Previdência Social: plano de vôo

Por Fábio Giambiagi, em “O Valor” de 02/07/2007

Ao longo dos últimos anos, tenho participado do debate sobre a Reforma da Previdência. Ao contrário dos temas geralmente tratados pelos economistas, que tendem a soar algo abstratos para o grande público, a Previdência é algo que afeta a vida de todos. É natural, então, que a carga de emoção associada ao assunto seja vários tons acima do que a que comporta, normalmente, o tratamento de outros assuntos. Ao mesmo tempo, como costuma ocorrer nos países que discutem a questão da Previdência, o debate é influenciado pela presença de um agente inerente à democracia: a mídia sensacionalista. Tratar com sensacionalismo algo que afeta o bolso de todos leva logo à procura de um “culpado”. Quando o dito cujo é economista, técnico, visto como neoliberal e – ainda por cima – tem sotaque de argentino, ele reúne todos os ingredientes para ser o “carrasco” perfeito. Na minha caixa de e-mails, há de tudo. Desde jornalistas insinuando que eu quero “matar os velhinhos de fome”, até outros que propuseram fechar o Ipea por conta dos meus modestos artigos, passando por uma vasta coleção de impropérios dirigidos contra os meus antepassados.

A prática do diálogo, porém, costuma ser positiva e o contato com o público é estimulante. Há algumas experiências gratificantes, como a de pessoas que começam escrevendo com uma forte carga de agressividade e, recebendo e-mails educados em resposta, acabam se tornando quase amigas. E, como já dizia Guimarães Rosa na sua sentença de que “mestre não é aquele que ensina, mas aquele que, de repente, aprende”, sempre podemos aprender mais coisas. Um dos retornos interessantes que tive recentemente foi o de um leitor que me fez a gentileza de me oferecer uma cópia de uma edição antiga do jornal “O Globo”, que é uma verdadeira jóia. Com o título “Brasília também assalta a Previdência”, nela se dizia que “como era de esperar, começam a surgir os protestos contra a decisão de aplicar recursos dos institutos da previdência social na construção de Brasília (…) Não se pode negar que um dos erros maiores na direção da Previdência Social tem sido o desfalque continuado de recursos para os empreendimentos oficiais”. O artigo é de 1957! Já naquela época, os cuidados que seria preciso tomar com a saúde do sistema previdenciário a longo prazo eram mais ou menos óbvios. Apesar disso, sábios conselhos como os do editorial do jornal foram ignorados, o que nos remete à frase de Câmara Cascudo de que “o Brasil não tem problemas, mas apenas soluções adiadas”.

O meu desconforto com a agressividade de alguns ‘blogs’ no tratamento das idéias que defendo, além da confiança nas virtudes da boa argumentação e da persuasão, levam-me a compartilhar com os leitores uma nova tentativa de contribuir para o debate previdenciário, através de um conjunto de artigos, iniciados hoje com este nosso encontro mensal.

Uma das maiores dificuldades que tenho encontrado nas discussões sobre o tema é a tendência de identificar a figura do “vilão” no tratamento dos temas. Não é difícil de entender. Vivemos em um país onde a leitura diária dos jornais faz jorrar vilões aos borbotões. Como a impunidade de todos eles vai se caracterizando como o denominador comum dos diversos governos, uma vez que nenhum dos grandes responsáveis pelo assalto aos cofres públicos fica na cadeia mais do que 48 horas, o leitor tende a reagir diante de propostas de Reforma da Previdência com uma postura que pode ser traduzida na seguinte exclamação indignada: “Com tanto escândalo sem resolver, vão querer implicar logo com a minha aposentadoria?”.

Entendo que isso é natural. É difícil que o cidadão comum, que paga seus impostos em dia e que tenta ensinar aos seus filhos a ética do trabalho e o valor da honestidade, se convença que ele pode ser, também, em parte, responsável pelos problemas fiscais do país. Entretanto, é disso que se trata. O gasto primário do governo central, excluindo as transferências, passou de 11,1 % do PIB em 1991, para uma estimativa de 17,8 % do PIB em 2007. Estamos falando de uma variação de mais 0,4 % do PIB de gasto, em média, a cada ano, durante 16 anos. Desse “delta” de quase 7 % do PIB de gasto a mais, 3,9 % terão sido de maiores despesas do INSS; 1,3 % do PIB de incremento do gasto com aposentadorias dos servidores federais; 0,6 % do PIB de LOAS; e 0,5 % do PIB com Bolsa Família. Sempre tivemos problemas com corrupção no Brasil e é obviamente correto imaginar que, se tivéssemos instituições eficientes para punir, disporíamos de mais recursos para atividades essenciais. Não foi a corrupção, porém, que gerou esse boom de gasto público no Brasil nos últimos 15 anos. Todos temos direito à indignação pelo desvio de recursos públicos no Brasil e que, entra governo, sai governo, continua se sucedendo no que está se tornando tristemente o país da impunidade. No entanto, daí a considerar que nisso reside a causa do aumento do gasto público no país, há uma longa distância.

Programei para os próximos meses, um conjunto de artigos, como uma modesta tentativa de colaborar para o debate sobre a Reforma da Previdência. Teremos um encontro daqui a algumas semanas para tratar dos mitos sobre o sistema previdenciário, como a idéia de que “bastaria o INSS cobrar as dívidas de quem deve”, ou a tese de que “não precisamos de reforma, porque não há déficit”. Depois disso, iniciaremos um percurso de dez artigos para tratar de um “decálogo previdenciário”, com a apresentação e defesa de propostas cuja aprovação entendo que seria importante e que constituiriam, em conjunto, uma reforma previdenciáriar abrangente.

Ao leitor indignado com as nossas mazelas, confesso minha impotência com os descaminhos do país: como punir os corruptos, é algo que foge à minha competência. Depois de 15 anos de dedicação ao tema previdenciário, porém, tenho algumas idéias acerca de como o país pode gastar menos com aposentadorias e pensões, liberando recursos para outras atividades. Convido o leitor a me acompanhar, nos próximos artigos.

Fabio Giambiagi, economista, co-organizador do livro “Economia Brasileira Contemporânea: 1945/2004” (Editora Campus), escreve mensalmente às segundas-feiras.

Amanhã colocarei minha resposta, dada na “Coluna Econômica”

Luis Nassif

14 Comentários

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  1. Um pouco de agressividade e
    Um pouco de agressividade e provocação podem dar emoção e estimular o debate, desde de que não chegue ao nível das ofensas.

    Com referência ao déficit da previdência e o seu peso no déficit público, já vou adiantando que o atual ajuste econômico já esta viabilizando o aumento da capacidade de investimento do setor público, pois estamos gerando um superávit de 4% do PIB e ha uma clara tendência de nos próximos anos não haver mais necessidade de gerar superávit primário em função da queda dos juros da Selic e do aumento da arrecadação de impostos proporcionado pelo crescimento do PIB.

    Este cenãrio já permite um aumento da capacidade de investimento público dos atuais 2% do PIB para 4% do PIB e uma redução de pelo menos 2% do PIB(ou 7% da atual carga tributária).

    Alem disso num cenário de crescimento do PIB acima dos 4% do PIB a média dos salário tende a se afastar do salário mínimo e nível de desemprego tende a diminuir permitindo uma maior arrecadação do previdência.

    Creio que se o nível de desemprego se aproximar dos 5% e o salário médio aumentar 10% reais nos próximos anos a previdência mesmo sem reforma não pressionará o déficit público nos próximos dez anos.

  2. Nassif:
    Por que esse pessoal
    Nassif:
    Por que esse pessoal só fala em gasto primário, ou seja sem pagamento de juros, encargos e renegociação das dívidas, que já estão perto dos 65% dos gastos da União?

  3. Nassif:
    Voce não assistiu, no
    Nassif:
    Voce não assistiu, no fim de semana, ao programa Direito em Debate da TVE?
    O chefe do Giamba, presidente do setor de previdencia do IPEA, já inventaram isso, estava debatendo quase que sozinho a questão da previdencia, pois a Prof.ª Denise da Universidade Federal atrasou por causa do transito.
    Quando ela chegou, demonstrou ao ilustre presidente, baseada (epa!) em sua recem lançada tese de doutorado, que estudou os últimos 17 anos da Seguridade Social o superávit de R$ 50 bi no setor.
    Ai, ele muito sem graça passou a falar que ele nem gostava de falar somente na previdencia e, sim, no problema maior que são os gastos do governo, pois as contas não estão fechando?
    Quando ele disse esta bobagem o apresentador perguntou: mas por que não tratarmos dos juros, e só da previdencia?
    O ilustrssimo presidente respondeu: isto que voce (apresentador) está fazendo é um mau exemplo, veja uma dona de casa que deve, quer pagar as suas dívidas.
    A apresentadora retrucou: se estiver com o filho doente, ou sem comida não!
    Em outras palavras, o ilustre presidente escancarou! Saiu com uma cara de mané que levou um varejo!

  4. Nassif,
    Ele mesmo cita,
    Nassif,
    Ele mesmo cita, concordando com o que foi escrito, um artigo de 1957, que alertava para “desfalques continuados de recursos (da previdência) para os empreendimentos oficiais”.
    Deveria, portanto, reconhecer que as despesas com assistência social deveriam ser contabilizadas no Tesouro, e não na Previdência. Ou, pelo menos, devia reconhecer a importância de se dar transparência às contas.
    É óbvio, e contraditório para um analista como ele, que de despreparado não tem nada.

  5. O artigo do Sr. Giambiagi
    O artigo do Sr. Giambiagi soou prá mim mais como um desabafo e um certo sentimento de culpa. Citando as criticas de blogs e que são abertos a todos portanto, podem ser discutidos, item por item. Ele foi criticado exatamente porque dele se esperava mais do que culpar as pessoas de envelhecerem. Sentimento de culpa quando ele cita Guimarães Rosa e agiu sempre ao contrário, como “o mestre” e até nos acusa de preconceituosos. Concordo que a corrupção no INSS nos últimos 25 anos teve importância, mas não é isso, o que se discute é os próximos 25 anos. Aceito o convite.

  6. “Nassif:
    Por que esse pessoal
    “Nassif:
    Por que esse pessoal só fala em gasto primário, ou seja sem pagamento de juros, encargos e renegociação das dívidas, que já estão perto dos 65% dos gastos da União?”

    Primeiro, os juros nao estao nem perto de 65 por cento dos gastos da Uniao. Segundo, o foco no gasto primario se deve ao fato deste gasto ser controlavel pelas autoridades fiscais.

    Mas falando serio, o foco no gasto primario se deve a esse “pessoal” querer matar todas as criancinhas do Brasil em sacrificio para a Besta do Mercado, assim negando-as uma existencia feliz com inflacao alta e gasto publico fora do controle.

  7. Nassif,

    como já comentei
    Nassif,

    como já comentei outro dia, eu acho que o exercício da função de economista deveria pressupor também a possibilidade de eles serem processados pelas besteiras que fazem, tal como o jornalista que difama, o médico com vocação para açougueiro, o engenheiro que deixa suas criações desabarem / estragarem, etc.

    Certamente eles, os economistas ficariam um pouco mais cautelosos, não é mesmo ?

    Seria, por exemplo, muitíssimo divertido ver na cadeia aqueles responsáveis pelos planos Cruzado, Bresser, Collor, etc. Muitos destes planos andam tendo repercussões até hoje, muito em função de gambiarras …

    Ou ainda aqueles famigerados “economistas-chefes” de bancos, que só falam besteira – já pensou eles terem que indenizar alguém que seguiu as dicas dos caras e se deu mal ? Cada vez que eu vejo um exemplar assim na TV, ou vomito ou mudo de canal.

  8. Nassif,
    Acho que seria
    Nassif,
    Acho que seria interessante postar no projeto Brasil uma tabela com as principais fontes de despesa e receitas do governo. Nao consigo entender, por exemplo, o que e o LOAS? em relacao aos valores, quanto e o PIB brasileiro?

  9. Nassif,
    O artigo do Fabio e
    Nassif,
    O artigo do Fabio e muito bom, mas o final ta meio esoterico. Se ele tem ideias claras a respeito do problema porque nao fala logo.

  10. Quem paga a conta da
    Quem paga a conta da Previdência no final é o contribuinte. Os R$ 30 bilhões ( a maior redistribuição de renda do mundo ) pagos para os velhinhos ,que nunca contribuiram objetivamente para tal conta, acaba saindo mesmo do mesmo cofre.

    Quem inventou o conceito de aposentadoria no mundo prático foi o ultradireitisa Bismarck na Alemanha dos kaisers.

    Os “recebíveis” do INSS nem fazem cócegas nas necessidades de longo prazo. É ou não é?

    O Nassif deve ter informações especiais para ironizar “o pai do cara, que foi metido no meio”.

    Qual a porcentagem do PIB, que de fato (o que é arrecado) é metido na questão atuarial?

  11. voces economista fala, falam
    voces economista fala, falam falam,…
    mas eu tenho memória historica e trabalho na área de auditoria do TCE e vejo proliferar institutos de pensões por todo o canto, criam cargos, contratam acessoria juridica, pagam site caros e alugueis de imoveis, mais carro etc. vai ai 2% da arrecadação(cfe. permite a lei). No passado os IAP… existiam e faliram, porque ao invés de escreverem longas linhas analisando a previdência voces não escrevem todo dia um pouco sobre isto para acabar com estes institutos – BASTA O INSS. é mais fácil controlar.

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