Trabalho via aplicativo – um Projeto de Lei equivocado II, por Luiz Alberto Melchert

E qual será o ramo da justiça a recorrer? Se for ao do trabalho, está-se configurando a relação empregatícia; e a comum, não está aparelhada

Rafa Neddermeyer – Agência Brasil

Ecosofia

Trabalho via aplicativo – um Projeto de Lei equivocado II

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Este capítulo visa a entender, ponto a ponto, o projeto de lei complementar em questão para que não pairem dúvidas acerca das incoerências que traz em seu bojo e da insegurança jurídica que causa ao conflitar frontalmente com  o Código do Consumidor. Com o agravante de que, como lei complementar, é hierarquicamente superior a ele, que é lei ordinária. Para facilitar a leitura, o presente texto organiza-se da mesma forma que o projeto, eliminando as disposições que não mereçam comentários.

Art. 1º  Esta Lei Complementar dispõe sobre a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e estabelece mecanismos de inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições de trabalho.

Note-se que o consumidor sequer é mencionado e o texto parece enfatizar a intermediação, retirando da empresa qualquer responsabilidade pela qualidade do serviço prestado, muito menos o respeito à legislação pertinente ao transporte público. O projeto também não considera a possibilidade de usarem-se motocicletas para o mesmo fim e é extremamente restritivo, considerando-se que o agenciamento de carga, que pode ir das duas às vinte rodas carece de regras que protejam seus trabalhadores.

Art. 3º  O trabalhador que preste o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de empresa operadora de aplicativo, será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo por plataforma e será regido por esta Lei Complementar sempre que prestar o serviço, desde que com plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo.

§ 1º O enquadramento do trabalhador de que trata o caput pressupõe as seguintes condições, que serão objeto de fiscalização na forma do disposto no Art. 14:

I- inexistência de qualquer relação de exclusividade entre o trabalhador e a empresa operadora de aplicativo, assegurado o direito de prestar serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de mais de uma empresa operadora de aplicativo no mesmo período; e

II- inexistência de quaisquer exigências relativas a tempo mínimo à disposição e de habitualidade na prestação do serviço.

§ 2º O período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias, na forma do regulamento.

§ 3º Para fins do disposto nesta Lei Complementar, o trabalhador de que trata o caput integra a categoria profissional “motorista de aplicativo de veículo de quatro rodas” e será representado por sindicato que abranja a respectiva categoria profissional, e as empresas operadoras de aplicativos serão representadas por entidade sindical da categoria econômica específica, com as seguintes atribuições:

I – negociação coletiva;

II- celebração de acordo ou convenção coletiva; e

III- representação coletiva dos trabalhadores ou das empresas nas demandas judiciais e extrajudiciais de interesse da categoria.

Reforça a isenção da empresa no que concerne ao relacionamento com o cliente, como demonstrado acima. Como tempo máximo é de 12 h/plataforma, se o motorista atender duas delas, poderá trabalhar por 24 h/dia, mantendo-se o mesmo grau de exploração e desumanidade. Por fim, contraditoriamente, impõe a existência de um sindicato, coisa inerente às relações de trabalho, mas não diz como financiá-lo.

Art. 4º  Sem prejuízo do disposto no Art. 3º, outros direitos não previstos nesta Lei Complementar serão objeto de negociação coletiva entre o sindicato da categoria profissional que representa os trabalhadores que prestam o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e as empresas operadoras de aplicativo, observados os limites estabelecidos na Constituição.

§ 1º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo.

§ 2º Durante o processo de negociação coletiva entre os sindicatos representativos dos trabalhadores que prestam o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e as empresas operadoras de aplicativos, as partes envolvidas serão incentivadas a buscar soluções consensuais antes de demandarem o Poder Judiciário, de modo a promover a resolução amigável de disputas e fortalecer a autonomia na negociação coletiva, o diálogo e a autocomposição na relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativo.

E qual será o ramo da justiça a recorrer? Se for ao do trabalho, está-se configurando a relação empregatícia; se for a justiça comum, não está aparelhada pare esse tipo de acordo, podendo declarar-se incompetente.

Art. 5º  As empresas operadoras de aplicativos ficam autorizadas a implementar as seguintes práticas, sem que isso configure relação de emprego nos termos do disposto na Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943:

I – adoção de normas e medidas para garantir a segurança da plataforma, dos trabalhadores e dos usuários, para coibir fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, observadas as regras previamente estipuladas nos termos de uso e nos contratos de adesão à plataforma;

 II – adoção de normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados por intermédio da plataforma, inclusive suspensões, bloqueios e exclusões, observadas as regras previamente estipuladas nos termos de uso e nos contratos de adesão à plataforma;

 III – utilização de sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados;

IV – utilização de sistemas de avaliação de trabalhadores e de usuários; e

V – oferta de cursos ou treinamentos, bem como quaisquer benefícios e incentivos aos trabalhadores, de natureza monetária ou não, ainda que de caráter continuado.

Falta caracterizar o serviço como transporte público, tal que não se recusem passageiros com necessidades especiais sob a alegação de o carro não ser adaptado.

Art. 9º  A remuneração mínima do trabalhador de que trata o caput do Art. 3º será proporcionalmente equivalente ao salário-mínimo nacional, acrescido do ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador na prestação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros, nos termos do disposto em regulamento.

§ 1º Os custos a que se refere o caput contemplam, no mínimo, os custos e as tarifas relativos ao uso do aparelho celular, ao combustível, à manutenção do veículo, ao seguro automotivo, aos impostos e à depreciação do veículo automotor.

§ 2º Fica estabelecido, como remuneração mínima, o valor horário de R$ 32,10 (trinta e dois reais e dez centavos), devendo ser contabilizado, para fins desse cálculo, somente o período entre a aceitação da viagem pelo trabalhador e a chegada do usuário ao destino.

§ 3º O valor da remuneração a que se refere o § 2º é composto de R$ 8,03 (oito reais e três centavos), a título de retribuição pelos serviços prestados, e de R$ 24,07 (vinte e quatro reais e sete centavos), a título de ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador na prestação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.

§ 4º Os valores a que se referem os § 2º e § 3º deste artigo serão reajustados mediante a aplicação da sistemática de valorização do salário-mínimo prevista no caput e no

§ 1º do Art. 3º da Lei nº 14.663, de 28 de agosto de 2023.

§ 5º A remuneração mínima estabelecida neste artigo será verificada de forma agregada, a cada mês, pela empresa operadora de aplicativo.

§ 6º Caso o valor recebido pelas horas trabalhadas, calculado na forma prevista neste artigo, seja inferior ao valor horário estabelecido, a empresa deverá apurar e realizar o repasse complementar da diferença, observado o prazo previsto no inciso II do § 3º do Art.10.

§ 7º É vedado às empresas operadoras de aplicativo limitar a distribuição de viagens quando o trabalhador atingir a remuneração horária mínima de que trata este artigo.

Esse artigo chega a ser ingênuo. A exemplo do que acontece na agricultura, em que se é obrigado a pagar o que for maior, ou o valor do tempo, ou o serviço prestado, as empresas tenderão a excluir da plataforma todos aqueles menos produtivos, ficando somente com os de maior dedicação, tal que a probabilidade de ressarcimento tenda a zero. Ao mesmo tempo, o projeto não considera que o custo do veículo é medido por quilômetro rodado e o trabalho por tempo. Não é possível garantir a remuneração do veículo por tempo como aqui exposto. Isso vai implicar em que a plataforma tenda a encarecer as corridas mais curtas, prejudicando o consumidor. Ao mesmo tempo, como não há limites mínimos para o tipo de veículo, os motoristas tenderão aos carros mais básicos, prejudicando o conforto do passageiro. O primeiro entre os itens a serem excluídos será o condicionador de ar porque, além de encarecer o veículo, consome energia durante seu uso.

Art. 15. O descumprimento do disposto nesta Lei Complementar, no que se refere às disposições trabalhistas, sujeita a empresa infratora ao pagamento de multa administrativa cujo valor corresponderá a até cem salários-mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

Afinal, o motorista é empregado ou autônomo?

Certamente, existem muitos outros pontos a considerar. Estes pareceram os mais evidentes. Na próxima semana, uma sugestão mais madura para regular esse mercado.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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