O Schindler chileno que salvou perseguidos pela ditadura de Pinochet

 

Sugestão de R.Moraes

do Operamundi

Schindler chileno repetiu história de xará alemão e salvou perseguidos pela ditadura de Pinochet

Victor Farinelli | Santiago

Ex-militante do Partido Comunista do Chile, o farmacêutico empregou 47 opositores do regime em suas propriedades

Um pequeno empresário de sobrenome Schindler utiliza seu negócio para esconder dezenas de pessoas perseguidas por um regime totalitário que pretende exterminá-las. A história se parece com a do filme “A lista de Schindler”, de Steven Spielberg, mas esta é a sua versão latina, ocorrida em Santiago do Chile.

Militante do Partido Comunista chileno nos anos 1960, Jorge Schindler trabalhava na sucursal dos laboratórios Bayer no país. Durante o governo de Salvador Allende, foi integrante do comitê de farmácias da Corfo (Corporação de Fomento para a Produção, instituição criada apoiar pequenas empresas).

Victor Farinelli/Opera Mundi

A história de Schindler virou livro neste ano, em que conta sobre a proteção de perseguidos pela ditadura chilena

Abandonou o trabalho e o partido depois do golpe, mas logo assumiu o controle de uma farmácia herdada de um tio, no bairro de Villa México (setor periférico, no sudoeste da capital chilena). E não seria mais que um simples farmacêutico se o golpe de Estado não fosse bater na sua porta, em junho de 1974. Schindler chegou a ter seis farmácias e 47 opositores do regime de Augusto Pinochet como empregados.

O primeiro refugiado

                – Alô, aqui quem fala é o Almirante Carvajal, nossas forças já cercaram o Palácio e nossa única exigência é a rendição do senhor Salvador Allende e de seus seguranças pessoais.

Quem atendeu o telefonema foi o capitão Quintín Romero, único membro da PDI (Polícia de Investigações, equivalente à polícia civil no Brasil) que trabalhava no aparato de segurança do Palácio de La Moneda, por contar com a confiança de Allende. Naquele momento, Quintín chamou o presidente ao telefone.

               – Não me renderei, e menos ainda para militares traidores, covardes, vende-pátria… – e uma sequência incontável de palavrões, segundo o ex-policial. “O doutor sempre foi uma pessoa de linguajar polido. Aquela ligação aconteceu minutos depois que ele nos disse que sabia que não sairia dali com vida. Acho que aproveitou a ocasião para descarregar toda a angústia que sentia”, recorda Romero a Opera Mundi.

Como não pertencia ao GAP (Grupo de Amigos Pessoais, a escolta particular de Allende), Quintín Romero não foi levado ao Estádio Nacional, como a maioria dos prisioneiros capturados em La Moneda. Permaneceu preso no quartel do Batalhão Tacna, durante pouco mais de um mês, até conseguir escapar, no final de outubro, com a ajuda de colegas da PDI.

Passou meses refugiando-se em diferentes locais no Centro de Santiago, até encontrar um conhecido que trabalhou no Palácio durante o governo de Allende. “Eu pedi a ele um esconderijo na periferia e ele não sabia de nenhum, mas falou de um ex-comunista que havia aberto uma farmácia na Villa México”.

Foi assim que Romero chegou até Jorge Schindler, a quem contou sua história e pediu ajuda. O farmacêutico logo se prontificou a ajudar. “Primeiro ofereci abrigo numa casa ali na periferia, que eu alugava para um pessoal do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária, em sua sigla em espanhol), que desapareceu depois do golpe. Por ser longe do centro, era muito mais adequada para um perseguido político. Então, ele se ofereceu para retribuir de alguma forma e eu o levei até a farmácia”.

O estabelecimento de Schindler não se dedicava apenas a vender remédios. Como estava a quilômetros de distância de qualquer hospital, a farmácia também funcionava como uma espécie de pronto-socorro. “Treinei o Quintín para fazer todo tipo de atendimento necessário e, em poucos dias, ele já dominava cada procedimento. Ele se esmerou mesmo em fazer aquilo o melhor possível”.

Depois de Quintín Romero, apareceram outros perseguidos de diversos tipos: sindicalistas, ex-funcionários do governo de Allende, mas principalmente ex-companheiros de Schindler no Partido Comunista. Para sua sorte e de seus protegidos, os lucros da farmácia cresceram na mesma medida em que aumentava o número de funcionários-refugiados. “Quando tínhamos mais de dez pessoas trabalhando na farmácia de Villa México decidi adiantar um projeto que tinha, de abrir outros dois locais em bairros vizinhos”, lembra o farmacêutico.

Visita da DINA

Era uma tarde de inverno de 1976. Os funcionários abrigados por Schindler em três diferentes farmácias da periferia Sul de Santiago se reuniam todos os dias num porão da loja da Villa México, para almoçar. A refeição foi subitamente interrompida pelo ruído estranho de vários veículos estacionando do lado de fora, gente saindo dos carros, portas batidas. Naquele dia, havia mais de trinta perseguidos trabalhando nas diferentes farmácias.

Quintín Romero decide acompanhar Jorge na recepção aos visitantes, e logo encontra a coincidência que salvou a sua vida e a de todos ali.

                – Quintín, o que você está fazendo aqui, rapaz? – perguntou um agente da DINA (Departamento de Inteligência Nacional) que fazia uma operação na região e havia sido ex-colega de Romero na PDI.

                – Estou trabalhando, cara. Depois do golpe eu tive que me virar fora da polícia, ninguém me dava trabalho, até que eu vim parar aqui.

                – Mas Quintín, eu recebi uma denúncia de que aqui havia uma célula terrorista escondida, não queria vir aqui e ver logo você metido com isso.

                – Que terrorista que nada. Temos gente de esquerda, gente que participou do governo de Allende, você sabe que eu participei. Mas nenhum tem militância política. Você sabe quanto tempo eu demorei para encontrar trabalho? O senhor Schindler aqui foi o único que quis nos ajudar.

Enquanto isso, do lado de dentro, o cenário foi preparado para esconder parte dos refugiados mais conhecidos e mostrar somente quem não tinha filiação partidária. Quintín escoltou o ex-colega por toda a vistoria.

Ainda assim, os ex-funcionários encontrados foram fichados. O caso de Quintín Romero foi reavaliado pelos organismos da época, mas não se decidiu pela sua captura, apenas o desligamento formal da corporação.

De Concepción a Frankfurt

Em 1977, Jorge Schindler abriu sua única sucursal fora de Santiago e os problemas aumentaram. “Foi a primeira farmácia de Concepción (no centro-sul do país, a 400 km da capital) a prestar também atenção de saúde, funcionava as 24 horas”, conta.

A farmácia de Concepción também recrutou foragidos. Para Quintín Romero, este foi seu maior erro estratégico. “As demais lojas eram na periferia, onde não havia concorrência, mas aquela foi a primeira numa zona urbana central, e incomodou os donos das grandes redes farmacêuticas, que eram todos de direita, e alguns ligados à ditadura”.

As farmácias de Schindler passaram a ser vigiadas pelos serviços de inteligência. Enquanto isso, os funcionários foram mudando não só os hábitos cotidianos, como também planejaram deixar o esconderijo. O período na farmácia de Schindler ajudou principalmente os comunistas em sua rearticulação. Em 1978, deixaram o trabalho e foram buscar outros abrigos.

Naquele mesmo ano, Schindler foi visitar um amigo na Alemanha, quando recebeu telefonema de um parente, recomendando que não voltasse ao Chile. Pediu e recebeu asilo no país.

Desde então, Jorge Schindler trabalha como agente de viagens em Frankfurt. Mesmo com o fim da ditadura, preferiu continuar sua vida no velho continente. As farmácias continuaram a ser administradas pelos funcionários que não tinham militância política e Jorge passou a propriedade delas para aqueles com quem estabeleceu maior amizade. Quintín Romero se tornou proprietário da farmácia de Villa México.

Victor Farinelli/Opera Mundi

Romero em frente à farmácia onde se refugiou durante ditadura chilena e da qual é proprietário atualmente

Uma história que permaneceu desconhecida na terra onde ela aconteceu durante quase vinte anos e que veio à luz em agosto passado, por meio do livro “A Lista do Schindler Chileno”, do jornalista Mario Salazar. Já na segunda semana nas prateleiras, a obra apareceu entre as três mais vendidas em todas as listas do gênero.

Jorge e o outro Schindler

Algo pitoresco aconteceu em 1993, quando Jorge já trabalhava como agente de viagens em Frankfurt e recebeu a visita de um canal de televisão alemão que buscava parentes vivos de Oscar Schindler – naquele ano, o filme “A Lista de Schindler”, que contou a vida do xará alemão, rendeu a Steven Spielberg seu primeiro Oscar.

“Eu não sabia nada sobre o outro Schindler, não tinha ligação com ele. Talvez um parentesco bem distante, porque a minha família imigrou da Suíça para o Chile. A dele era de Frankfurt mesmo, talvez por isso houve a confusão”, lembrou Jorge.

Ao conhecer a história do alemão que salvou judeus das garras de Hitler, o chileno resolveu contar como salvou comunistas das garras de Pinochet. Os jornalistas saíram para procurar um Schindler e acabaram encontrando dois.

Redação

4 Comentários

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  1. Meritório, sem dúvida alguma.
    Meritório, sem dúvida alguma. mas tirando o sobrenome, não me parece que haja similaridade.

    O schindler “alemão” a bem dizer comprou os judeus, cerca de 1100 que escaparam dessa forma do genocidio. E comprou com o dinheiro que ganhou do proprio estado nazista utilizando a mão de obra escrava desses mesmos judeus. Não havia possibilidade de fuga, asilo e perdão porque a objeção do regime não era politica ou de consciência mas racial. Já no caso chileno, havia a possibilidade de fuga,asilo como ocorreu com ele próprio.

    De qualquer forma, como disse, meritória. No Brasil houve casos semehantes? Me lembro de ter lido, mas posso estar enganado que Assis Chateaubriand fez o mesmo. Talvez algum comentarista mais por dentro do tema pode contribuir.

    1. Schindler brasileiro

      Houve um diplomata brasileiro sediado na Europa que conseguiu salvar centenas de judeus concedendo vistos.  É o único brasileiro a constar num memorial de agradecimento do povo judeu , em Israel.

       

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