Corpos dóceis e a militância: manutenção das relações de opressão, por Andréia Roseno

"É sério que ainda seremos, negritude e povos originários, voz non grata?"

Brasília – Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver em Brasília, reúne mulheres de todos os estados e regiões do Brasil (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Artigo | Corpos dóceis e a militância: manutenção das relações de opressão

Por Andréia Roseno*

Do Brasil de Fato

Nos finais de ano, existe todo um clima construído que nos induz, intencionalmente ou não, a fazer um balanço do nosso projeto de vida, seja individual, seja coletivo, do período vivido. Movida por essa sensação, veio a inspiração de escrever esse texto, para falar das relações que construímos na militância.

Por ora, sinto que às vezes confundimos e fundimos a política com a maneira pessoal com que lidamos com as companheiras e companheiros que se somam à militância cotidiana conosco. É mais fácil lidar com corpos dóceis. E, nem de longe, é um julgamento a despeito dessa lida. Mas, se a égide desta sociedade é racista, patriarcal e de exploração, e as relações sociais não são naturalmente construídas, assim também o é com os sentimentos e preferências, o que torna necessário questionar essa opção.

A sociedade burguesa estabeleceu quem são aquelas e aqueles considerados “não dóceis”, sobretudo aqui no Brasil, quando amargamos não menos que três séculos de escravidão. Pensando que somos herdeiras e herdeiros desse processo colonial escravista, distribuídos intencionalmente em papéis antagônicos na reprodução capitalista, existem, de um lado, aqueles beneficiados por arranjos sociais – mesmo que não sejam donos dos meios de produção –, cuja sobrevivência é facilitada pela forma com a qual a sociedade o lê (branco, cis, hetero); e, do outro lado, os que vivem as mazelas procedentes desta forma de produzir e reproduzir a existência. Neste último grupo, está mais da metade da população brasileira, constituída pela negritude e pelos povos originários.

É importante falarmos de produção e reprodução da existência para delimitarmos um marco epistemológico da totalidade da vida humana, do direito a viver – negado pelo Estado burguês, retrógrado, misógino, racista, homofóbico, sob o qual vivemos. Basta olhar os índices de feminicídio, extermínio da juventude negra, crime de homofobia, incêndios criminosos na Amazônia. Sobreviver não nos basta. Sobreviver é pouco para a sociedade que sonhamos e lutamos.

Há muito vem se falando, no Brasil, sobre a necessidade premente de reorganização da esquerda nacional. E, com ênfase desde 2016, o trabalho de base, fim do “ciclo do PT”, derrota estratégica, descrédito das organizações. Mas é passada a hora de falarmos dos corpos revolucionários, que infelizmente se encontram setorizados nessas instituições.

Quem está formulando essa retomada? É sério que ainda seremos, negritude e povos originários, voz non grata? Seguirá a imposição dos capitães do mato? É sério que o racismo estrutural e estruturante nos colocará para disputar os mesmos lugares folclorizados? E nós, aceitaremos para garantir nossa sobrevivência?

Os questionamentos não são palavras jogadas ao vento. Existe um cansaço das não respostas. Neste final de década, vimos aprofundar o adoecimento mental na sociedade brasileira – na militância, não seria diferente. As organizações da negritude e dos povos originários vêm fazendo o exercício de não aceitar a construção feita pelo senhor de engenho, reproduzida em todas as instâncias sociais que utilizam de forma perversa, como mecanismo de controle e de manutenção do poder, o silenciamento e a invisibilidade da nossa história.

Tal enfrentamento nos custa a sanidade. Por vezes, as nossas falas são interpretadas como “desabafos”, retirando seu conteúdo político, para restringir e delimitar a luta como histeria. Quando se pactua, na política, o diálogo a partir dos corpos dóceis, se contribui para a manutenção dos espaços de privilégios e, consequentemente, se estabelece o não-lugar político para os corpos conflitantes/dissonantes e até não amáveis. Sim, não amáveis mesmo, porque é abismal discutir afetos na política. Dissocia-se. Desumaniza. É menor. É pós-moderno. Não agrega. Sério? Então vá para o raio que parta com esse “Ninguém solta a Mão de Ninguém”.

Não se perde nenhum militante para vida: expurga-se. Todavia, parece que o conflito advindo dos corpos não dóceis tem tendência a ser uma questão para aqueles e aquelas que se privilegiam dos espaços de micro poder exercidos na democracia burguesa que, contraditoriamente, neste período, estamos defendendo em luta.

Estamos indo para a segunda década deste início de milênio. A tarefa é reorganizar a esquerda brasileira, se aprumar no caminho. Viver. As meninas e povo no poder, como dizem Milton e Brant, só será possível se, em vez de sobreviver, o povo brasileiro tiver as condições de viver plenamente a soberania nacional sem negociatas e concessões, sejam elas objetivas ou subjetivas.

Por fim, coragem para radicalizar nas construções de afetos, questionar, se questionar, ousar, não ter receio do conflito, acreditar que é possível construir a unidade na diferença e fazer outra abolição. Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo.

* Ativista da Rede de Mulheres Negras de Minas Gerais e cantora do Afoxé Bandarere.

 

Redação

2 Comentários

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  1. Curiosamente, o artigo evita citar qualquer referência à luta de classes. No máximo, um anêmico “Estado burguês”.
    É o que menos ouço, alguém se declarar da classe trabalhadora.
    A tal ponto de criar curiosas anomias.
    Como uma história que fiquei sabendo estes dias, de um trabalhador que bateu boca com umas garotas estudantes de Arquitetura da USP. Elas defendiam um estudante do mesmo curso enquanto o estudante literalmente se apoiava num homem que voltava do trabalho. Elas consideraram normal que ele se apoiasse numa pessoa para pegar o smartphone de sua mochila e ele bateu boca.
    Segundo o raciocínio delas, que não trabalham e tem uma média familiar superior a muita gente, o homem deveria se submeter a essa folga de um playboy?
    Elas, claro, são o exemplo da esquerda.
    Pra quem olha o que a direita faz não olha o que uma parte da esquerda anda fazendo. Aceitar que uma parte da classe média cheia de má-consciência, com seus costumes pequeno-burgueses, deem linha.
    Podem dar o dedo pra baixo. Cansei desse discurso vitorioso e cheio de bom-mocismo e hipocrisia da esquerda de classe média. Vocês erram desde 2013 e não aprendem.

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