Dops vira Casa da Liberdade, por Lucas Simões

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
[email protected]


Foto: Lucas Simões

Do Beltrano

Dops vira Casa da Liberdade
 
Fernando Pimentel lança projeto que transformará o antigo centro de tortura em memorial de direitos humanos
 

Por Lucas Simões

Fazendo aberto repúdio à prisão de Lula, o governador Fernando Pimentel (PT) apresentou nesta segunda-feira (09/04), em cerimônia nos jardins do Palácio da Liberdade, o projeto do Memorial Direitos Humanos – Casa da Liberdade. O memorial, que tem previsão de término das obras até o fim do ano, transformará o prédio que abrigou o antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) – principal centro de prisão política e de tortura em Belo Horizonte durante a ditadura militar -, na avenida Afonso Pena, em um museu com caráter de preservação da memória da resistência política ao regime de 64 e de repúdio às práticas antidemocráticas.

Antes de apresentar o museu, Pimentel, que foi preso político no Dops de Belo Horizonte entre abril e outubro de 1973 (ele foi preso no Rio Grande do Sul e, mais tarde, transferido para BH, num total de pouco mais de três anos de encarceramento), disse que o antigo Dops será transformado em um espaço de memória pedagógica sobre a ditadura, mas também em um lugar de resistência e organização política em favor da democracia. Ao repudiar a prisão de Lula e condenar o que chamou de “escalada do fascismo”, o governador provocou gritos da plateia de “Lula Livre”.

“Os eventos são abundantes. Eu posso citar a agressão que sofreu a nossa Universidade Federal de Minas Gerais, com a condução abusiva do reitor Jaime Ramirez e de professores. Isso se sucedendo ao mesmo fato que tinha acontecido em Santa Catarina, que levou a morte e suicídio do reitor (Luiz Carlos) Cancellier, e até hoje não apuraram nada contra ele porque nada havia para ser apurado. É a escalada do fascismo, que vem galopando em cima do povo brasileiro. A isso se segue no Rio o assassinato da vereadora Marielle, depois tiros atirados contra a caravana do presidente Lula. E agora, culminando com essa prisão absurdamente ilegal, fruto de uma sentença jurídica frágil e equivocada, de um processo eivado de irregularidades”, disse Pimentel.

Apesar de o governo não revelar o montante investido nas obras, o museu Casa da Liberdade contará com recursos do BDMG Cultural e do Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos — este último, destinado a reparar danos provocados pelo meio ambiente, além de bens e direitos de valor histórico, artístico e turístico. A expectativa é que as obras sejam concluídas no fim do ano, segundo o secretário em exercício de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac), Gabriel Rocha. “Haverá uma pequena reforma estrutural e a implantação do museu. A partir de agora, já tem a ordem de serviço, e estamos só elaborando os documentos necessários para iniciar imediatamente a obra”, disse o secretário.


Foto: Lucas Simões

O terror do Dops

O prédio do antigo Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops-MG) foi construído ainda em 1948 e transformado em centro de prisão, tortura e assassinato de presos políticos a partir de 1964. Nos anos 1920, outra construção, no mesmo local, também funcionou como delegacia de polícia.

O edifício foi tombado pela Prefeitura em 2013 e, posteriormente, pelo Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), em 2015. Antes da desativação para a construção do museu, porém, o edifício abrigou o Departamento de Investigação AntiDrogas (Narcóticos) da Polícia Civil, mantendo, até hoje, com a placa da delegacia ainda afixada em sua fachada, a imagem repressora do sistema policial.

“Acho que quanto mais demora e passa o tempo, mais fica na cabeça da gente a imagem da tortura. Eu fui presa por denunciar que colegas eram torturados. Sempre que passo na frente do antigo Dops, que até hoje é uma delegacia, mesmo que desativada, vem alguma coisa na memória. Nem sempre é lembrança de choque elétrico e pau de arara, porque eu fui vítima disso. Às vezes é uma dor que a gente nem sabe que tinha. Por isso, mudar aquele lugar, transformar aquilo tudo em espaço de convivência para a juventude que vier refletir sobre ontem e hoje, é um alívio para quem foi vítima da ditadura”, disse Emely Vieira Salazar, 74, torturada em 1973.

Parte do arquivo do Dops referente à ditadura, hoje sob resguardo do Arquivo Público Mineiro, poderá ser acessada pelo público na Casa da Liberdade. Ao todo, são nada menos do que 924 fichas de policiais que colaboraram com os anos de chumbo e 98 rolos de microfilmes contendo um rico acervo que vai desde correspondências da polícia, prontuários de presos políticos, ordens de serviço, atestados de antecedentes político-sociais de presos, até folhetos e livros apreendidos pela polícia por serem considerados “subversivos à ordem”.


Foto: Marcelo Sant’Anna

Estrutura

Com projeto arquitetônico elaborado por Gringo Cardia e pesquisa histórica liderada por Heloísa Starling, coordenadora do Projeto República, do Departamento de História da UFMG, a Casa da Liberdade será um museu interativo e futurista — ainda que o estilo arquitetônico do edifício, modernista da década de 1940, seja preservado por fora da construção.

Lá dentro, o público poderá acessar arquivos históricos do período do Estado Novo (1930-1945) e da ditadura civil-militar (1964-1985), e também produzir conteúdo, gravando vídeos com depoimentos e leituras. “A ideia é reunir depoimentos das pessoas que visitarem o museu e que eles possam estar sempre mudando, se atualizando ali, logo na entrada do museu. Toda a perspectiva é de muita interatividade e baseada em videografismos”, disse Gringo Cardia. “

Com sete eixos que perpassam as temáticas de memória, insurgência, autogoverno, direitos, tirania e visibilidade, a Casa da Liberdade abrigará uma reprodução digital de uma sala original do Dops, agregada a reproduções em vídeo das histórias individuais de cada pessoa presa ali, como a de Nilcéa Moraleida Bernardes, 61 anos, torturada por mais de 60 dias, entre os anos de 1971 e 1974.

“O sentimento daquele lugar é, sem dúvida, de terror. E, 50 anos depois, passar na avenida Afonso Pena e olhá-lo de fora ainda é aterrorizante. Transformar o prédio, dar outro significado, inclusive e principalmente que garanta a memória dos mortos e torturados ali, é fundamental”, diz Nilcéa.

No atual estacionamento do antigo Dops, haverá ainda um café e uma praça de convivência nomeada como Ágora, em referência ao espaço de debate político e democrático da Grécia Antiga. No local, será instalado um telão para divulgar atividades do museu e realização de eventos relacionados a discussões sobre a democracia. Além disso, a Casa da Liberdade vai abrigar salas temáticas, como a Sala da Intolerância, que pretende provocar o público sobre preconceitos e crimes, a exemplo de manifestações de racismo e LGBTfobia.

Segundo a historiadora Heloísa Starling, o conceito central de liberdade, que dá nome ao museu, e a relação paralela da ditadura com outros períodos antidemocráticos do país, inclusive o atual, têm caráter de educar e alertar a população. “É preciso entender que a democracia não é algo natural. E, portanto, nós podemos perdê-la”, avalia Heloísa. A historiadora ainda ressaltou que a Casa da Liberdade pretende ser um espaço de criação de conhecimento contínuo acerca da democracia, como as oficinas de rap e poesia que serão ministradas em parceria com professores da UFMG.

“Teremos um centro de pesquisa onde vão ser abrigados arquivos da repressão em Minas, tanto da ditadura quanto no período do Estado Novo. Outro espaço vai abrigar as oficinas de criatividade, onde a ideia é que a universidade consiga trocar conhecimento com as comunidades e os coletivos de Minas Gerais. E ainda temos a proposta de uma exposição permanente, com o conceito de que em Minas Gerais são muitos os nomes da liberdade”, disse Heloísa.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Só para registro

    Há uma obra do Memorial da Anistia Política do Brasil que, por uma série de motivos se encontra parada, aqui mesmo em Belo Horizonte. Será que é mesmo necessário um segundo como memorial de direitos humanos?

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador