Trabalho via aplicativo – um projeto de lei equivocado III, por Luiz Alberto Melchert

É então que se abre o espaço para que o Estado assuma papel importante como concorrente

Tomaz Silva – Agência Brasil

Ecosofia

Trabalho via aplicativo – um projeto de lei equivocado III

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Em 2022, em outro espaço, foram publicadas cinco matérias em que se discutia a gênese da Uber e o que se passou a conhecer como uberização[1]. Já havia empresas que usavam a internet para contratação de transporte pessoal, porém, dentro do sistema de permissão de serviço público, como é o caso dos táxis. Já havia também empresas que faziam pequenas entregas, como de comida e medicamentos, usando motocicletas. Não demorou muito para que, dado à semelhança tecnológica, bem como ao domínio generalizado das ferramentas de acesso à internet, as empresas invadissem o espaço umas das outras. Tornaram-se gigantes e os conflitos com os permissionários mais que pacificou-se, criou-se uma simbiose. Hoje é possível chamar um carro por aplicativo e ver chegar um táxi. O modelo de permissão e de concessão, para o transporte público individual simplesmente ruiu.

Ao mesmo tempo, o transporte de carga, como visto na primeira matéria daquela série, transformou-se em agenciamento de carga, reduzindo significativamente o número de empresas transportadoras com frota própria. Ao mesmo tempo, como mencionado pelos capítulos posteriores daquela série, há uma tendência da padronização da frota nacional a partir das plataformas, seja em carretas, seja em caminhões. Jamais deixará de existir o transporte especializado, mas vai operar como mercado de nicho, enquanto o número de itens passíveis de padronização continuará crescente a taxas decrescentes, até estabilizar a frota rodoviária. Isso cria uma oportunidade ímpar para que as atuais gigantes do transporte por aplicativo abocanhem também o transporte de cargas, num modelo muito semelhante ao destinado às pessoas e às pequenas coisas. Algo, porém, não muda como ameaça: o atendimento aos profissionais, seja na previdência social, seja no amparo a si e às suas famílias em caso de cessação da prestação dos serviços, que continua não sendo encarado no PL apresentado pelo Executivo.

É então que se abre o espaço para que o Estado assuma papel importante como concorrente da iniciativa privada compartilhando o mercado com os empresários dos aplicativos de duas a vinte rodas, não restringindo às quatro. Afinal, não há razão social ou prática que justifique deixarem os motociclistas de fora desta ou de qualquer conquista. Essas empresas terão de mudar a forma de ver seus filiados, passando da exploração à colaboração. Algumas cidades no interior de São Paulo, Araraquara e Araras, já partiram para isso. As prefeituras já oferecem o mesmo serviço que as principais empresas do ramo.

O problema não se resolve pelo uso das prefeituras. A municipalização, num ambiente de metropolização, limita demais o mercado dos operadores. No interior de estados como os do Sul e do Sudeste, onde as cidades distam, em média, 20 km umas das outras, é comum uma pessoa ir almoçar em outra cidade, ou buscar atendimento médico noutra maior, que se tornou a metrópole da região. Essa metropolização atinge também os transportes por aplicativo, pois uma pessoa em Itirapina poderá ser atendida por um motorista de Sta. Gertrudes, de S. Carlos ou de Corumbataí. A melhor solução parece ser a prestação desse serviço por um órgão federal que agregue, a um só tempo, os transportes de pessoas, de pequenas coisas e de cargas em caminhões ou carretas-plataforma. Assim, qualquer profissional pode atender em qualquer ponto do país sem restrição, dentro de um mesmo conceito de justiça social.

A taxa pode ser – digamos – de 15% a serem distribuídos: 5% para a previdência social, garantindo a aposentadoria do profissional; 5% para um seguro contra lucros cessantes, tal que o profissional não perca renda em caso de acidente ou doença, e 5% para a manutenção do sistema. Dessa forma, o prestador mantém as garantias sociais mínimas sem ter que se tornar um empregado e, mais do que isso, reduzindo significativamente o dispêndio com o intermediário, que hoje começa com 25% e pode chegar, consoante a forma de pagamento, aos 50% do serviço prestado. Não se trata de estatização, pois a empresa ou empresas que mantém o sistema podem ser privadas e, indubitavelmente, 5% para o INSS sobre uma parcela tão grande da logística nacional há de ser um valor bastante significativo, algo na casa das dezenas de bilhões de reais. Tenhamos em mente que o mesmo sistema de contratação passaria a abranger desde o CCT[2] da cana de açúcar, toda a movimentação de grãos, chegando à entrega de um hamburger.

Esse órgão, assim como as empresas que operam o sistema atual, devem ser induzidos a prestar serviços a quem contrata o frete e a quem transporta, numa relação de parceria, não de subordinação, pacificando realmente o setor. Não se trata do estado abarcando para si um setor lucrativo, porém, o Estado cumprindo o seu papel de regulador e prestador de serviços ao contribuinte. Independentemente de o executivo retirar ou não PL apresentado, a solução ainda pode estar de pé a partir dos Correios, haja vista que também eles já estão no mercado de logística com uma capilaridade tão invejável que há sempre empresários cobiçando sua privatização


[1] https://www.carrosegaragem.com.br/os-meandros-da-logistica-e-a-uberizacao-do-frete-parte-i/, https://www.carrosegaragem.com.br/os-meandros-da-logistica-e-a-uberizacao-do-frete-parte-ii/, https://www.carrosegaragem.com.br/os-meandros-da-logistica-e-a-uberizacao-do-frete-parte-iii/ , https://www.carrosegaragem.com.br/os-meandros-da-logistica-e-a-uberizacao-do-frete-parte-iv/, https://www.carrosegaragem.com.br/os-meandros-da-logistica-e-a-uberizacao-do-frete-parte-v-final/ .

[2] Corte, Carga e Transorte, geralmente usado para o setor sucroalcooleiro.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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