Levaram meu irmão, por Jacson Zilio

Tinha 49 anos, família, esposa, duas crianças e pais idosos. Infartou. Não resistiu ao método brutal do poder punitivo.

do Coletivo Transforma MP

Levaram meu irmão

por Jacson Zilio

A primeira vez que levaram meu irmão foi pela ação insensível de “colegas” algozes do Ministério Público. Sob o argumento ilusório de supostos delitos de usurpação de função pública ou de prevaricação – enxergados pela repressão no exercício regular de direitos contratuais de prestação de serviços médicos cooperados, vigentes desde o ano de 2013 em São Miguel do Iguaçu/PR -, invadiram a casa do bioquímico Charles Zilio, Diretor Administrativo da CESMED, já na primeira hora da manhã, de armas em punho, diante dos pais idosos e dos filhos menores. Ninguém sabia o que buscavam e nada levaram. Deixaram, contudo, assombros, traumas e medos descomunais. Era o ano de 2015. Naquele tempo, os métodos violentos do lavajatismo, de extorsão pela pena aplicada em espetáculos midiáticos e de humilhação pública desnecessária, faziam vítimas e estavam em plena expansão. A prisão durou poucas horas, por força de liminar do Tribunal de Justiça do Paraná, mas foi suficiente para provocar estragos pessoais incomensuráveis e duradouros. Mais de 5 anos depois, por unanimidade, o mesmo tribunal absolveria meu irmão, julgando integralmente improcedentes todas aquelas levianas acusações criminais. A imagem pública, contudo, jamais se restabeleceu por completo, nem se extinguiu o sofrimento do acusado – afinal, uma justiça tardia não desfaz a agressão de uma acusação injusta.

Mas antes dessa decisão do TJ/PR, que corrigiu um equívoco judicial, ainda estava ativo o vírus da Covid e do lawfare brasileiro. O primeiro matava por asfixia, incompetência e charlatanismo, sem nenhuma contenção pelo governo negacionista; o segundo, de forma não menos dolorosa, intervinha em processos políticos concretos nas vésperas de pleitos eleitorais, para posicionar o direito penal como arma seletiva de perseguição e linchamento midiático, sempre aliado ao sensacionalismo barato da imprensa, com notícias distorcidas ou maldosas. Eram tempos ásperos.

Nesse momento é que levaram meu irmão pela segunda vez. Amparados por reportagens e fotos de momentos privados postadas em redes sociais, dezenas de homens da polícia federal, comandados por algum acéfalo em busca de fama, deslocaram-se ostensivamente para uma pequena cidade no interior paranaense, mascarados, armados e acompanhados daquela imprensa ávida de espetáculos policiais. Explodiram os portões da casa dele e invadiram o local com violência, novamente na presença da esposa e das crianças. Ninguém sabia o que buscavam e nada levaram. Repetiram isso em outras residências. Levaram médicos, funcionários, empresários e políticos locais. Alardeavam bárbaros crimes licitatórios e o mal cósmico da corrupção, com apropriação de valores imaginários, tudo difundido para gerar uma falsa imagem de gravidade dos fatos. Corrupção, associação criminosa, lavagem de dinheiro e outros delitos integravam o combo perfeito que mobilizou algumas agências penais autoritárias da contemporaneidade. Mais uma vez, a barbárie parece não ter limites. Essa prática, similar àquela sofrida pelo reitor da universidade de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, já estava normalizada em segmentos conhecidos do mundo judicial. O poder punitivo medieval parece sobreviver na atitude de promotores vingativos e de juízes açodados ou dóceis. A histeria popular, fomentada pela comunicação irresponsável de deformadores de opinião, assume dimensão assustadora.

Na sequência do último episódio, como irmão da vítima e professor de direito penal, observei a progressão de medidas judiciais no âmbito de um setor conhecido da justiça federal: manipulação de competência penal inexistente, prisões cautelares usadas como antecipação de condenação ou para determinar colaborações, extorsões patrimoniais camufladas de fiança calculada sobre prejuízos fantasiosos, investigações policiais intermináveis e invasivas de direitos individuais, restrições de uso de bens, proibições de contratos com o poder público e cautelares decretadas para execução da morte civil. Em suma, a “investigação policial” e as medidas cautelares pessoais e empresariais, estendidas a familiares, empregados e amigos que nada sabiam de contratos públicos, converteram-se em reais penas criminais antecipadas. Essas medidas cruéis, semelhantes à morte e às torturas físicas, também são penas criminais, ainda que sob forma camuflada da legalidade, ou conforme procedimentos prévios do devido processo legal. A inversão do princípio da presunção de inocência é o sinal mais claro da farsa ideológica que move a sanha punitiva do atual processo penal brasileiro.

O resultado inevitável pareceu no lado mais frágil, na realidade de um homem de carne e osso, um empresário honesto exposto ao linchamento público, midiático e judicial, julgado e condenado sem processo, sem contraditório, sem acusação formal por denúncia regular. Nesse novo contexto – e antes do julgamento de habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça, fundado na incompetência da justiça federal e na consequente anulação de todos os atos decisórios -, levaram meu irmão pela terceira vez, agora de modo definitivo. Desta vez, em uma ambulância, com alguns homens de branco. Tinha 49 anos, esposa, duas crianças e pais idosos. Infartou. Não resistiu ao método brutal do poder punitivo. Morreu sem dinheiro e sem poder se defender de acusações difusas ou vazias, formuladas a esmo em investigações policiais truculentas. Um ano e meio de sofrimento. Um ano e meio de tortura psicológica. Os bons amigos e familiares ficaram firmes, apesar de que, como já perguntou Cecília Meireles e cantou Chico Buarque, “quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece”? Como disse Brecht, “quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis. Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos.”

O utilitarismo autoritário do estado policial, com sua política penal de derramamento de sangue e espalhamento cruel de dor, venceu mais uma vez. Pelas mãos de “palhaços togados submissos às ordens das polícias”, triunfou a desrazão do “direito penal vergonhoso” de que fala Zaffaroni. Perdeu o direito penal liberal. Perdemos todos nós.  Resta o alerta para essa gente que vive do dano que causa aos outros que, fôssemos infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece (Brecht), especialmente a saudade.

Jacson Zilio – Doutor em Direito Penal e Criminologia/Universidad Pablo de Olavide/Espanha. Promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná. Membro do Coletivo Transforma MP.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

14 Comentários

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  1. Sim, sou suspeita de falar do Charles Zilio, pessoa amável e amo muito sua família que são meus sobrinhos, sempre estive ao seu lado e escutava seu lamento de ter sido condenado sem defesa, julgado publicamente por interesses escusos políticos, sem direito a ampla defesa e sem nenhuma base legal, a não ser politica partidária (suja). Devemos dizer ao povo que nunca procurou saber, que em seu laboratório todos faziam exames com recursos ou sem para pagar e eram tratados do mesmo modo, seu laboratório tem maquinas sofisticadas para atender o povo sem ter que sair da cidade, mesmo após a toda essa tortura psicológica, continuou a trabalhar ainda mais sem guardar magoas ou rancor, o tempo é o Senhor da Razão e veremos após alguns anos sem Charles quem são os maus.

  2. Ontem a noite estava lendo Os Fins do Direito Penal, que o senhor escreveu junto com Fábio Bozza. E hoje acordo com essa triste notícia. Meus mais sinceros sentimentos, ao senhor e a sua família.

  3. Quem acompanhou diariamente, de perto, sabe os danos psicológicos irreversíveis do qual ele foi acometido, depois disso que Dr Jacson nos relatou.
    Com certeza Esse mundo não se fazia mais digno da pessoa que era o chefe; Charles Zilio.
    Deus o levou de volta para casa pra evitar que ele viesse a sofrer, por mais vezes, as injustiças absurdas, de quem se Julga “competente”.
    Que Deus conforte o coração de vcs da família nesse momento de tanta dor; dor da perda do ente tão amado, e a dor da injustiça sofrida por ele.
    Descanse em paz, ao lado do Pai Dr Charles.

  4. Faço minhas as palavras de Jacson….policia mal preparada.a PF se tornou uma decepção…vergonha da PF..esses novos concursados loucos para aparecerem na mídia, inventam criam ..como fizeram e continuam fazendo como em Esdras CAP 4 (Biblia)

  5. Jacson primeiramente gostaria de demonstrar nossos profundos sentimentos! Na sequência dizer que conheço muito bem todas as nuances do ocorrido! Levam as pessoas e as famílias e o retorno físico acontece, mas as marcas da violência ficam para sempre!!!

  6. Essa conduta fascista do MP e Judiciário ocorre muito antes, bem antes mesmo, da morte do seu irmão e do Reitor da UFSC.

    Uma pena que seja preciso acontecer uma catástrofe com pessoas próximas para, finalmente, um membro do do tão poderoso Ministério Público esquecer a indisposição com os “colegas membros” e corporativismo notório, para se manifestar com tanta veemência.

    Meus sentimentos.

  7. Jacson Zílio, tão certo, tão verdadeiro. Quem o conhecia realmente, sabe do quanto fez de bom para o município. Havia me dito dias antes, que estava no seu limite. Lamento muito não ter conseguido convencê-lo de procurar ajuda e ignorar a pressão ao seu redor. Siga em paz Charles!

  8. Que triste 😥 infelizmente mais uma obra satânica desses covardes do MP e PF meus pêsames a toda família e amigos enlutados por essa tragédia com seu irmão que Deus na sua infinita bondade possa confortar a todos vocês 🙏🖤

  9. Doutor, seu texto é significativo. Sua dor ecoará por onde eu puder me expressar academicamente. Acredito piamente em mudanças, que dependem de nós, que vivenciamos diuturnamente a utilização seletiva e discriminatória de um poder punitivo deste estado policial de direito que está aí e que temos por obrigação rechaçar. Meus sentimentos. Minha admiração, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente. Meu sincero respeito.

  10. O Brasil é um país de impunidade, onde os poderosos mandam e àqueles que não se calam diante das barbáries pagam muitas vezes com a própria vida. Uma triste realidade a ser combatida por pessoas e profissionais competentes que prezam acima de tudo pela igualdade de direitos humanos em sua mais ampla defesa.

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