininas nos Ministérios (a primeira foi em 1979, com João Figueiredo), após a grande conquista de finalmente se ter uma mulher na presidência do país, o espaço público ainda não havia sido conquistado completamente pelas mulheres. E após alguns anos de lutas, o governo provisório relembra às mulheres como o machismo ainda está enraizado na sociedade brasileira. O espaço público ainda é dos homens”, completaram.
 
Leia o artigo completo:
 
Por Rede Feminista de Juristas
 
Governo interino de Temer – A consolidação do retrocesso
 
Do JOTA
 
Mesmo em pouco tempo de atuação, o governo do presidente interino Michel Temer já orquestrou várias ações que são uma afronta para as mulheres brasileiras.

Sob o argumento de corte de gastos da Administração Pública, o presidente interino resolveu reduzir o número de Ministérios em seu governo, realocando e agrupando pastas conjuntas e reduzindo pautas importantes a meras secretarias.

Uma das reduções que mais chama a atenção foi a do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos à condição de mera pasta. Em uma época que o noticiário brasileiro veicula cotidianamente numerosos episódios de violência contra as mulheres, essa mudança no estatuto de Ministério para Pasta tem um efeito que é muito mais negativo em termos de representatividade frente a uma questionável efetividade para conter gastos do Executivo. Em termos econômicos, sabe-se que tal estratégia é bastante pontual, e que via de regra está correlacionada com realocações dos funcionários entre os ministérios. O efeito é, portanto, mais simbólico, apenas para impressionar a população incauta e para dar uma aparência de austeridade a  um governo que, por supostamente ser capaz de cortar na própria carne, é mais digno de confiança da população, do mercado e da economia.

Porém, tal medida mais indigna que entrega. De todos os Ministérios, o das Mulheres e da Igualdade Racial já era o que contava com a verba mais exígua. Seu corte indica a intenção da plataforma de governo de desproteger as minorias, justamente em uma população que tende a naturalizar a violência contra a mulher, que está tão entranhada na sociedade brasileira.

A falta de prestígio e relevância da pauta da luta feminista como parte integrante do governo interino se confirmou logo em seguida pela ausência de mulheres na composição dos Ministérios, fato inédito desde o governo de Geisel durante a ditadura militar. Contudo, a falta de representatividade das mulheres nos Ministérios ainda mantidos pelo presidente interino não é o único fato alarmante. É a confissão sobre a real preocupação desse governo: manter a pauta opressora de negar às mulheres o seu espaço na sociedade e na esfera pública.

A total inexistência de mulheres nos Ministérios do governo transitório e de uma única mulher em uma pequena secretaria evidencia a divisão sexual do trabalho. Conforme os ensinamentos de Danièle Kergoat, os dois princípios organizadores dessa divisão são os da separação e da hierarquia. Ora, o primeiro princípio é a naturalização da desigualdade histórica entre homens e mulheres, criando a ideia de que há trabalhos para mulheres e outros para os homens, de forma exclusiva. O segundo princípio é de que há uma hierarquia entre esses tipos de trabalhos, no qual o trabalho masculino é mais valorizado do que o trabalho feminino.

Historicamente, aos homens coube o trabalho produtivo, em ambiente público, no qual se pode ter reconhecimento amplo e notório. Às mulheres restou apenas o trabalho reprodutivo, em ambiente privado, tornando o trabalho doméstico cada vez mais invisível.

Ora, após 27 anos de eleições diretas e 37 anos com representações femininas nos Ministérios (a primeira foi em 1979, com João Figueiredo), após a grande conquista de finalmente se ter uma mulher na presidência do país, o espaço público ainda não havia sido conquistado completamente pelas mulheres. E após alguns anos de lutas, o governo provisório relembra às mulheres como o machismo ainda está enraizado na sociedade brasileira. O espaço público ainda é dos homens.

Uma mulher sendo tirada da Presidência à sua revelia. Nenhuma mulher nos Ministérios. Apenas uma em uma pequena secretaria. São grandes sinais do que o governo interino quer representar. E não é uma pauta que representa as mulheres.

A tentativa do governo de se explicar diante das críticas que sucederam às suas primeiras decisões foi no sentido de negar o que era visível a todos: as alianças que fez para se tornar possível, precisamente com os setores mais reacionários que existem em nosso Congresso. Assim, observou-se as péssimas justificativas, que iam desde que a ausência de mulheres nos Ministérios ocorreu “porque não foi possível”, até que o corte do Ministério das Mulheres e da Igualdade Racial não significava uma ausência de atenção às políticas de proteção às mulheres.

Os episódios seguintes, protagonizados por ministros nomeados pelo presidente interino, deixaram claro o preço que esse governo paga para se sustentar: a aliança com setores conservadores da Igreja Católica e Evangélica, que pautam suas ações na esfera pública com um único propósito de atravancar os avanços em termos de direitos de populações tradicionalmente excluídas. As ações e o discurso dos agentes desse governo falam mais alto do que as tentativas pífias e meramente retóricas de defender uma noção de que esse governo estaria supostamente preocupado com a integridade e representação de mais da metade da população.

Dois eixos de pensamento, portanto, se alinham de modo nefasto no cenário político brasileiro: de um lado, o setor religioso, que vem lançar na esfera pública propostas de cunho moralista e que são excludentes quanto aos direitos  de autonomia sexual e reprodutiva; e de outro, a noção policialesca de se lidar com o problema da violência, especialmente quando aplicado à esfera da violência contra a mulher.
Do lado religioso, há alguns retrocessos importantes, que avançam no Poder Executivo e marcam ainda mais a posição desastrosa já anunciada há tempos no Poder Legislativo.

A consolidação por parte do governo interino do retrocesso que vinha sendo orquestrado pelo Legislativo começou com o recebimento de Alexandre Frota pelo Ministro da Educação. Alexandre Frota é um ator que já admitiu em rede nacional, em meio a risadas, ter estuprado e agredido uma mãe de santo, e foi justamente o primeiro cidadão a ter sido recebido pelo governo e declarado que suas propostas na área educacional foram acolhidas. É curiosa a escolha do ministro Mendonça Filho, que ao invés de receber qualquer professor ou profissional ligado à educação, recebe uma pessoa cujas declarações destilam violência e preconceito.

Em segundo momento, a nomeação da secretaria dos direitos humanos, Flávia Piovesan, foi uma estratégia desesperada do governo de mostrar que se importava com a pauta feminista. Jurista conhecida pelos estudiosos de Direitos Humanos, mas já orientada no meio acadêmico pelo presidente interino, acabou por aceitar a nomeação. A nomeação de Flávia Piovesan deu o tom do espaço concedido às mulheres no governo Temer. De saída, ela concordou com sua posição precária: a de vigilante do retrocesso, sem contudo poder sequer nomeá-los, quanto mais impedi-los. Notório exemplo foi quando houve o episódio de estupro coletivo que chocou o país e as propostas de resposta dadas pela Secretaria de Segurança Pública. Ela reconhece que o Congresso é o mais conservador desde a redemocratização, e é exatamente ao Congresso que ela dirige suas comedidas críticas. Mas e quando é o Poder Executivo, encabeçado pela figura de Temer, quem consolida as pautas que estão sendo discutidas no Câmara dos Deputados ou dos Senadores, a secretária se mantém silente, jogando suas esperanças no Judiciário para que este possa cumprir o papel de conter a amplitude e profundidade do retrocesso.

Uma segunda nomeação, talvez a mais simbólica de todas, dá o recado aos movimentos feministas em todo o País: a nomeação da deputada Fátima Pelaes para a Secretaria das Mulheres. O retrocesso não se dá pela opção religiosa da deputada, que é evangélica. Mas essa indicação não pode ser vista como ato isolado, considerando que a deputada possui uma visão deveras conservadora até mesmo para direitos já previstos em lei. Fátima Pelaes já afirmou sua convicção pessoal de que o aborto em qualquer condição deve ser proibido, mesmo nos casos já previstos por lei (gravidez resultante de estupro, risco de vida da gestante, gestação de feto anencefálico). Mais uma vez, o recado dado é alarmante, no âmbito simbólico: a pauta de direitos sexuais e reprodutivos não vai avançar. Ainda que a secretária tenha se comprometido a não permitir que suas opiniões pessoais interfiram na atuação política, sua declaração, diante da sua convicção do não direito ao aborto em nenhuma circunstância, de que “dá se um jeito” de seguir a vida após uma violação, é um insulto a todos os esforços empreendidos pelos movimentos feministas e à construção de uma política pública de proteção às mulheres.

O que não se pode admitir é que as mulheres sejam relegadas ao espaço confinado de cada uma que “dê seu jeito” e a naturalização de um estupro. Desde sempre, espera-se que as mulheres fiquem em seu espaço privado, sofrendo em silêncio, e que cada uma “dê seu jeito” sem qualquer tipo de garantia estatal, sem qualquer campanha ou programa de conscientização de que o estupro é uma forma de violência extrema, que não deve ser aceito ou tomado como natural.

Ainda que Fátima Pelaes seja proponente de dois projetos de lei que propõem pautas importantes (a saber, o projeto de lei de 2009 que prevê condições básicas de assistência às mães presidiárias e a seus filhos menores de sete anos e outro projeto de lei datado de 2002, que prevê licença maternidade para mães adotivas), suas propostas se alinham parcialmente a demandas femininas: ela luta por avanços da mulher desde que sejam restritas à maternidade, precisamente o papel restrito da mulher visto pelas Igrejas Católica e Evangélica conservadoras. Para citar um exemplo, ela votou contra um projeto de lei que propunha que homens e mulheres que desempenhassem o mesmo cargo numa instituição não poderiam receber salários diferentes. Ora, a mulher não pode ser vista apenas enquanto órgão reprodutivo e suas funções na sociedade devem ultrapassar o seu próprio útero. Os direitos das mães estão inclusas na pauta feminista, mas essa não se restringe àquela, pois os direitos das mulheres incluem o próprio direito de escolherem não terem filhos.

Temer não esconde sua aliança com os setores conservadores do Congresso. Em Julho de 2016, num encontro com 33 pastores evangélicos no Palácio do Planalto, Temer se comprometeu a analisar duas propostas trazidas por eles: o combate à “ideologia de gênero” e a defesa da família tradicional. O problema é que a proposta não é que o presidente interino leve em consideração as preocupações de um determinado setor. Cabe notar, por exemplo, que no mesmo período, Temer se recusou a receber setores ligados ao movimento LGBT composto por representantes do PPS e PSDB, pela equipe de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS), membros das comissões e diversidade sexual da OAB, ativistas de várias ONGs de defesa de direitos LGBTs, e de outras pessoas interessadas com os direitos e políticas para Lésbicas, Gays, bissexuais e transexuais.

O problema é que o setor ligado à bancada evangélica pretende é que esses dois parâmetros, o de “defesa da família” e o de combate a “ideologia de gênero” sejam os únicos a pautar o que deve constituir uma política pública, e que o presidente interino se comprometa com apenas o setor ligado a interesses de cunho religioso. Desse modo, as conquistas dos movimentos feminista, negro e LGBT, vem sendo destruídas, quando se propõe que as políticas públicas não tenham um recorte (também) de gênero.

Cada um dos problemas elencados nesse texto se relacionam com a consideração dos problemas que afetam as mulheres sem a incorporação da perspectiva de gênero e sem dialogar com os movimentos feministas. Para quem se dedica cotidianamente a desconstruir os efeitos perversos dessa violência na vida das mulheres, resta a indignação e a revolta. Destituídos de sua perspectiva histórica e social, cada um desses atos, tomados como isolados, parecem somente “deslizes” do governo interino. No entanto, quando se considera esses acontecimentos inseridos em conjunto, o governo interino do senhor Michel Temer apresenta retrocessos que  coadunam com a continuidade da opressão conservadora ao gênero feminino.

Esse é o governo Temer: a cada novo escândalo, a cada nova declaração, uma nova opressão à pauta feminista e à representatividade das mulheres na esfera política.

*Lúcia Midori Kajino, feminista, advogada trabalhista, mestranda pela USP e membra da Rede Feminista de Juristas. Daniela Rozados, feminista, doutora em psicologia pela USP e pós doutora em filosofia pela USP, membra da Rede Feminista de Juristas.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

3 Comentários

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  1. Um viés deplorável na dita

    Um viés deplorável na dita Direita e no chamado Conservadorismo é a misoginia.Mesmo no alvorecer do século XXI ainda persiste no imaginário e na práxis a concepção da Mulher, seja em que área for, como subalterna e colocada num pedestal como uma espécie de adorno para realçar machismos.

    De pronto um apressado tasca: e a Margaret Thatcher? Uma exceção mais em função da postura de durona que, providencialmente, rima com machona. 

    O governo usurpador de Temer não fugiu da regra. E os EUA, se eleito for o Donald Trump, conservador de Direita, a toada será a mesma. Um sinal já foi dado quando o mesmo já em 1999 questionava a presença de mulheres no exército. 

  2. Crítica Injusta

    As mulheres do Governo Golpista estão todas trabalhando, apenas que em outras funções, nas redações do PIG, na Globo News, nos corredores do parlamento e etc. É muita mulher, para ninguém botar defeito.

  3. Mais um título

    Mais um título despropositado. O retrocesso nisso que é chamado de governo neste título não é um caso restrito as mulheres.O retrocesso nesta ditadura,sim,este povo que roubou o poder através de um golpe de Estado não pode ser chamado de outra coisa 

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