Delfim e “Os Cabeças de Planilha”

FHC: duas lições memoráveis
Por Delfim Netto, em sua coluna de hoje no “Valor”

O competente economista, jornalista e polemista, Luis Nassif, acaba de publicar um livro – “Os cabeças-de-planilha” – que merece a atenção de quantos se interessam pelo processo de construção e execução do Plano Real. Este foi, sem dúvida, uma das mais sofisticadas formulações já concebidas pelos economistas brasileiros: logrou liquidar a inflação depois de um número substancial de tentativas mal sucedidas. Quando comparado com outros (Israel, 1984; México, 1987; e Argentina, 1990) é que podemos apreciar a sua maior eficiência na conquista da estabilidade.

Infelizmente, não se pode dizer o mesmo com relação às suas conseqüências para a volta ao crescimento econômico. Depois do início dos planos de estabilização, o Brasil foi o país que menos cresceu: 2,7% ao ano (contra 3,3% do México, 3,5% da Argentina e 5% de Israel).

A análise de Nassif é, certamente, polêmica, mas, não menos certamente, complementa outras versões já publicadas do Plano Real e ajuda a entender o “ambiente”: as convicções, as contradições e as dúvidas que atormentaram seus idealizadores e executores. O trabalho é severo, às vezes contundente, mas ilumina alguns espaços até aqui escuros do empreendimento. Não lhe tira o mérito, entretanto.

Uma resenha do livro (e ele merece pela argúcia de seus argumentos) fica para outra ocasião. Queremos chamar a atenção, nesta nota, para uma brilhante e esclarecedora entrevista que o ilustre ex-presidente Fernando Henrique Cardoso concedeu ao autor e que se encontra como apêndice no livro. Trata-se de uma sincera, profunda e comovente confissão sobre duas questões que deveriam servir de aviso para o governo (as conseqüências malignas do que agora mesmo estamos repetindo, com a “super” valorização cambial) e para a oposição, que insiste na ridícula afirmação que o presidente é responsável por tudo (até pelo “aspone” que lê o jornal no banheiro…).

Os economistas “jurássicos” sabem que quando o governo jura que o câmbio está certo ou que ele é apenas uma questão de “produtividade” (mas não reconhece que quem não tem produtividade é ele), o câmbio está errado. É claro que sempre é possível filosofar sobre “o que significa câmbio errado”. A resposta pedestre é que ele se materializa como ectoplasma nos cartórios de protesto. O importante é saber que, quando o governo e o setor financeiro “filosofam” sobre o câmbio, afirmando que “ele é o resultado natural de um fenômeno natural”, ambos estão mistificando. Partem da hipótese que “oferta” e “procura” de divisas são construções divinas, produtos do altruísmo do Santo Deus.

A vitória do Plano Real sobre a inflação se deveu ao controle da taxa de câmbio, feita com os mais elevados juros reais que este país já praticou. O problema é que deixou como herança um déficit em conta corrente de US$ 186 bilhões entre 1995-2002 (contra o equilíbrio em 1990-1994) e uma dívida líquida/PIB de 52% em 2002 (contra 30% em 1994).

Confrontado com o respeitoso, mas cerrado, questionamento de Nassif, o ilustre ex-presidente dá uma lição de integridade e humildade: revela a sua angústia com o problema do câmbio valorizado. À pergunta “No final de 1994, a desvalorização do real virou guerra santa. Quando apareceu o déficit em conta corrente, o pessoal se assustou e aí o Gustavo e o Bacha deram entrevista dizendo que deveria aumentar ainda mais o déficit”, o presidente, agora reduzido à posição do intelectual honesto, confessa: “A idéia era teórica. Significava que nós éramos financiados lá fora, e isso era bom. Depois, Gustavo inventou (sic) a teoria de que estávamos compensando a apreciação cambial com aumento de produtividade aqui (sic). Mas aí já eram teorias para racionalizar posições (sic)”. É esta a mesma “racionalização” que hoje engana, de novo, a sociedade brasileira. Esta lição do sociólogo não pode e não deve ser esquecida.

Há muito mais na entrevista. Ela deveria, também, servir para acalmar a oposição, que exige que o “presidente saiba tudo”, que “responda por tudo e por todos, representantes eleitos ou burocratas acomodados”. Às várias perguntas sobre momentos críticos na execução do Plano Real, o presidente Fernando Henrique Cardoso responde, candidamente, “não soube”, “não sabia”, não “tenho idéia” etc. Trata-se de uma questão de materialidade. Seria absurdo exigir que o presidente tenha a obrigação de ser um “operador de mesa”.

A questão sobre o nível de responsabilidade do presidente com relação aos representantes eleitos que o apóiam ou aos atos dos servidores do Estado sob seu comando é muito velha. Nos Estados Unidos, o presidente Andrew Jackson (1829-1837) afirmava que era “responsável por todas as ações do Executivo”. A relativização dessa posição vinha do notável senador por Massachusetts Daniel Webster, que via como impossível esse “indefinido e indefinível ideal de responsabilidade da autoridade junto à sociedade”.

Essa disputa levou à posição atual. As ações do governo devem ser absolutamente transparentes e sujeitas às leis que também sujeitam os agentes públicos. São elas que definem o grau de responsabilidade de cada um. Hoje, mais do que nunca, os atos do governo são sujeitos e devem sê-lo cada vez mais, ao escrutínio dos grupos interessados, da mídia, dos mecanismos internos e externos de controle e do público em geral. Continua perfeitamente absurdo supor que o presidente é responsável pelos atos “indefinidos e indefiníveis” de todos os agentes públicos. Estes são agentes da lei e quem define a lei é o Congresso!

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP e ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

Luis Nassif

17 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Nassif,

    é impressão minha ou
    Nassif,

    é impressão minha ou o Delfim escreveu uma coluna inteira só para dizer que hummm, deixa eu ver…. é…..mas por outro lado….

    ninguém é responsável por p*rra nenhuma que acontece neste país, portanto relaxa e aproveita!

    Lamentável.

  2. Delfim que sempre foi crítico
    Delfim que sempre foi crítico feroz de FHC o absolve de culpa e por tabela absolve Lula? Tudo bem que o presidente não sabe tudo, mas se tinha uma suspeita que a coisa ia explodir por que não tomou uma decisão? Omissão? Por que deixar tudo nas mãos da Fazenda e do Bacen? Ou será que lá no fundo de sua alma Delfim admite que os ministros da Fazenda enganam os presidentes? Quanto mais vaidoso ou carente de afirmação for o presidente será mais facil?

  3. Parabéns Luis,
    Não é fácil
    Parabéns Luis,
    Não é fácil receber elogios do Delfim. O sacrifício de escrever um livro é recompensado assim.

  4. Toda vez que alguém disputa
    Toda vez que alguém disputa um cargo ou um posto no poder diz que vai fazer isso, que a solução é essa, mas depois de empossado, tudo se mantém, pra mim somos uma colonia, e nossos verdadeiros mandantários estão lá fora dizendo como devemos proceder, afinal, o povo brasileiro tem que custear o american way of life , por exemplo…

  5. Realmente não cabe ao
    Realmente não cabe ao presidente ou a qualquer pessoa saber de tudo. Contudo cabe sim ao responsável colher os argumentos mais contudentes das posições divergentes e ter discernimento para seguir aquele que julgue mais correto. Por isso não podemos perdoar o Fernando Henrique e também não poderemos perdoar o Lula se continuar com essa postura passiva diante desse crime cambial.
    Em entrevista na Globo News o economista-chefe da Austin disse, com um sorriso maroto entre os lábios, que temos espaço para aliviar a política monetária. Se até eles reconhecem o absurdo da política restritiva vigente não é possível que os nossos governantes não percebem.
    Nassif porque o Guido e o Mercadante se calaram sobre as taxas de juros? Será que há um acordo do demónio entre o Lula e o Meirelles?

  6. O Delfin escreve e define o
    O Delfin escreve e define o Plano Real:

    ´A vitória do Plano Real sobre a inflação se deveu ao controle da taxa de câmbio, feita com os mais elevados juros reais que este país já praticou´.

    Ou, em palavras mais simples, digo eu: O Plano Real se fundamenta em tomar empréstimos. O Brasil vive de empréstimos pagando Juros elevadíssimos.

    E onde está a grande ciência econômica nisso tudo?

    Vamos fazer uma analogia elementar: Digamos que eu precise de grana. Preciso arrumar um bom negócio que dê lucro ou arrumar um bom emprego.

    Mas como eu sou um cabeça-de-bagre e incompetente, o máximo que eu consigo fazer é procurar um agiota e tomar emprestado, digamos 40 mil Reais.

    Aí eu vou levando a minha vidinha legal, arrumo uma loira burra e gostosa. Digo que sou empresário, frequento festas.

    Só tem um probleminha:

    ATÉ QUANDO???!!!!!!

  7. O Bresser outro dia veio com
    O Bresser outro dia veio com essa, de me chamar de economista. Gentileza de ambos que sabem que raciocínio econômico não depende necessariamente de formaçao acadêmica. Nem formação acadêmica confere necessariamente raciocínio econômico.

  8. Como vemos através das
    Como vemos através das memoraveis palavras do Sr. Luís Nassif, que quanto mais anos passam e nossos bagunceiros de antigamente nos “governam” a coisa vai ficando cada vez mais complicada.
    A industria brasileira enforcada, o povo prejudicado e Tudo bem!
    Os bancos acham que vivem sem a industria e ou o comercio, pq o governo, sim este governo ignorante e de code nome Alibabá ( só faltam seis) continua a manter e melhorar os lucros dos bancos, não sou contra o sistema financeiro só que não há equilibrio. se não tem juros altos tem uma carga tributária estonteantemente alta.
    Parabéns pelo livro Sr. Luís Nassif, estou ansioso para lê-lo e acredito que todos os que tiverem prazer de ler este livro verá que nossos politicos só se salvam aqueles que já morreram, mas mesmo assim deixaram feridas profundas e de dificil cura em nosso rico pobre BRASIL

  9. Porque? Vai invocar? Lembra
    Porque? Vai invocar? Lembra os coleguinhas invocados da infância? NUnca cheguei a ser. Sö nas discussões mesmo.

  10. Luis Nassif, o professor
    Luis Nassif, o professor elogiando assim dá até inveja. É o tipo de mestre que ouço horas e horas sem se cansar, quantas vezes forem as oportunidades. Sobre a entrevista e comentário que fará depois, por favor coloque no Blog. Você sabia que a primeira formação do Delfim foi Contabilidade? Depois um idióta de um Professor Francês observou que Delfim estava se dedicando a um sub-curso. É defensor das Ciências Contábeis até hoje, embora seu verdadeiro axioma e postulado esteja na Economia. PARABÉNS LUIS NASSIF, CONTINUE ASSIM.
    Dizem que seu outro livro será \O fim do Câmbio\.

  11. Acrescente aos títulos do
    Acrescente aos títulos do Delfim: vendido da época dos militares, da época de fazer o bolo crescer pra depois dividir. O único bolo que cresceu foi ele mesmo. Perdeu as últimas eleições, com votação ridícula, mesmo com todas aquelas bandeirinhas na Paulista, ou seja, um político/economista decadente, de passado pérfido, no estilo os fins justificam os meios. Caro Nassif, se este te elogia, tome cuidado, tem algo errado no reino da Dinamarca
    abrXXX

  12. Lex Luthor e Dr Silvana, os
    Lex Luthor e Dr Silvana, os Gênios do Mal.

    E Delfim, que deixou sua voz gravada na fita da reunião que decidiu o AI-5 dizendo ser este necessário para as reformas econômicas que pretendia fazer.

    Exitem amigos que nos constrangem, bloqueiros que nos irritam. E alguns elogios merecidos que não merecemos receber.

  13. Bem, se o Bresser lhe chamou
    Bem, se o Bresser lhe chamou de economista, então você deve ser.. Elogios do Bresser valem sem ressalvas.

  14. Comentário sobre o
    Comentário sobre o finalzinho. Realmente temos que compreender que o presidente não sabe de tudo, como afirmou o FHC. Mas porque cargas d’água o molusco se faz de inteligente e diz que ele é o bom e quem manda no governo é ele, etc.etc.etc. Aí a gente tem que botar pressão nele.

  15. Peraí. Se eu entendi, o
    Peraí. Se eu entendi, o Delfin elogiou o livro e ao mesmo tempo negou o argumento mais importante (ao menos nas discussões até agora), que é o de que o cambio não foi corrigido porque certas pessoas ganhariam muito com isso. O Delfin insiste que todos agiram de boa fé, no melhor de suas habilidades e com integridade (palavra que ele usou para elogiar FHC). Resumindo ele puxa o saco de todo mundo, fala muito e não diz nada. Tá certo o Douglas aí em cima.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador